quinta-feira, 12 de março de 2009

Os cofres da loucura

São seis e meia da tarde. Novamente aquele cafezinho mineiro fantástico e pão de queijo, comprado na padaria da cidade por "sêo" Danilo. Andrés, como bom mineiro, adorava os pãezinhos (não que se precise ser mineiro para adorar o trem). "Sêo" Danilo fala do caos na cidade. De acordo com ele, água já começa a faltar em alguns pontos da cidade embora ainda não estejamos perto da estação de estiagem.

"É assim que começa", ele acrescentou, "o ar fica seco demais, ocorre falta de água, essas coisas."

"Sêo" Danilo nos perguntou se lemos as descrições das duas cerimônias, em 1957 e 2009 para comparar. Andrés e eu tínhamos ficado abestalhados em ver que foram exatamente a mesma cerimônia em todos os detalhes. Dissemos a ele que Adriano não conseguiu encontrar a tal regra no livro e ele apenas riu, "crianças, sempre crianças" e depois disse, "vêem? É a mesma coisa, nenhuma diferença, nada fora do lugar. Mesma ordem, mesma lida, mesmo sonho profético, mesmo tudo."

Aqui entramos num assunto delicado. "Sêo" Danilo jurou não saber da morte do menino de antemão. Não achou que tudo fosse se precipitar exatamente como em seu tempo como lidador mas viu coisas muito semelhantes demais com o que viveu com seu amigo Andrés no longo verão de 1957. Ele viu que havia uma tendência mas que não havia nada que pudéssemos fazer.

"E a tal Estela substituiu o Taurino morto", eu atalhei.

"Sim, como no seu caso, exatamente."



"É só um sentimento que me ocorre às vezes. Um sentimento, às vezes. E eu fico assustado exatamente como você. Fico assustado, mas não é hora para tristeza. Não é hora de correr e se esconder. Não é hora de desabar. Não há tempo para chorar."

Não Há Tempo Para Chorar, escrita e gravada por Sisters Of Mercy.



O zumbido no ouvido começa a deixar entreouvir sons abafados produzidos pelos dois quando falam. Minha audição está voltando. Minha audição está voltando! Digo a ele e eles resolvem beber mais café, "pra comemorar", enchendo um pouco mais minha caneca. Andrés disse que estava assustado com o problema de surdez, que achou que era irreversível.

"Andrés, você já viu uma foto da classe de 1957 que "sêo" Danilo" tem guardada?

"Sêo" Danilo se desculpou com ele, "fazia tempo que queria lhe mostrar e a seu pai e irmão também, mas não nos encontramos muito tempo de cada vez, então eu nunca lembrava de mostrar a foto pra você." Deu a foto a Andrés e ficamos apreciando o efeito. A cor fugiu completamente do rosto dele. Olhei para "sêo" Danilo e perguntei a Andrés se estava se sentindo bem. Ele disse que estava.

"A foto é linda. Gosto do modo como todos estão sérios. Aqui está o avô do Bruno. E aqui o do Anderson", ele parecia meio trêmulo, olhando alternadamente para a foto que fitava longamente e para nós em rápidas olhadas. Como se secretamente nos avaliasse. Ele devolveu a foto para "sêo" Danilo maquinalmente, ainda sem cor alguma no rosto.

"Andrés", eu disse, séria, "acho que tem umas coisas que você não abre nunca para ninguém. Que tal abrir os cofres?"

Ele me olhou assustado. "Sêo" Danilo afirmou com a cabeça o que eu tinha dito.

"Do que a senhora 'tá falan'o?"

"A foto. Quem está naquela foto?"

"É "sêo" Danilo, meu avô…"

"Tem certeza de que é seu avô?"

"Uai, quem mais haveria de ser…?", ele ofegava, suando frio.

"Você, meu amigo de infância. É bom te ver de novo. Quantos homens no mundo podem ter essa chance de ter um amigo de volta?" "sêo" Danilo parecia emocionado em rever o amigo de infância, mas sabia que iria ser duro para ele.

O menino deixou a cabeça cair devagarinho sobre a mesa. O corpo começou a sacudir suavemente. As lentes dos óculos dele foram se empoçando de água salgada até ela quase transbordar. Eu olhei para "sêo" Danilo e para Andrés com pena. Tanta, que me dava vontade de chorar também. Mas alguém aqui vai ter que segurar a bronca. E não é bronca mole. Que seja eu se não for mais ninguém.

"Andrés, meu bom amigo, não é hora de choro. Eu faço mais café. Quer?" ofereceu "sêo" Danilo já com os olhos úmidos.

"O que ele quer dizer é que temos de tocar adiante, Andrés. Chega de segredos. Taurinos não tem mais como esperar."

Eu dei a ele um lenço de papel. Dois. Tres. Ele respirava com dificuldade, tremendo, tentando limpar o rosto, os olhos e os óculos. Não olhava para nós. Eu o encorajei a olhar. Quando ele finalmente olhou para nós tinha o rosto anuviado, congestionado pelo transe.

"Como descobriram isso?" Ele estava cansado, vencido.

"A foto, Andrés. Quando "sêo" Danilo me mostrou a foto eu vi que era você. Não sei se ele já sabia, mas não era uma foto de semelhança entre neto e avô. Era muito mais. Não tem um traço dele aqui na foto que não tenha no teu rosto. Veja a foto, se não acredita em mim. Se fossem pessoas diferentes, por mais parecido que fossem teriam de ter pequenas diferenças. E elas não existem. Porque é você na foto, não seu avô."

"Mas ele é seu avô também, por isso você é seu próprio avô. Rapaz, mas que confusão você aprontou. Eu me perguntava de onde você tirou tanta memória de tudo, as reuniões foram exatamente as mesmas e a cerimônia, a mesma de 57. Pergunte a "sá" Stella, eu não cansava de me admirar."

"Sim, eu me maravilhava com a segurança absoluta com que você dirigia as reuniões. Como você tinha as rédeas de tudo. Meu Deus, e você é sogro de sua mãe, pai do seu pai e avô do seu irmão… que loucura. Mas eu acho que a gente ainda não chegou nem na metade dessa confusão toda."

Andrés não ia mesmo parar de chorar. Mais lágrimas foram se juntando, transbordando, juntando, num processo contínuo de gotejamento.

"E vê se economiza um pouco de água", eu disse em modo não-sádico, "Logo não vai ter mais na cidade."

Ele olhou para mim furioso e começou a rir. Um riso nervoso de quem não conseguiu resistir a uma piada feita na ocasião correta. "Sêo" Danilo deu lá sua risada também. Mas nós tínhamos de continuar.

"Quem é esse aqui? Veja aqui na relação dos membros da Sociedade em 1905. O nome dele é Luís Felipe Mattos Conselheiro. Foi a última coisa que lembro de Arthur ter mencionado na última sessão dele no Mithraeum. Me lembro até de Bruno ter dito a você que a sua família já vinha um tempão combatendo o Grande Um."

"É meu bisavô."

"Andrés, isso a gente já sabe pela linha do tempo."

"Sou eu." Ele estava triste em nos dizer isso, talvez porque já imaginasse as implicações.

"Guilherme percebeu que era um de vocês seis, era só questão de matemática. Se esperavam o Advento de um antigo lidador para 104 anos depois de 1905, 2009 era o ano em que isso iria acontecer. Agora entendo porque você parecia tão estranho quando se falou Naqueles Que Retornaram. Você ficou nervoso quando se mencionou que Aremã viria junto ao lidador que não cumprissem as condições de retorno e até gritou com os meninos por eles terem feito uma brincadeira com o assunto."

"Sim, mas um lidador não pode voltar mais que uma vez… Meu bom Mitra… Andrés, você não podia mais ter retornado!"

E ele citou textualmente, de memória, uma passagem do livro para Andrés, "Prestem nele toda a atenção que tiverem, pois não retornará outra vez. Pois que é um risco imenso para este lidador retornar à Terra, pois que Aremã está sempre à espreita."

Andrés estava chorando ainda, agora petrificado. Pediu que nós mentíssemos para ele. Disse que preferia uma mentira piedosa. Eu disse a ele que essas são frações do melodrama diário. Que ele até podia ficar ali como numa novela dramalhão mexicana, colombiana ou brasileira, mas que isso não resolveria o problema. Eu disse que as coisas eram até mais simples do que ele imaginava.

"Você vai ter de passar pelo Ordálio", disse "sêo" Danilo, guardião das tradições do mitraísmo local.

"É isso que está aqui. Até lembro que foi Anderson que leu e me perguntou o que era um Ordálio. Você deve ser afogado nas águas da Cachoeira dos Chifres por cinco minutos. Se conseguir ficar vivo, se livra de Ariman, o Grande Um e livra a cidade de Taurinos por mais cinqüenta e dois anos. Esse é o plano. Mais fácil, não?"

Ele me olhou revoltado, lentes encharcadas passeando sobre riscos de lágrimas secas.

"Pra vocês é fácil falar! Não vão passar cinco minutos debaixo da água!"

"Você ia passar o tempo suficiente para morrer de uma vez e não estava reclamando. Por que isso agora? Agora mesmo estava resignado em morrer por causa de uma bobagem, como pode hesitar diante de alguma coisa que pode ser a sua redenção e a de todos nós? E tem mais, é bem provável que você deixe o poço da Cachoeira dos Chifres são e salvo, então acho que sua pena foi comutada para algo mais leve e melhor. Agarre a chance e salve o dia de uma vez por todas. Largue e se prepare para morrer, secando junto com a cidade e o pior: morrer sabendo que deixou de fazer o que o teu tempo exigia."

Eu estava estupefata, mesmo entendendo a carga de responsabilidade que tinha lançado sobre ele. Andrés baixou novamente a cabeça e mais torrentes de lágrimas desciam. Aquilo fazia mal a ele, a "sêo" Danilo e a mim. Durou uma eternidade até ele levantar a cabeça e nos encarar.

"Deixe que venha o teste então. 'Tô pronto pra me afogar." E ele acertou a mesa com a cabeça outra vez.

Olhei para "sêo" Danilo, respirei fundo. Agora consigo ouvir as vozes deles, ainda bem abafadas, mas consigo distinguir os fonemas. Estou progredindo. Só não gostaria de recordar os meus feitos na arena naqueles embalos de sábado à noite.

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