sábado, 11 de julho de 2009

Três reis magos

E o que era impossível se tornou inevitável. Os Teixeiras vieram aqui para buscar Renan. Foi um momento bonito de reconciliação entre "sêo" Octávio e o filho caçula. Via-se muito claramente que o pai não aguentaria muito mais tempo sem a minúscula coisinha redonda. Ele abraçou o pai, a mãe, e eles ficaram chorando juntos. Mil pedidos de perdão de todos os lados. Eu estava feliz em ver que pelo menos aquela história acabava bem, mesmo no meio de mais esse problemaço arranjado pela cidade e pela polícia. Mas havia uma tristeza em mim que eu não entendia ou não queria entender. Renan então veio e me abraçou em despedida e, embora sempre fôssemos nos ver (quem sairia de Taurinos afinal?) senti aquilo como uma despedida verdadeira. Isso gerou em mim uma tristeza verdadeira. Das grandes, que não vê saída. Uma lágrima rolou pelo meu rosto, lágrima que não tive o tempo nem a vontade de segurar. Eles provavelmente a interpretaram como a emoção de ver um tal reencontro.

Quando eles já tinham ido, fiquei pensando que se eles não se reconciliassem, Renan ficaria sem um teto. Ou pelo menos durante o tempo que durasse essa pendenga com o Jardineiro Celeste. Eu não poderia ajudar Renan em hipótese alguma ou perderia a minha casa e ele ficaria sem um teto de qualquer maneira. Sobraria a ele se abrigar na fazenda Taurinos, onde ele não é necessariamente o xodó do lugar.

Mas uma emoção funda ficou batendo na minha cabeça, teimosa, sem dar sinais de querer parar. Durante um mês e mais experimentei, mesmo que remotamente, a sensação de ter um filho. Em todas as suas facetas, da mais bizarra à mais normal, que toda e qualquer mãe sente. Eu e Paulo nunca pudemos ter filhos, e não por causa dele. O problema sempre foi meu e me foi evidente a frustração que ele sentiu ao saber que eu jamais poderia lhe dar um filho. Hoje penso se não foi por isso que meu casamento acabou, como se fosse uma bolha de sabão encontrando um obstáculo à frente.

O pensamento acabou me trazendo mais tristeza. Eu só via em minha frente a carinha de ursinho do Renan, aquele sorriso maroto de mineirinho brincando no rosto dele, as coisas que passamos desde que ele veio morar aqui. "É só saudade", pensei, procurando afastar os maus pensamentos. Não consegui e comecei a chorar, num desalento que fazia tempo não se abatia sobre mim. Meus olhos foram se congestionando, inchando ligeiramente. Eu não conseguia parar de chorar. Levei horas para parar.

Quando já tinha conseguido me controlar um pouco, ouvi o som de cavalos lá fora, o galope se desfazendo num trote até que finalmente pararam em meu terreno. Não esperei que viessem bater à porta. "Seja quem for, vou dispensar", pensei. Eu não seria uma boa companhia para quem quer que fosse, afinal. Mas eu não estava preparada para a surpresa de abrir a porta e descobrir que eram Arthur, Bruno e Guilherme, todos em suas roupas de domingo, cada um com um embrulho de presente na mão. Eles estranharam a casa escura por dentro. Dos três, Bruno nada dizia. Apenas olhava parecendo se inteirar da situação.

"A senhora não vai convidar a gente pra entrar? Não vai ter festa?", Arthur perguntava mansamente, tentando olhar por trás de mim para dentro da casa com movimentos de pescoço suaves; a voz tão diferente da que usou ontem para tantas perguntas.

"Festa de que?", eu mal lembrava em que dia estávamos.

"A senhora não se lembra, D. Stella? Hoje é seu aniversário!", disse Guilherme alegremente, como se fosse um gerente anunciando a um funcionário um aumento de salário, "a gente viu tem uns dois dias no seu perfil no Facebook, pegamos a sua atualização de aniversário na nossa conta."

Meu Deus. Nem me lembrava mais que eu fazia aniversário. Não fosse pelo Facebook, nem saberia, teria passado em brancas nuvens esse ano. Lembro de que eu estaria fazendo hoje 52 anos. Que belo presente de aniversário para meus cinquenta e poucos anos.

"A senhora não vai convidar a gente pra entrar?", Arthur tentou novamente. Bruno apenas olhava, sem dizer palavra.

"Não", eu respondi e eles ficaram se entreolhando confusos, os presentes na mão, sem saber o que fazer.

"Mas por que não?", perguntou Arthur, perplexo.

"Olhem, não é nada com vocês, eu simplesmente não estou muito contente com nada hoje. Renan acaba de voltar para casa e eu quero ficar sozinha."

"A senhora sabe que não pode ajudar o Renan agora, D. Stella. Eu lhe disse isso ontem. Não é sua culpa, mas ele tinha mesmo que sair. Mesmo o Andrés, nem ele pode vir aqui pra dentro, nem um copo d'água que seja a senhora pode dar a eles, nem mesmo conversar. Eu sinto muito a senhora ter se apegado assim ao Renan", declarou Arthur num tom que senti ligeiramente contrariado.

"Não sente dez por cento do que eu sinto, pode dormir com essa certeza. Agora se vocês me derem licença… Hoje estou mesmo uma péssima companhia."

Eles se entreolharam mais uma vez, confusos, cansados de segurar os presentes.

"D. Stella, é que nós trouxemos uns presentes para a senhora, sabe", Guilherme estava atônito, quase apavorado, "a senhora não vai fazer essa desfeita com a gente, vai?"

"Não, não vou não", eu disse e apanhei os presentes dos Três Reis Magos, "vou ficar com eles e abro quando toda essa confusão terminar."

"É que tem umas coisas sobre um dos presentes…", tentou Arthur, apressadamente; ele ainda tentou ser simpático, mas já era.

"Eu quero que vocês vão embora, por favor. Não quero ver mais ninguém hoje. Eu estou pedindo com educação. Vocês nunca vieram aqui de qualquer jeito. Jamais vieram me dar a honra de sua presença. E não vai ser hoje que vão vir", eu começava a ficar irritada com toda aquela merda.

"Deixa, Arthur, ela quer ficar sozinha", tornou Guilherme desapontado, "desculpa se a gente veio numa hora ruim, D. Stella. A gente não tinha intenção de incomodar."

Bruno já estava montando seu cavalo e subindo para a estrada. Como veio se foi, completamente calado. Parecia ter feito das tripas coração para vir até aqui. Os outros dois se viraram para ir embora e não esperei até que montassem para fechar a porta. Joguei as porcarias que eles trouxeram num canto e me sentei no sofá, desalentada. Não tenho paz um minuto. Renan foi embora. Minha casa está prestes a desmoronar. Hoje é meu aniversário.

Duílio apareceu no final da tarde e disse que eu precisava ir até a fazenda Taurinos ver uma coisa ou seja lá o que fosse e eu o mandei de volta sozinho.

Noite silenciosa, mas que não esconde um murmúrio distante que se junta aos sons noturnos de grilos, a eterna orquestra percussiva de sapos. E batidas na aldrava da porta lá fora. Parecia que eu não ia ter mesmo paz nem durante a noite.

Era Adriano, me pedindo para ir à Taurinos olhar o laptop dele, que tinha dado um problema. Perguntei se não tinha passado por sua cabeça a ideia de trazer o laptop para cá. Ele sorriu amarelo e eu disse que não ia sair. Aí ele teve de entregar, "é uma festa que a gente fez pro aniversário da senhora, a Sociedade em peso está lá. Era pra ser surpresa, mas a senhora não veio com o pai, agora não vai comigo, eu tenho que falar, né. Bom, agora vamos?"

"Eu não vou a lugar nenhum, Adriano. Eu não quero ver ninguém hoje. Não sei o que a Sociedade faz toda junta e reunida na sua casa do jeito que as coisas estão, mas eu sei que eu não quero ver ninguém hoje."

"Então, a senhora tá levando tudo pro lado pessoal, não é nada disso…", ele parecia nervoso e desorientado.

"Lado pessoal? Não está lá a tua casa, rodeada de plantas que podem virar árvores em minutos e levar os alicerces e a casa inteira junto com elas? Não é toda a tua vida e a dos teus ancestrais que está lá? Isso não é pessoal? Isso é o que, então, Adriano? Mesmo que se explique que a tua família e do Renan tem que pagar, que tenho eu a ver com essa porra toda?"

"Às vezes, a pessoa não tem nada a ver com isso, mas se está perto…"

"Besteira da grossa! Eu nem sabia aonde eles estavam me levando!"

Eu comecei a chorar. Me deixei cair no sofá. Em outros tempos, o fato de ter minha casa sitiada não me causaria sentimentos assim. Mas estou com raiva de todos. De Andrés e Renan por terem feito o que fizeram. Dos Teixeira, por terem levado Renan daqui. Dos outros meninos, parecendo justiceiros implacáveis. Tudo me irritava. Tudo ali me irritava, todas as circunstâncias, todos os modos, todas as opiniões, todos os pareceres. Adriano me olhava perplexo, sem saber como ajudar, sem saber o que fazer.

"Vai embora, Adriano. Por favor, diga à cidade de Taurinos que hoje, e apenas hoje, eu quero ficar sozinha."

"Mas, D. Stella, pelo amor de Mitra, como é que a gente comemora o seu aniversário sem a senhora presente?", ele se desesperou.

Aí também acabou. Ninguém mais apareceu. Também não consegui dormir. O murmúrio da festa na fazenda Taurinos levou horas para se dissipar. Pensei na disposição festiva do brasileiro mesmo na ausência do aniversariante e quase cheguei a esboçar um leve sorriso. Não podia conversar com Andrés e Renan. Não queria conversar com nenhum dos outros meninos. O que eu iria fazer na festa afinal? Sabia que o dia seguinte não me reservava nenhuma disposição festiva da comunidade ao redor depois dessa desfeita. Passei um inferno, o dia inteiro dispensando pessoas que vieram me desejar um feliz aniversário. Acho que o meu foi tão infeliz quanto o de Renan.

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