sábado, 1 de agosto de 2009

À leste do Éden

Mithraeum. Última reunião sobre a demanda, convocada pelo Jardineiro Celeste. Tentei me aproximar de Arthur e Guilherme e conversar com eles antes da reunião, mas Andrés me puxou para o lado dele, "dá um tempo pros moleques agora, D. Stella; a senhora pode se machucar se tentar chegar neles assim."

Sentei ao lado de "sêo" Danilo, Andrés e Renan. Os dois meninos já pareciam bem melhores, embora os rostos fossem ainda abatidos e cansados, o que não era muito de se admirar. Do outro lado, Arthur e Guilherme me lançavam olhares nada amistosos, mesmo carnívoros em minha direção. Estavam simplesmente mordidos. Adriano e Anderson sentaram-se no meio do caminho entre nós e os "meninos de lá".

Foi uma reunião não muito longa para os padrões da Sociedade. Bruno era o Oficiante para a reunião de hoje. Ele abriu os trabalhos e disse que a demanda tinha sido oficialmente encerrada por mim. Que a demanda não exigia que eu tivesse um jardim em minha casa e que eles entendiam meus motivos para não querer ter o jardim. Mas que ter recusado o presente tinha sido um erro grave de minha parte. Disse que não havia segundas intenções nos presentes que foram dados. Que eles foram dados simplesmente porque aquele era o dia de meu aniversário.

"A senhora estragou uma tentativa séria de diálogo do Jardineiro Celeste com a comunidade de Taurinos quando recusou o jardim", o Oficiante declarou, "normalmente em Taurinos já é ofensa grave recusar um presente, quanto mais um presente como esse. O Jardineiro Celeste não entende pessoas como a senhora, povo urbano recusando uma maravilha como aquela e preferindo contar só com o saibro como paisagem em torno da casa. Mas ele entende também que a casa é sua, e que a senhora tem direito de usar seu espaço como bem entender. O Jardineiro Celeste não tem o direito de manter um jardim ali se a senhora não deseja. Só que isso também tornou o diálogo mais difícil, justamente quando já estávamos conseguindo fazer algum progresso com a comunidade."

Arthur olhava fixo para mim. Era um olhar gelado, mas especialmente um olhar de alguém que não se conformava, por mais que tentasse. O olhar de Guilherme era igualmente cortante. Se olhasse mais atentamente, eu veria seu lábio inferior tremendo.

"O Jardineiro Celeste quer agora deixar claro para todos aqui, especialmente Renan e Andrés, que uma próxima violação das regras vai ser entendida como declaração de guerra por ele", continuou o Oficiante, "e aí não vai ficar só entre os membros do Conselho. Se houver guerra, desta vez toda a comunidade vai perder com isso. E muito. Esperamos que toda essa história tenha servido de lição para os dois e para qualquer um que pense em se aventurar", e depois de uma pausa ele concluiu, "se não houver ninguém disposto a fazer uma declaração que ainda não tenha sido colocada pelo presente Oficiante, declaro a reunião encerrada."

Em casa, com Renan, Andrés e "sêo" Danilo. A pele dos dois ainda está marcada dos mosquitos que os atormentaram durante a totalidade da estadia deles no Santuário. Tomamos café mais para nos manter ocupados. O silêncio de todos à mesa me incomodava.

"Vocês também vão dizer que eu estava errada em recusar o jardim", eu disse para quebrar o gelo.

"Não acho que a senhora esteja errada. Se não queria o jardim, que se vai fazer?", declarou Andrés, mortiço como uma vela prestes a se apagar.

"A senhora recusou por causa da gente?", perguntou Renan, curioso.

"Também", respondi, "um dos motivos foi ficar me lembrando de vocês no meio da floresta."

Descontraí um pouco a conversa, lembrando dos momentos com "sêo" Danilo e as aparições do Caipora, só para descobrir que Renan também tinha medo de "assombração". Eu, Andrés e "sêo" Danilo acabamos dando boas risadas. Não tinha sobrado muito o que fazer depois dessa ressaca de vinte dias.

"E o senhor voltou a fumar, "sêo" Danilo?", inquiriu Andrés, querendo saber mais sobre o ritual dos cigarros.

"Nem que eu quisesse. Ele levou foi bem embora o meu Souza Paiol" e o sertanejo, seu amigo de infância, o policial e eu rimos como doidos.

"E ele nunca mais voltou em sua casa?", perguntei, fazendo Renan se admirar, "mas ele foi na sua casa também?"

"Não mais, mas ele até volta. Só que agora está sossegado depois que nós fumamos juntos na mata. O maço que ele levou vai durar muito, muito tempo."

Lembrei que tanto eu quanto "sêo" Danilo tínhamos passado por experiências parecidas em termos sido expulsos de lugares belíssimos por entidades que governavam o lugar. Estávamos os dois vivendo à leste do Éden, como na Bíblia e no livro de John Steinbeck. Ele não entendeu à referência a Steinbeck, mas entendia perfeitamente o que eu dizia sob o ponto de vista bíblico.

Com a voz cansada, Andrés disse que houve uma divisão profunda entre as porções urbana e rural em Taurinos. Minha atitude só fez exacerbar essa divisão. E eu perguntei a ele porque iniciar tudo aquilo, coisa que havia muito eu queria perguntar. O que fez com que ele me levasse a um lugar que ele sabia que eu não poderia pisar?

"Já lhe expliquei, eu achava que…"

"Não mente pra mim, Andrés Silva Conselheiro. Você sabe que isso não é justificativa. Tanto não foi que deu no que deu. Renan foi de bobo alegre na brincadeira, de puro moleque. E você? Que necessidade você tinha de fazer isso?"

Renan não gostou e ia dizer algo em sua defesa, mas "sêo" Danilo sinalizou que ele ouvisse. Andrés ficou embaraçado e desconfortável com a pergunta.

"O que causou a tal divisão profunda?"

"Isso faz muito tempo, D. Stella. Foi no início da cidade, quando eu deixei de ser…", e ele parou, como que com medo de recordar aqueles tempos.

"Deixou ser touro?", atalhou Renan.

"Porra, Renan!", Andrés olhou sem-graça para mim e "sêo" Danilo como se Renan tivesse lhe arrancado as calças.

"Porra, Renan o que? Para com isso, Andrés; aqui todo mundo já sabe que você um dia já andou de quatro e pastou por esses campos por aí. Não aconteceu só contigo não, aconteceu comigo, com o teu irmão, o Anderson, Bruno… Você é um ex-touro!", e o policial minúsculo riu da própria piada idiota.

"Ah, tá bom, Renan; tá bom, tá bom, tá bom. Então, foi no início da cidade. O Jardineiro Celeste já sabia o que ia ser desde o começo e não queria que os touros começassem a retornar como gente. Eu disse não pra ideia dele e a briga começou daí. Renan veio logo depois e se juntou comigo. Depois vieram o Adriano, Anderson, Arthur, Bruno e o Guilherme, mas ele "pegou" os três últimos. Desdaí ele tenta conversar com a gente através do Arthur, Bruno e o Guilherme. O princípio do Jardineiro Celeste teve que incorporar neles pra poder falar a nossa língua de gente."

"O que você fez foi motivado por uma rixa ancestral com o Jardineiro?"

"Foi idiotice minha."

"É óbvio que foi idiotice sua, garoto. O que você fez foi motivado por essa rixa?"

"Foi, ué."

Renan ouvia em silêncio, provavelmente lembrando dos tempos em que andava de quatro e pastava por esses campos por aí. "Sêo" Danilo estava em silêncio total, apenas tentando juntar as peças que Andrés espalhava mais ainda ao invés de encaixar. Andrés declarou que essa tinha sido sua última provocação ao Jardineiro Celeste. Ele parecia se referir ao Jardineiro Celeste como um mal necessário, tão desejável quanto o Grande Um.

"Sêo" Danilo afirmou que a rixa dos meninos era a mesma briga da natureza com o progresso e que Andrés era mais ou menos um símbolo dessa urbanização de Taurinos. Era alguém que queria uma vida diferente das cavernas e de outros acidentes geográficos naturais. Alguém que não aceitava mais viver pura e simplesmente da natureza, mas que precisava modificar certos aspectos dela para criar uma outra sociedade. Que terminou sendo o que Taurinos é hoje. A rixa do Jardineiro Celeste com ele foi porque o Jardineiro o considerava um traidor, mas também porque ele obrigou o Jardineiro a tomar a mesma forma humana que Andrés usou para "traí-lo" para deixar isso claro para ele. Renan ouviu com atenção, mas não se manifestou. Andrés não refutou uma única palavra do que o sertanejo disse sobre ele.

"Por isso o Bruno não convidou nem você nem o Renan para seu aniversário. Vocês tinham uma rixa ancestral com eles."

"Temos, D. Stella", corrigiu Andrés.

"Por isso o Andrés levou a senhora no Santuário", acrescentou Renan.

"Capaz! Pela primeira e última vez, juro", o gordinho de óculos parecia apavorado ao lembrar de seus dias na floresta.

Isso me dava uma dimensão do sofrimento que foi para os dois pequenos urbanóides a estadia no Santuário. A recordação de seu passado natural. Os medos ancestrais do escuro, da noite, da floresta e de suas entidades revividos ali.

"A senhora simplesmente conseguiu evitar que a cidade voltasse aos tempos dos touros atacando as pessoas, no começo de tudo. Uma guerra entre o Jardineiro Celeste e Taurinos com certeza levaria a cidade de volta a esses tempos."

Dessa vez foi "sêo" Danilo quem ouviu Andrés sem refutar uma única palavra. Entendi a profundidade da confusão. Fiquei contente por todos estarmos bem no final das contas.

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