sexta-feira, 24 de julho de 2009

Compaixão

Eu soube por Duílio que Andrés e Renan ficariam por pelo menos uma semana no hospital em Varginha. Aparecida tinha ficado no hospital com Andrés e Donana com Renan. Na volta, uma dieta rica em feijão e beterraba feitos em panelas de ferro para combater a anemia. Duílio estava indo à fazenda Teixeira e eu lhe pedi carona.

Ao entrar na casa principal da fazenda Teixeira, ouvi uma porta bater no andar de cima. Alguém em casa parecia zangado. "Sêo" Octávio apareceu da cozinha e percebi que tinha sido Guilherme batendo a porta lá em cima, provavelmente a do seu quarto.

"É, o menino tá meio zangado com essa história do jardim…"

"Eu vim mesmo saber do Renan, "sêo" Octávio", eu expliquei.

"Ah, o Renan e o Conselheiro vão ficar uma semana de molho."

"Posso conversar com o Guilherme?"

"Guilherme está muito zangado e desapontado com a senhora. A gente passou na volta, ele procurou o jardim na sua casa e nada; a senhora já estava até dormindo essa hora, estava tudo apagado. Hoje, ele soube pelo Bruno que a senhora tinha mandado o Arthur tirar o jardim de sua casa. Ele ligou pro Arthur e ele nem quis atender, diz a D. Carolina que ele está triste, nervoso e chorando desde ontem. Guilherme também está com uma tromba enorme desde então, e com o Renan no hospital as coisas por aqui estão um pouco perturbadas no momento."

"Eu imagino", eu disse.

"Sêo" Octávio não expressou isso em palavras, mas também não parecia muito contente pela minha decisão de recusar o jardim. Disse que sentia muito não poder nos dispensar mais atenção e nos pusemos a caminho de volta para a fazenda Taurinos.

Duílio nada dizia ao volante, mas era evidente que não entendia chongas de minha decisão de recusar um presente tão lindo. Eu pedi a ele que me levasse até a fazenda Feletti.

"Não, eu vou direto pra casa", ele disse, "deixe o menino lá quieto no canto dele, D. Stella; se for mexer agora vai ser pior. Se nem o Guilherme quis lhe ver, quanto mais o Arthur! Não sei nem se a família deixa a senhora entrar lá depois do que aconteceu."

Me conformei e me calei. Duílio tinha razão.

Eu disse a "sêo" Danilo que entendia o transe pelo qual Arthur tinha passado. Estraguei a surpresa dele, o que ele havia preparado, um gran finale, uma moral da história. Todos se arrebentaram no final, cada um de seu jeito. Ninguém venceu e todos perderam. Mas achei que, independente de conseguir que eu mantivesse seu jardim, o Jardineiro Celeste tinha demonstrado o que queria: que o Santuário tinha de ser algo digno desse nome. Foi o Jardineiro Celeste quem menos arranhado na história saiu.

Ele queria tão desesperadamente que eu aceitasse o jardim para que ele ficasse como símbolo desse reconhecimento de que há lugares na cidade que não podem ser pisados por estrangeiros. E que melhor lugar para fincar um símbolo como esse do que a casa de um estrangeiro, mesmo tendo esse estrangeiro criado a cidade?

Talvez essa fosse apenas uma das razões pelas quais recusei o presente. Talvez porque eu não o visse como um presente. Talvez porque eu o visse como um lembrete do poder que poderia se abater sobre mim ou quem mais se atrevesse a violar as regras do Jardineiro Celeste. Se tanta magia e beleza foi construída assim, o que seria experimentar seu lado terrível?

Mas já me bastava a lembrança dessas duas semanas estranhas que tinha passado. Ninguém iria colocar marcos em meu terreno. Preferia a aridez do saibro em volta da casa a um Jardim do Éden com gosto eterno de demonstração de força e castigo. O jardim seria a testemunha viva do poder com o qual eu estava me metendo. Eu devia me sentir feliz por ter passado nos seus testes.

"Sêo" Danilo declarou que concordava com tudo o que eu tinha dito, mas que eu levei a história toda de um modo muito emocional, quase materno por me preocupar com todos os meninos, não apenas com uma parte deles. Isso era bom em sua opinião, mas também favorecia a que eu agisse com raiva.

"Mas por outro lado, ele viu também que a senhora agia movida por compaixão e por gostar dele. Viu que também se importava com ele a ponto de socorrer o menino com o próprio sacrifício das costas por quilômetros. Acho que por isso ele respeitou sua decisão de não ter o jardim. Ou talvez porque ele não possa manter o jardim ali contra a sua vontade de qualquer maneira."

Comecei a chorar lembrando do dia em que ele ficou olhando a mesa do café com tudo aquilo que ele podia ver mas não podia comer e me arrependi tanto daquilo. Provavelmente ele estava sem comer, como no dia em que desmaiou. Era culpa dele, eu sabia, mas me arrependi tanto de ter negado o café para ele. O olhar dele de cachorrinho faminto olhando a mesa ainda iria me perseguir por um bom tempo. "Sêo" Danilo apenas me olhava perplexo, sem saber o que dizer para me confortar.

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