sexta-feira, 13 de março de 2009

Chacoalhar minha árvore

Eram dez horas da manhã quando o último carro deixou Bruno em frente ao alpendre e deu meia-volta, sumindo na estrada. Duílio e Aparecida saíram bem de manhã, logo após o café e não dão sinais de que retornarão tão cedo. Hoje faz um mês que estou fora de casa, vivendo em Taurinos. Engraçado, cheguei aqui exatamente numa sexta-feira treze mês passado. Será um presságio, como diz Andrés?

Da estrada, vem apontando "sêo" Danilo. Fácil de reconhecer, seu passo miúdo e tímido. Engraçado vê-lo essas horas já o associei à boca da noite de tantas vezes em que começávamos nossas análises nesse horário. Mesmo assim, sabia que ele não falharia em aparecer. Contava com isso.

"Vim ajudar um velho amigo nesse momento difícil. E ele vai precisar de nós dois." "sêo" Danilo sorriu seu sorriso simpático que animava e me dava mais confiança diante dos jovens leões sentados no alpendre, "aposto que a sede de sangue dos cinco é grande agora que perceberam que a cerimônia falhou."

E era. Agora não literalmente, mas estavam todos babando a seu modo, querendo a cabeça de alguém pelo absoluto malogro da cerimônia. E tinha de ser a cabeça de Andrés. Chegamos até os outros no alpendre. Os meninos estranharam a presença de "sêo" Danilo, para dizer o mínimo. Bruno reclamou de sua presença dele e teve de ouvir que o homem era tão Taurino quanto ele.

"Você já foi lidador. Não é mais", insistiu Bruno, sem usar muito a cabeça.

"Você também já foi lidador. Não é mais", devolveu "sêo" Danilo, sem precisar usar muito a cabeça.

Bruno sentou-se contrariado ao lado de Anderson e Renan. Comigo sentaram-se Andrés e "sêo" Danilo. Adriano e Gulherme sentaram mais na ponta. Adriano foi quem iniciou a reunião.

"Não consegui achar aquela passagem sobre a memória no livro", ele disse meio sem-graça, "mas isso não quer dizer que não tenha de haver punição"

"Verdade", eu disse, "mas que a punição seja por algo que valha a pena punir."

Eles se entreolharam, Andrés fixou por longo tempo os olhos em mim. Ele esperava a queda do martelo.

"Que quer dizer com isso?", Bruno perguntou, instigado por Renan.

" Que eu e "sêo" Danilo acusamos Andrés Silva Conselheiro de violar a lei dos lidadores ancestrais e retornar a Taurinos mais de uma vez, nos anos de 1905, retornando em 1957 e retornando mais uma vez no corrente ano de 2009."

Pânico geral. A cor fugiu do rosto de Adriano, um vozerio contido, abafado pela minha audição ainda precária. Olhei para o réu e ele parecia firme. Cheguei perto dele e lhe disse no ouvido,"agüenta firme e cabeça erguida, eu sei que a gente sai dessa", e ele sorriu um sorrisinho breve.

Guilherme socou a palma da mão esquerda, "eu sabia, só fiz as contas, estava ali do nosso lado todo o tempo. Porra, o cara é uma lenda viva." Ele ficou fitando Andrés, sem ainda acreditar. Andrés não conseguia esconder o quanto estava sem graça.



"Não quero ser teu escravo. Você tenta me mandar para o túmulo antes da hora. Tudo o que ouço dizer é que você vive e respira por mim. Mas tudo o que você faz é chacoalhar minha árvore."

Chacoalhar Minha Árvore, escrita e gravada por David Coverdale e Jimmy Page.



A reação que mais me preocupava era a de Adriano. E ela não se fez esperar. Ele se aproximou do irmão com uma expressão apatetada, encostou nele e disse, "isso quer dizer que você é meu avô?"

"E seu bisavô", Andrés disse calmamente, tirando os óculos para limpar. Adriano passaria agora o resto da reunião ensimesmado. Talvez avaliando o efeito que tudo isso teria nas relações de parentesco.

Anderson, Bruno, Renan e Guilherme olhavam tudo aquilo sem acreditar. Estavam passando por um momento singular da história de Taurinos. Renan parecia fascinado em ver finalmente um Daqueles Que Retornaram, seres míticos dos quais só tinha ouvido falar das conversas dos antigos e lido a respeito no livro durante as sessões no Mithraeum.

"Como é ser um Daqueles Que Retornaram?" ele perguntou, no auge da curiosidade.

"Nem queira saber", disse Andrés com um ar cansado e tristonho, "é um peso do caralho pra se carregar."

"Ainda mais duas vezes, hein, Andrés?", brincou "sêo" Danilo, sem esperar qualquer risada. Era bom descontrair, mas o momento era tenso de qualquer maneira.

"Isso é um golpe! Eles querem mudar a pena dele!" Bruno estava indignado com a "manobra".

"Querendo ou não querendo, essa é a pena que a Sociedade vai ter de aplicar em Andrés. Você incluído, Bruno, membro consumado da Câmara Interna da Sociedade Antiga dos Taurinos; queira ou não queira, vão ter de seguir o livro. Eu não engoli essa palhaçada de reunião de memória até agora, essa sim uma manobra para me desqualificar quando toda aquela bosta foi feita muito mais que corretamente, segundo vocês mesmos e o livro me disseram. Não veio D. Maria nem "sêo" José me dizer. Foram vocês e o livro. Que testemunhos mais eu precisaria? Se fosse assim, para que a presença dos outros Taurinos no Mithraeum, testemunhas de cada vírgula das monstruosidades lá embaixo? Por que um livro misterioso que se auto-anota?" Eu disse calmamente.

"Eu queria me desculpar", disse Anderson com uma expressão embaraçada.

"E ainda quer?", brincou "sêo" Danilo fazendo Anderson, Renan, Guilherme e Andrés rirem.

"Sério, eu estou muito puto com o que aconteceu, nada mudou na cidade, eu apoiei essa idéia idiota na esperança de que alguma coisa fosse mudar. Eu peço desculpas por isso. Não desejo a morte de ninguém. Mas o problema está aí e se for necessário afogar o Andrés na Cachoeira dos Chifres para resolver, ele vai ser afogado, nem que eu tenha de fazer isso sozinho. E eu juro, sou um cara sossegado, mas não vou pensar duas vezes pra passar por cima de quem surgir na minha frente. Minha família está lá, a água acabando, os bichos atacando cada vez mais e eu não vou esperar piorar."

Bruno se ergueu de sua cadeira e se desculpou também. No mais, disse mais ou menos as mesmas coisas que Anderson, com mais ou menos as mesmas palavras. Renan e Guilherme não foram muito diferentes e Adriano não se manifestou além de dizer que acataria o que a Sociedade decidisse. Olhei para "sêo" Danilo e para Andrés; se não eram o retrato da felicidade, estavam pelo menos mais calmos, certos de que as coisas estavam se dirigindo para onde deveriam se dirigir.

Os cofres da loucura | Depois do Ordálio

Rádio Universal: Um Amor Como Sangue

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aí algumas linhas. Agora, sem essa de Viagra ou Tramadol ou coisas do gênero ou seu comentário vai para a lata do lixo.