segunda-feira, 13 de julho de 2009

O estrangeiro

Sete horas da manhã, acordei com o som de uma tesoura de grama em meio aos sons dos pássaros que pousam nas árvores ao lado da casa. Abri a janela do quarto e dei com o meu "novo jardineiro" lá embaixo podando as plantas espinhosas da cerca da minha casa. Desci e fui ter com ele.

"O que está fazendo? Está tirando as plantas da minha cerca afinal?"

Arthur sorriu e disse que não. Que só estava podando, porque elas cresciam muito rápido e em breve ninguém mais entraria em minha casa.

"Eu tenho que vir umas três vezes por semana", ele disse ainda sorrindo. Depois, ele me encarou sério e perguntou se eu tinha café, "eu saí cedo hoje e não tive tempo de tomar café e nem comer, a senhora acredita, D. Stella? Olha, eu não preciso entrar, posso tomar aqui fora mesmo."

"Não tenho café", eu disse a ele.

"Ah… Tudo joia então, pensei que tinha um pouco de café", e Arthur continuou trabalhando.

"Isso demora muito pra fazer?" Eu queria me livrar dele logo.

"Ah, demora um pouco; mas nó, tá calor hoje, né, pra julho", ele limpou o suor da testa com as costas da mão e olhou para mim, "a senhora não teria pelo menos um copo d'água pra me dar? Trabalhar nesse sol dá muita sede…"

Fiquei olhando para ele enquanto ele me testava. Eu disse que não. Ele ficou em silêncio e continuou trabalhando. Dei as costas para ele e voltei para casa. Fiz café e enquanto estava tomando, Arthur apareceu na janela da cozinha e perguntou se eu queria que aparasse outras plantas. Eu disse que não. Não procurei disfarçar que estava tomando café. Ele ficou olhando a mesa posta, a comida, o café o leite e a carinha dele olhando tudo aquilo me encheu de pena. "Meu Deus, é uma criança com fome", pensei. Por uns instantes, fiquei balançada. Mas decidi que eu não ia dar nada a ele. Ele não queria que eu desse nada ao Renan ou ao Andrés, então não iria dar nada a ele. Nem água.

"A senhora fez café, que bom! Posso então tomar um pouquinho?", ele tentou uma última vez, sorrindo aquele sorriso luminoso.

"Arthur, se você já terminou o que veio fazer, gostaria que você fosse embora. Se quer vir podar essa porcaria que vocês puseram na minha cerca, venha, mas não me encha o saco."

Ele desanimou, guardou a tesoura nos fundos da minha casa, montou em seu cavalo e foi embora, sem dizer mais nada. "Sêo" Danilo cruzou com ele na estrada, vindo em minha direção.

"Jardineiro novo, eh, "sá" Stella?", ele perguntou ao apear-se, sorrindo, "o mocinho parecia um cadim zangado, nem me cumprimentou; a senhora brigou com ele?"

Contei a ele a primeira manhã como o "novo jardineiro" e "sêo" Danilo perguntou se eu sabia o que estava fazendo negando até mesmo água para Arthur.

"Ele estava me testando", eu disse, "não era uma precisão real."

"Como a senhora sabe?"

Parei. Sim, como eu poderia saber? Eu tinha forte suspeita de que estava sendo testada. Por que ele sairia de casa sem tomar café tão cedo para vir podar espinheiras? Quanto à água, fui mesmo radical. Mas ele estava sendo tão radical quanto.

"Sêo" Danilo mudou de assunto sem sair do tema principal. Disse que Andrés e Renan já estavam acampados no Santuário. Eles decidiram a questão com o Jardineiro Celeste fora do Conselho, amigavelmente. Iriam ficar acampados no Santuário até encontrar algo que eu deixei lá. Eu não dei pela falta de nada meu, fiquei me perguntando o que teria acontecido. Fiquei com pena dos dois meninos. Não deveria, mas fiquei. A figura de Renan me voltava à memória, me era difícil esquecer o garoto. Afastei o pensamento e disse a "sêo" Danilo que não foi algo em que pensamos ontem, mas que uma hora da noite, os pais de Arthur fatalmente iriam dar pela falta dele e vir buscá-lo.

"Era só questão de tempo, "sêo" Danilo", eu concluí.

"Não era não, "sá" Stella. Os pais do Arthur nunca iam aparecer."

"O senhor acha que não se incomodam? É isso que quer dizer?"

"Se incomodam até demais. Mas eles não tinham porque se incomodar", ele declarou, me fazendo franzir a testa, "mas por que o senhor acha isso?", eu estava atônita.

"Porque naquela hora os pais do Arthur estavam com ele e a irmãzinha dele em casa, assistindo televisão e se preparando para jantar."

Fiquei alarmada. Se Arthur estava em sua casa naquela hora…

"Então o que era aquilo que estava na frente da minha casa??? O senhor sabia disso desde aquela hora e não me disse nada?", eu estava aflita, porque "aquilo" acabava de sair da minha casa e prometera vir três vezes por semana.

"Se eu dissesse que o Arthur estava em casa, assistindo televisão naquela hora a senhora ia ter um treco. Só de saber que era o bom e velho Arthur já foi complicado, que dirá uma coisa assim."

"O que era aquilo?"

"Era um outro aspecto do Arthur, assim como a senhora conheceu outros aspectos do Renan e do Anderson. Então era o Arthur, mas um aspecto dele que corresponde a essa situação e ao que tem que ser feito dentro dela. Por isso era tão diferente do Arthur que a senhora conhece" e ele continuou, "se a senhora está negando água a "ele" está negando água ao próprio Arthur, porque "ele" não é mais que o Arthur em outro aspecto. A senhora é diferente se divertindo num clube, por exemplo, do que é atendendo seus pacientes, mas não deixa de ser a senhora mesma, são só aspectos diferentes para situações diferentes. Por exemplo, a senhora já viu o Arthur alguma vez de jardineira azul-celeste com aquelas ferramentas no bolso? Claro que não, porque ele não anda assim. Jardineira, azul-celeste, isso não lhe diz algo? Então, os meninos fazem de um jeito que seja mais fácil compreender. A senhora está acostumada com crianças, por isso o Jardineiro Celeste aparece como criança. Seria muito complicado se a senhora o visse como ele é. A senhora mesma poderia nem estar preparada para o que iria ver."

Ele continuou dizendo que era complicado eu negar até mesmo água para Arthur, porque os meninos estavam me analisando no dia-a-dia. Ele disse que imaginava que era um teste deles, mas que era complicado assim mesmo. Então eu o questionei, dizendo que se ele imaginava que era um teste, o que me impedia de imaginar também que aquilo era um teste? O que impedia os meninos de saber que eu também imaginava que aquilo era um teste? E nesse caso, que validade aquilo tinha como teste, se eles sabiam que eu imaginava que tudo era um teste?

"Eu não tinha parado para pensar nisso, "sá" Stella", e "sêo" Danilo coçou a cabeça, confuso.

O que "sêo" Danilo me disse a respeito de Arthur ter estado tranquilamente assistindo televisão em casa me aliviou um pouco de certa forma. Agora eu tinha certeza que os pedidos de café, água e outros eram parte de um teste. Não iria passar no teste, se fosse um teste de generosidade.

"Mais nenhuma notícia dos meninos?"

"Eu devo ir visitar os dois no Santuário hoje e lhe trago notícias."

Guilherme apareceu a cavalo mais tarde. Estava curioso para saber se eu tinha aberto os presentes, especialmente o dele. Pensei que era impossível que ele não tivesse se inteirado do dia de ontem pelo Arthur. Guilherme ficou contente em saber que eu tinha aberto a planta, mas ficou desapontado ao saber que eu não tinha aberto todos os presentes. Mais desapontado ficou ao descobrir que não poderia entrar.

"Já avisei a todos os meninos, enquanto seu irmão e Andrés não puderem entrar, nenhum de vocês entra aqui."

O menino não disse mais nada e nem nada mais lhe foi perguntado. Montou no cavalo e ganhou a estrada. Fui até a Taurinos, passando pelas plantas espinhosas na saída da estrada, espinhos horrorosos que furavam até as solas dos meus sapatos. Isso não é vida. Literalmente, isso não é vida. Em outro momento, talvez tivesse até dado risada da minha bobagem. Mas hoje eu não quis saber. Meu pensamento estava com os dois dentro do Santuário. Era para lá que ia meu pensamento quando eu o deixava vagar. Pensei em como poderíamos estar indo contemplar as estrelas, todos os meninos juntos. Por que tanta separação?

Eu ouvi por alto Aparecida comentar que dia 5 de julho foi aniversário do Bruno. Por estranho que parecesse, somente Adriano, Guilherme, Anderson e Arthur foram convidados. Achei aquilo bem estranho. Bruno não parecia ter um relacionamento ruim com Andrés ou Renan. Durante a fase de Tinnitus, Bruno foi até acusado de não estar se esforçando para ajudar na resolução do problema, mas foi Guilherme quem disse isso para ele. Não foi Andrés nem Renan. Tinha sido Guilherme, do próprio grupo dele. Então, o motivo não poderia ser esse desentendimento (que nem foi nada tão sério assim, diga-se de passagem).

"Lembro que o Adriano nem foi então, não foi isso? Ficamos aqui praticamente o dia inteiro, depois ainda teve aquela história do Anderson armado na praça que você e Duílio viram, lembra?"

Ela lembrava perfeitamente. Lembrei que Renan estava triste com uma história que o Andrés contou a respeito de Anderson quando havia algo mais nele que o fazia agir de modo muito estranho. Que Adriano o consolava e que Andrés veio conversar com ele, tentar levantar seu astral. Quando tudo parecia resolvido com o sino, os dois me levam até um lugar proibido para mim.

"Me sinto um pedaço de lixo poluindo a praia de alguém", eu disse a ela, "nunca imaginei que a minha presença num lugar tão bonito pudesse causar tanto problema. O pior é saber que nunca mais vou poder por meus pés num lugar tão maravilhoso."

Aparecida pareceu entender pelo menos uma parte do meu dilema. Ela disse que havia muitos lugares belíssimos em Taurinos nos quais não haveria nenhum problema em minha presença. Que "sêo" Danilo conhecia todos esses lugares e muitos mais. Mas eu disse que isso não era o problema real, era eu ser como o estrangeiro que tenta se mesclar à sociedade em que vive, mas é organicamente rechaçado por ela. Me sentia suja, poluindo a natureza do lugar. Mais um pouco, iria começar a lavar as mãos a cada dez segundos, essas coisas saudáveis que fazem de um obsessivo-compulsivo um verdadeiro obsessivo-compulsivo.

"Pelo amor de Mitra, D. Stella, não comece com isso! Não vai ser bom para a senhora… Que ideia!"

Ela disse que estava preocupada. Que Arthur estava trabalhando em minha cerca e que passou pela Taurinos para pedir água. Ele explicou a ela que ele estava morto de sede e que eu não tinha café e nem mesmo água para dar para ele.

"D. Stella, não é errado a senhora negar água para uma criança? Na sua festa, os meninos de lá disseram que a senhora pôs eles três pra correr e que eles tinham posto a fatiota de domingo pra ir lhe levar umas prendas. É pelo que eles estão fazendo com o Andrés e o Renan?"

Eu não queria responder. Não queria admitir. Mas e se fosse? Seria menos pelo que o Jardineiro Celeste está fazendo com eles do que por ele ter me impedido de dar até água aos dois, foi o que eu disse a ela. Ela entendeu ou pareceu entender. Ficou um tempo em silêncio.

"Esses meninos nunca vieram à minha casa. Vieram à Taurinos por força das reuniões da Câmara Interna da Sociedade Antiga dos Taurinos, se bem me lembro. Não me entenda mal, não é o problema deles nunca terem vindo. Mas terem vindo agora, quando acontece esse problema. Você não acha isso estranho? Agora vem você me dizer que de todos os meninos só Andrés e Renan não foram convidados. Será que eles me levaram ao Santuário de vingança por não terem sido convidados?"

Ela ficou mais um tempo em silêncio. Não dizia se concordava ou discordava da afirmação. Duílio apareceu na cozinha e disse que vinha do Santuário, "nó quero ver quando as nuvens de mosquitos começarem a descer ali dentro, espero que as barracas ajudem. Mas é bem feito para não fazerem o que não devem."

Acho que nunca chegarei a esgotar o assunto de como Duílio sempre conseguia me deixar desconfortável com suas noções medievais sobre castigo e recompensa. A vida para ele é um eterno filme de Spielberg: mocinhos aqui, vilões ali. Mas ele achou estranha a história sobre o aniversário do Bruno, "eles moleques ficam com essas briguinhas e a gente no meio dessa confusão de merda." Em que pese que ele sintetizava a situação como um todo, isso em nada ajudava a descobrir a solução do problema com o Jardineiro Celeste. Contei a eles a história do presente e o que era. Aparecida pareceu curiosa ao saber que era uma planta e que vinha do Santuário. Contei como foi desde que Arthur chegou à minha casa até o momento de eu abrir o presente. Eles se pasmaram. Aparecida me contou que Arthur tinha estado em mais lugares que somente a minha casa:

"Ele ligou aqui em casa no começo da noite, nessa mesma hora em que a senhora diz que ele estava em sua casa. Sei que ele estava na casa dele, porque eu ouvia a Simone, irmãzinha dele falando no fundo, televisão, essas coisas. Ele queria falar com o Adriano."

Aquilo batia completamente com o que "sêo" Danilo me disse mais cedo. Eu tive a certeza do que tinha sido encarar aquele aspecto brincalhão de Arthur. Expliquei a ela o que sabia dos aspectos e ela pareceu mais confusa ainda. Tive um trabalhão para fazer a mulher entender aquilo. Não posso culpar ninguém por não entender dessa joça, apanhados de surpresa que fomos nesse intenso, doloroso e insano rebosteio.

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