domingo, 12 de julho de 2009

Sítio do picapau amarelo

E a primeira a vir me visitar, umas nove horas da manhã, foi Aparecida. Eu a fiz entrar, fomos até a cozinha. Comecei a fazer o café sem muita convicção e ela demorou um pouco a entrar no assunto.

"Eu soube que o Renan voltou pra casa. Vi isso quando eu vi o menino junto da família de novo. Foi então que eu entendi porque a senhora não foi na sua própria festa. A senhora se apegou muito com o menino, não foi? Eu sinto muito, D. Stella."

"Eu quero me desculpar por não ter ido. Senti que era uma desfeita principalmente com você, que ajudou a preparar tudo."

"Ah, imagina! Acho que a senhora fez o que achou certo naquela hora. Que adianta estar numa festa sem o prazer de estar? Mais toda essa complicação que o meu filho e o Renan arrumaram com os meninos de lá", que era como Aparecida chamava Guilherme, Bruno e Arthur, "eu ando morta de preocupação com isso. E se eles põem essas árvores pra crescer em volta das nossas casas?"

"Os meninos de lá, como você diz, me trouxeram presentes ontem. Pareciam os Três Reis Magos."

"Mas a senhora não recusou não, foi?", ela pareceu alarmada.

"Não, eu aceitei os presentes."

Vi que ela pareceu respirar aliviada. Deve ser a derradeira ofensa recusar presentes por aqui, coisa que em nada me espanta.

Mais tarde, apareceu "sêo" Danilo. ressabiado, como era bem o seu jeito, como se temesse incomodar. Ofereci café ainda quente da térmica e ficamos conversando na cozinha.

"O que aconteceu na festa ontem? Todos devem estar me odiando, não é, "sêo" Danilo?"

Ele levou um tempo para responder como se compilasse suas observações da noite. Me disse que tinha ficado quase até o fim porque ele queria observar o movimento. Perguntei por Renan e ele me disse que o menino chorou bastante durante a festa.

"Foi a festa mais estranha que já vi. Mas olhe, as pessoas não ficaram zangadas da senhora não ter ido, "sá" Stella. Foi mesmo mais preocupação, todo mundo sabia que a senhora não estava bem. O Arthur disse que a senhora estava desse jeito por ter se apegado ao Renan e foi uma das vezes que eu vi ele chorar, antes dele ir embora com a família."

"Qual é a do Arthur, hein? Já faz um tempo que eu estou me perguntando qual é a dele, "sêo" Danilo. O senhor soube, ele fez descer uns passarinhos…"

"Ele parece que está lhe testando, "sá" Stella", o sertanejo tinha um tom preocupado na voz, "ele talvez queira saber se a senhora vai sentir raiva dele pelo que está acontecendo. Se a senhora está levando pro lado pessoal, e parece que está."

Disse a ele que Arthur, o Bruno e o Guilherme me trouxeram presentes ontem. Ele pareceu surpreso e perguntou se podia perguntar o que eram os presentes. Respondi que só abriria os presentes depois dessa nova confusão. Vi que ele pareceu estranhar alguma coisa.

"Mas foram assim, só deram os presentes e foram embora? Não disseram nada, o que era?"

Mencionei Arthur tentando me dizer alguma coisa sobre um dos presentes e eu mandando o trio caminhar. O sertanejo caiu em si. Disse que eu deveria pelo menos ter ouvido o que o menino tinha a dizer.

"Como eles estavam vestidos, a senhora lembra?"

"Não."

"É importante, "sá" Stella. Tente lembrar."

"Não consigo, "sêo" Danilo."

"Lembra se eles estavam com roupas dessas de roça ou se…"

"Ah, sim eles esperavam uma festa, sabe. Aquele tipo de roupa."

"Então, a senhora fez mesmo mal em não ter ouvido o menino. Eles puseram a melhor roupa deles pra ir lhe levar os presentes, "sá" Stella. A senhora estava com raiva e enxotou os três daqui. Eu entendo a sua reação, eles também, mas se continuar levando pro lado pessoal, as coisas podem se complicar."

"O que o senhor sabe sobre esse tal Jardineiro Celeste?"

"O Jardineiro Celeste é uma espécie de associação entre os três meninos que vieram lhe visitar ontem. O Jardineiro Celeste é um dos dois, Arthur ou Bruno, ninguém sabe qual dos dois. O outro dos dois utiliza a energia do irmão do Renan, o Guilherme. O outro, que é o próprio Jardineiro Celeste, não precisa da energia do Guilherme."

"O que o Guilherme faz, então?"

"Ele cede a energia dele. Guilherme é um acólito do Jardineiro Celeste."

"Acólito? Guilherme?"

"Sim, como um coroinha…"

"Sei o que é um acólito, "sêo" Danilo, estava só surpresa."

"Então, é um acólito, a função dele é gerar energia para o que usa a energia dele. Eles combinam as duas e juntos eles são como o outro que não precisa do Guilherme. Mas ele em si nada faz ou decide, só gera a energia pro outro que sem ele (ou sem o próprio Jardineiro) também não consegue nada."

Nesse ponto, a conversa foi interrompida por um cavalo se aproximando da casa. Olhei pela janela da cozinha e era Arthur se aproximando. "Sêo" Danilo se colocou em alerta e me recomendou que deixasse o menino falar antes de dizer qualquer coisa.

Esperamos por um tempo que pareceu uma eternidade, até que ouvimos as batidas na porta. Abri e lá estava ele, de jardineira azul e com as ferramentas enterradas nos bolsos como no dia em que semeou em torno da minha casa. A lembrança da semeadura me deixou um gosto amargo que a presença dele naquelas roupas só fazia reforçar.

"Fique tranquila, não vou perder seu tempo perguntando se a senhora vai me convidar pra entrar, D. Stella", ele disse sorrindo, e discretamente olhando algum ponto atrás de mim, tentando espiar dentro da casa como fez ontem, "mas ontem a senhora nos expulsou daqui antes que eu pudesse falar sobre um dos presentes. Eu preciso muito falar com a senhora sobre isso, sabe… Ah, oi "sêo" Danilo, boa tarde, desculpe, eu não tinha visto o senhor…"

O excesso de educação incomodava. Como se o pequeno tentasse nos provar sua infinita boa vontade. Eu cortei a onda, dizendo a ele que falasse sobre o presente.

"Dos três presentes que a senhora ganhou, um deles é especial. Eu sei que a senhora só quer abrir os presentes quando tudo estiver em paz. E vou lhe falar: acho a ideia muito boa. Mas o presente que eu trouxe, a senhora precisa abrir. Os outros presentes pode abrir quando quiser, mas o que eu lhe trouxe é preciso abrir agora. É uma planta e não pode ficar sem a luz do sol. E ninguém mais pode abrir o presente. Só a senhora."

"Que planta é essa?", eu estava desconfiada.

"Uma planta que tem dentro do Santuário", ele disse, "muito bonita. A senhora vai gostar quando vir."

Olhei para "sêo" Danilo e ele parecia tão aturdido quanto eu. Achei que aquilo era uma armadilha. Primeiro semeou as tais plantas de raízes agressivas, depois me trouxe uma planta de presente? Peguei o embrulho que me lembrava tê-lo visto segurando. Ele tinha realmente a forma de algo como um vaso por baixo.

"Essa é a sua planta?"

Ele sorriu um sorriso radiante ao me ver com o embrulho na mão. Fez que sim com a cabeça mas não era necessário. Disse que eu só tinha de abrir e colocar num lugar onde ela pudesse receber sol e sombra.

"Então… Não vai abrir?"

Ele era todo suspense e expectativa. Olhei para "sêo" Danilo em expectativa eu também. Ele não me disse nada, nem sua expressão se alterou; ele só tinha olhos para a atitude do menino.

"Sinto muito, Arthur. Não vou abrir."

Ele pareceu ligeiramente alterado, "mas eu lhe disse que é uma planta, está viva e não pode ficar sem luz e a senhora não vai abrir?!?!"

Olhei nervosa para "sêo" Danilo e ele estava mais nervoso que eu. Ele media o menino o tempo todo e pela sua cara não via com bons olhos a alteração de humor dele. Ele fechou a porta e me puxou para dentro da casa. Arthur apareceu na janela e nos fitou, me causando uma pequena onda de pânico que consegui dominar em tempo. A cara de cada vez menos amigos.

""Sá" Stella, acho que é daqui pra pior se a senhora não abrir o presente. Mas a decisão é sua…"

"D. Stella! Não saio daqui enquanto a senhora não abrir meu presente!", a voz dele berrava lá fora, "vou montar minha barraca no seu terreno e só saio daqui quando a senhora abrir o presente que eu lhe dei, ouviu? Até a senhora abrir o presente eu vou ficar fazendo palhaçada na porta da sua casa e gritando o seu nome. Ouviu, D. Stella?", e ele abriu uma mochila presa ao cavalo, tirou uma barraca de dentro e começou a montar a barraca sem a menor pressa em meu terreno, bem em frente à casa.

""Sá" Stella, ele não vai arredar pé não", o sertanejo parecia alarmado.

"Nada, uma hora se cansa, fica com fome e volta para casa…"

"Engano, "sá" Stella. Ele vai velar a sua casa sem comer e sem dormir até a senhora ceder. Acredite no que estou lhe dizendo, essa força está além dele. E se ele diz que vai ficar fazendo palhaçada na porta da sua casa, quanto mais tempo ele ficar fazendo isso, menos engraçada e mais esquisita a palhaçada vai ficando, se é que me entende…"

Eu ainda tentava me iludir com inúteis e vãs esperanças. Não conhecia essa faceta de Arthur. Mas achei que teria tempo de sobra de conhecer todas afinal.

"Então, D. Stella? Abre meu presente, que eu quero ir pra casa! Estou esperando!", a voz dele lá fora era insistente e irritante, "eu não posso entrar na sua casa, mas a senhora também não pode sair sem me encontrar aqui fora!" "Sêo" Danilo ficou assustado, "se não for abrir o presente dele, é melhor não sair de casa, "sá" Stella."

"O que o senhor acha que ele vai fazer comigo se eu sair?"

"Ele vai assombrar a senhora de alguma forma. A senhora sai e vê um espantalho horroroso e enorme vindo dançando na sua direção com olhos e um sorriso luminoso e a senhora é pisoteada pela coisa, não sei. Não me pergunte qual porque não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Mas eu vejo que até que a senhora abra esse presente vai ser parecido com aquela noite com a Polícia dentro da sua casa."

Me disseram um dia que o inferno astral de uma pessoa se encerra no dia de seu aniversário. No meu caso, provou ser um pouco mais resistente, talvez um de boa fabricação.

""Sá" Stella, eu tenho de ir embora. A senhora faça como achar melhor, mas ele vai chamar meu nome lá fora daqui a pouco e eu vou ter que ir embora."

""Sêo" Danilo!", gritou a voz lá fora, "bom descanso!"

"Olhaí, eu tenho que ir. Não se esqueça, se não abrir o presente, não saia lá fora, nem que ele lhe chame pelo nome. Ele vai chamar. Vai lhe infernizar."

"Ele vai tentar entrar aqui?"

"Não, porque a senhora não deixa. Mas ele pode aparecer como um espantalho na janela e aí não olhe nos olhos dele. Mas também, pra chegar a esse ponto…"

""Sêo" Danilo!", gritou novamente a voz lá fora, mais alto, "bom descanso!"

"O que ele vai fazer com o senhor?", eu estava terrificada.

"Vai me dar boa-noite quando eu passar por ele."

E ele se foi e eu vi o menino me olhando de longe, em frente à sua barraca. "Sêo" Danilo passou por ele a cavalo e ele lhe deu boa-noite exatamente como "sêo" Danilo me tinha dito. Arthur subitamente virou para a porta de minha casa aberta e começou a correr na minha direção. Agora era comigo. Eu sentia ondas de pânico que vinham varrendo o jardim da frente à medida que ele se aproximava até que num espasmo instintivo, arremessei a porta contra o batente. Ouvi os passos surdos dele morrendo por sobre o alpendre, próximos à porta.

Silêncio mortal. Nada nem mesmo dos sons noturnos ao redor, eu agora notava o silêncio morto dessa noite que se aproximava. Silêncio mortal. Estou parada em frente à porta por mais de um minuto. Nada. De súbito, pancadas na aldrava, bem ao lado do meu ouvido direito, fazendo meu coração disparar. Tem uma assombração batendo na minha porta. Meu inferno astral não terminou.

"D. Stella!!! Abre o meu presente, não faz isso comigo! Me deixa ir pra casa, D. Stella!!! Me deixa ir pra casa, D. Stella!!!", a voz do menino era lamentosa agora, as pancadas na aldrava não paravam. Eu não iria poder chamar ninguém. Se fosse essa a solução, já o teria feito. Não teria essa alma penada gritando meu nome aí fora. Eu desisti. Não iria fazer um teste com o pequeno, mesmo tendo sido coagida como estou sendo por ele.

"Arthur! Eu vou abrir seu presente. Você venceu!", eu não iria passar por aquilo de novo, não num espaço tão curto de tempo.

Silêncio mortal. Nada dos sons noturnos ao redor, nem os de Arthur. Tudo era expectativa. Dele e de mim. Tomei o embrulho na mão e rasguei o papel que envolvia o presente. A planta estava ali e, como Arthur tinha prometido, era muito bonita.

"Arthur, eu vou sair e a gente vai conversar sobre a planta. Posso sair?"

Silêncio mortal. Não se ouvia nada a não ser o som dos grilos e da orquestra percussiva de sapos característica de Taurinos. Eu abri a porta e chamei por ele. Não havia nada lá fora. Nem cavalo, nem barraca. Nem Arthur. Ouvi um trote crescendo e olhei na direção. Era "sêo" Danilo, de volta, "eu não iria pra casa com uma situação dessas, "sá" Stella e até o menino sabia disso."

"O senhor não viu para que lado ele foi?"

"Bom, a senhora abriu o presente e ele voltou pra casa. Bonita, a planta?"

Eu mostrei a ele a planta. Parecia algo retorcido como um cipó, com um formato belíssimo. Ele admirou a planta, disse que a localizava facilmente no Santuário por ser no caminho para ele.

"Por que ele me daria uma planta do Santuário?"

"Não sei "sá" Stella, ainda mais um cipó, mas acho que tem a ver com a sua estada lá."

As crianças daqui e suas tiradas herméticas. Um padrão, desde as mensagens crípticas no sino de Anderson ao comportamento do novo jardineiro da casa.

"Tem que deixar meio sol meio sombra como os cipós", ele me disse antes de se despedir.

Fiquei parada no alpendre da minha casa, a lâmpada atraindo toda a sorte de bichos que as vezes projetavam sombras horrendas e assustadoras na parede do alpendre. Pensando que se aquilo era um tipo de Sítio do Picapau Amarelo particular, então era um Sítio do Picapau Amarelo de horror. Monteiro Lobato me mataria por isso. Resolvi fechar a casa e tentar dormir. Pensava naquela hora que de brinde o Agente Anderson ainda poderia aparecer de ronda dentro da noite e aí ninguém merece.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aí algumas linhas. Agora, sem essa de Viagra ou Tramadol ou coisas do gênero ou seu comentário vai para a lata do lixo.