segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Esperando pelo Grande Um

Eu tinha Andrés sentado no alpendre, olhando o vazio de manhã. Ele me viu sair para o alpendre e me olhou com olhos de censura. Como se eu tivesse cometido um crime.

"Três touros… E os mais saudáveis que tinha… Eu nunca vou esquecer isso." ele me fulminava com os olhos ao falar.

"E a culpa é minha?"

"Não gosto que me chamem de mentiroso", ele desviou, irritado.

"Além de eu nunca ter te chamado de mentiroso, você não respondeu a pergunta que eu acabo de fazer. Perguntei se é culpa minha você ter morto aqueles bichos."

Ele olhou para os tênis, em silêncio total.

"A culpa é minha? Foi decisão minha fazer tudo aquilo?"

"Não." Ele continuava olhando para os tênis.

"Então para de jogar em mim a responsabilidade pelas tuas decisões. Fez, está feito, acabou. Esses não voltam mais."

Eu ainda estou, como ele, no choque de tudo o que aconteceu ontem. A história do município, o bizarro evento dos touros morrendo de sabe Deus o que na caçamba do caminhão. Mortos ao chegar. Mas meu choque com a situação é o de descobrir o poder que uma cidade tem. Descobrir uma energia emanando da cidade. Isso não dava qualquer margem à dúvidas. Eu vi acontecer. Vi Andrés escolher os touros, não havia possibilidade dele ter injetado alguma substância nos animais para que eles morressem. Vi o todo do processo de captura. Mesmo que houvesse uma substância, como ele poderia calcular tão bem o tempo de ação dela até chegar aos limites da cidade? Isso iria requerer dele conhecimentos de farmacodinâmica que ele obviamente não tinha. Estou cada vez mais confusa.

"Eu acredito em você."

"Agora você acredita, não é? Teve que ver os bichos naquele sofrimento filho da puta para acreditar."

"Eu acredito que você o torna real."

"Eu sabia que a senhora ia me chamar de mentiroso outra vez, porra!" Ele começou a bater o pé no chão, furioso.

"Esquece esse negócio de mentiroso. Não estou falando de mentiras nem verdades."

"Do que é que está falando então???"

"Meus clientes muitas vezes chegavam de psiquiatras, bem ruins, porque o tratamento tradicional inclui drogas bem pesadas como o haloperidol. Ele tira os sintomas de loucura, mas deixa a pessoa como se fosse um zumbi…"

"Ah, o meu caso é para um psiquiatra, é isso?"

"Cala a boca e escuta. Jamais encaminhei ninguém para um psiquiatra. Por um motivo simples: sempre vi o mundo real que essas pessoas criavam. Não é um mundo de fantasia, é real porque essas pessoas o tornam real. E assim, é tão real quanto qualquer outra realidade que se possa viver. Eu digo mesmo que cada pessoa é um universo e o que a pessoa vê como real é real mesmo dentro desse universo. Não existe loucura em si. O que existe é um universo paralelo. Tantos quanto há pessoas no mundo."

"Mesmo assim, o que a senhora quer dizer é que eu criei tudo isso. Continua sendo uma invenção minha, não é isso?" Ele continuava perturbadíssimo com o fato de que eu o considerava um mentiroso.

"Não. Ontem você demonstrou que existe algo físico. Se é você que está criando esse algo físico, não sei se quero conhecer você por dentro."

Andrés pareceu mais calmo ao ouvir isso. Ele me disse que eu deveria ter visto algo na cidade. Que eu poderia não querer abrir isso para ele, mas que provavelmente tinha visto algo. Que nós nos comunicávamos sem precisar falar, como na quarta-feira passada. E que isso a maioria das pessoas diz ser impossível. Tive de concordar totalmente com ele nesse ponto.

"Então, se isso é possível, não pode a história de Taurinos ser possível também?" ele insistiu.

Eu disse que sim. Mas que independentemente, eu acreditava nele. Sim, há algo na cidade que realmente não tem explicação. Se touros fundaram a povoação nos moldes humanos é completamente outra história. Era só que eu precisava partir do ponto de vista dele, independentemente de eu acreditar ou não. Minha crença (se é que ela existia) era o que menos importava em toda essa história.

"Como vocês controlam a população bovina de Taurinos, se os animais nunca são vendidos ou deixam a cidade?"

"A gente mata, uai."

"E consomem a carne aqui mesmo."

"Isso."

Ele voltou a olhar o vazio, numa pausa aparentemente sem fim. Eu pensava no que dizer a seguir. Não conseguia encontrar uma continuação para a conversa, mesmo com tanta coisa que se poderia perguntar. Milagrosamente, ele retomou a história.

"Estamos esperando pelo Grande Um." Ele disse de repente.

"Como os californianos?"

"Como é???" e ele franziu a testa.

Ri e disse que os californianos esperavam pelo Grande Um também. No caso deles, um terremoto que separaria a Califórnia do resto dos Estados Unidos.

"Essa força que matou os touros ontem. Que mata todos os que saem da cidade. Que traz os bichos de volta ao estado selvagem. A mesma que fez os touros fundar a cidade. Esse é o Grande Um."

"E o que vão fazer quando o Grande Um chegar?"

Andrés explicou que o Grande Um virá de um touro nascido na cidade. Ele, Andrés, terá de sair fazenda por fazenda e reconhecer qual é.

"Meio complicado para você, não? Por que é que tem de ser você?"

"Porque eles sabem que eu vejo as coisas que eles não podem ver. Como você pode ver justamente como eu."

"E se você vir o Grande Um, vai saber que é ele."

"Sim. Na verdade, dá pra sentir que ele está chegando. Não deve demorar muito agora."

"Como você sabe?"

"O ar da cidade fica diferente. Sei lá, a gente sente isso dentro. Eu pelo menos sinto. E outros amigos aqui também. Mas eles sentem bem pouco comparados comigo. Eu sinto cada mudança, muito antes de acontecer. Por isso o Diogo veio falar comigo. Eles tem vários bezerros novos nascendo agora depois do Carnaval. Eu disse a ele que o meu pressentimento está cada vez mais forte e ele quer que eu vá ver os bezerros assim que nascerem."

"Para saber se um deles não é o tal Grande Um", atalhei eu.

"Sim, se for, só eu vou conseguir identificar."

"O que vão fazer quando conseguir identificar o bicho?"

Ele olhou para mim, sorrindo.

"Destruir a semente. Ela está lá, esperando para ser destruída."

"Como fazem para destruir?"

Ele olhou para mim uma vez mais, sorrindo.

"Nem queira saber."

Limite de município | Obscuridade

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