sábado, 14 de março de 2009

Depois do Ordálio

Sol já vai alto no céu, sol de dez horas. Hoje é o último dia após a cerimônia para o procedimento de teste com Andrés (ou não há nada a esse respeito no livro e eu estou fantasiando desta vez, como os meninos?). Digo teste porque acho a palavra ordálio um horror. Estamos caminhando pela estrada, penitentes, seguindo a pé na direção da Cachoeira dos Chifres. "Sêo" Danilo se junta aos penitentes na caminhada até a cachoeira sagrada. Os meninos reclamaram da légua tirana sob o Sol. Eu disse que não cabia um transporte motorizado na natureza do negócio.



"No deserto, na secura, o sol anda tão alto. A légua tirana e o rádio se enche de estática e os ossos na estrada brancos como se jogassem alvejante."

Berrantes, escrita e gravada por Midnight Oil.



Não inventei de ir a pé, foi idéia de Andrés. Ele tem direito ao que pode ser seu último passeio sobre a Terra. Porque há uma chance razoável de que ele não resista. Porque cinco minutos é um tempo limite para o cérebro. Ele pode começar a morrer todo ou em partes devido à falta de oxigenação. O pensamento me angustia, não sei porque. Talvez porque desse teste dependa tanta coisa. Minha vida incluída.

A trilha para a Cachoeira dos Chifres é aquela que eu conheço. Mas chegar ao poço lá embaixo onde vi Andrés nadando pela primeira vez é mais difícil. Daqui de cima se vê a imponência da maravilhosa cachoeira e o poço de águas profundas e escuras. Olhando bem para o poço, pareço ver algo se mexendo naquelas águas. Um arrepio corre por minha espinha, mas me contenho. Talvez tenha sido só um movimento da própria água.

Renan é o primeiro a descer para o poço, seguido de "sêo" Danilo, Guilherme, Anderson, Adriano e Bruno. Eu desci junto com Andrés, ele veio me ajudando com as pedras do caminho. Olhei para o poço enquanto descia e me pareceu mais forte a suposição de que algo se movia dentro daquelas águas.

Todos estão dentro da água gelada do poço agora. O teste vai começar. Pedi ao Bruno o relógio dele, ajustei para cronômetro, zerei e disse que todos segurassem Andrés. Ao dar o sinal, todos o submergiríamos na água juntos e juntos o seguraríamos por cinco exatos minutos. De repente, um movimento na água mais à frente que não era causado pela correnteza. Eu, "sêo" Danilo e Bruno o percebemos.

"Que foi aquilo, D. Stella?", ele parecia tenso e amedrontado. Renan disse que viu também. Todos olharam na direção do movimento, mas não havia mais nada ali.

"Eu não sei, Bruno, mas… Eu tenho a impressão, desde lá de cima, de que nós não estamos sozinhos nesse poço escuro."

"Também vi alguma coisa mexer, mas o que é não se pode dizer daqui" disse "sêo" Danilo, perplexo.

Nós corremos o olhar pelo poço. Definitivamente um lugar especial de águas geladas que começavam a doer nos ossos. Um lugar especial na cachoeira, segundo os meninos, um lugar onde não batia sol em nenhuma hora do dia. E nós estamos aqui dentro. E não somos os únicos, ao que parece.

"Quem pode ser…" começou Renan, "será que é o…"

"Cala a boca, Renan", pediu Guilherme, "num fala esse nome aqui não…"

Concordei plenamente com Guilherme e pedi a todos eles que ficassem quietos. Nada mais se movia. Tudo era silêncio, silêncio até demais: nem pássaros, nem sons da mata ao redor se ouviam em nenhum momento. Um silêncio morto, de coisa iminente carregada eletricamente no ar ao redor. Tudo estava calmo, uma calma estranha, mas calma.

Depois de algum tempo, seguramos Andrés novamente. O Ordálio iria começar. Bruno deu o sinal, iniciei o cronômetro e nós o enfiamos dentro d'água. Iniciamos a justiça de Mitra. O silêncio entre nós era tanto quanto o silêncio geral: completo, fechado. Comecei a olhar em volta e encontrei o olhar de "sêo" Danilo fazendo o mesmo. Anderson notou mais um movimento da água e indicou o lugar com o nariz. Adriano olhou para cima como se observasse algo. Ele tinha observado que estava ainda mais escuro do que quando entramos no poço. Á agua gelada começa a incomodar mais seriamente. A escuridão vai se acentuando. O ar está ficando preto. Andrés já está dentro d'água há um minuto e meio.

"Povo, préstenção no céu!" exclamou Adriano, olhos do tamanho de pires na direção do céu.

Era de noite, embora não fossem ainda 11 horas da manhã. As estrelas brilhavam com força no céu e dentro do poço não se via mais nada nem ninguém. Você não veria sua mão se a pusesse em frente ao seu rosto. A água no centro do poço começa agora a borbulhar fortemente. Fria como o diabo, mas como se fervesse de dentro. Andrés já está dentro d'água há dois minutos. O espanto e o medo são gerais. Como se o teste fosse para todos nós, não somente para Andrés.

"Nós vamos morrer?", perguntou Renan baixinho, assustado.

"Isso com certeza, "sô" Renan. Só o Astro Rei é quem sabe a hora. Mas as coisas estão ficando feias por aqui, isso não tem como duvidar" murmurou "sêo" Danilo de volta.

No centro do poço o borbulhar da água se tornava cada vez mais forte. Vento começou a soprar forte por dentro da mata, seguindo o curso da cachoeira até nos encontrar no poço, deixando tudo ainda mais gelado. Não é noite agora, simplesmente alguma coisa cobriu o Sol. Como um eclipse total do Sol. Mas que eclipse total é esse que a televisão não noticiou? Andrés já está dentro d'água há dois minutos e quarenta segundos.

Olhei para dentro do poço, de onde se ouvia o borbulhar. E, tomando forma, a mesma coisa que vi quando Andrés nadava dentro deste mesmo poço: a figura de touro que olhava para mim, o rosto de um deus zangado e frustrado. Disfarcei minha surpresa, para que o medo não tomasse conta, mas as reações dos meninos me mostraram que eu não tinha visto nada sozinha. "Sêo" Danilo pareceu preocupado de verdade agora.

""Sá" Stella, isso vem a ser o que eu imagino que…?"

"Eu já tinha visto isso, quando vim com Andrés aqui. Ele estava dentro do poço como agora quando isso aconteceu."

Renan começou a chorar, agora que o vento se tornou mais e mais forte, varrendo a mata com fúria, enchendo nossos olhos de cisco. Os outros meninos estavam tão apavorados quanto. Via-se que a cerimônia foi um passeio no parque para eles comparado com o Ordálio.

"Chore não, "sô" Renan, isso tudo vai passar."

"Sim, vamos permanecer atentos. Algo está nos testando junto com Andrés. Temos de ficar firmes e sem medo. Algo não quer que nós completemos…"

Não consegui terminar a frase. Ouvimos a voz de Arthur de lá de cima nos pedindo para parar, gritando em meio ao vento, dizendo que o teste estava concluído.

"Arthur voltou também! !", gritou Adriano, petrificado.

Os meninos, assombrados e pensando como Adriano que mais um tinha voltado à vida, se preparavam para soltar Andrés quando eu gritei para eles que aquilo era uma armadilha.

"É armadilha mesmo. Não pode ser Arthur. Ele morreu, gente", concordou Anderson.

"Andrés também não morreu e voltou?", argüiu Bruno em meio ao caos de vento e trombas d'água que a floresta e o poço tinham se tornado. Andrés já está dentro d'água há tres minutos e meio. O corpo dele começa a se sacudir em desespero dentro d'água e ainda lhe falta um longuíssimo período de um minuto e meio em frente. A água em torno começa a se levantar, como se o poço ganhasse cada vez mais profundidade. O último minuto, imagino, vai ser o pior.

Quatro minutos. Algo está me agarrando por trás. Pelos gritos, percebo que algo está agarrando todos por trás. É o momento. Eu e "sêo" Danilo gritamos para que todos fiquem unidos e não se deixem submergir pela força. Renan está cada vez mais apavorado e assim também está Adriano. A força é difícil de resistir, mas teremos que tentar. Nunca estivemos tão perto de conseguir. Quatro minutos e vinte segundos. Vozes enchem a floresta, dizendo coisas ininteligíveis e provavelmente ancestrais.

Vozes bizarras que vem de cima, de baixo, do lado, sopram em nossos ouvidos, enquanto a água vai se congelando cada vez mais. Quando tudo já está perdido e Renan está quase cedendo à força que o puxa para baixo, o cronômetro marca quatro minutos e cinqüenta segundos. Um puxão para baixo, intenso. Todos afundamos em confusão para o interior escuro do poço e já nenhum de nós continua preso a Andrés. Conseguimos voltar à superfície, mas ele desapareceu no meio do turbilhão rumo a profundezas que nem imaginar podemos.

Cinco minutos quando eu paro o cronômetro. Voltamos à beira do poço, cansados enquanto o ar vai se tornando mais claro. Cada vez mais claro até que um dia claro se faz sentir fora dos limites do poço. Nós sete estamos arrasados do esforço. Novamente é de manhã na Cachoeira dos Chifres. O que quer que estivesse obscurecendo o Sol se foi. E ao que parece, levou Andrés embora.



"Pois você não sabe, você não sabe e nunca vai saber porque. Pois você não sabe quanto vale cinco minutos na vida."

Cinco Minutos, escrita e gravada por Jorge Ben.



Ficamos por ali mais algum tempo, ganhando forças para retornar. Estava acabado. Funcionando ou não, o que tínhamos de fazer foi feito. Ficamos nos lembrando de Andrés, sua irritação com a falta de ordem, seus maneirismos particulares. Os meninos disseram que deveríamos voltar. Já íamos subindo alto quando ouvimos um barulho atrás de nós. Olhamos para baixo lá no poço e vimos algo flutuando. Era Andrés.

Daqui já se via que ele se movia, mas com extrema dificuldade. Descemos correndo e o tiramos de lá. Os olhos meio abertos, meio fechados de quem foi cuspido de volta pelo poço profundo. Respiração boca-a-boca feita por Adriano, piadinhas inevitáveis mesmo no estado de espanto generalizado em que nos encontrávamos, enfim, todo o espírito brincalhão da Sociedade em seu melhor na Cachoeira dos Chifres. Gradualmente, Andrés começa a tomar ciência do que está à sua volta. He vomitava água como uma fonte enquanto esfregávamos sua barriga e seu peito.

"Quem diria, esse é um jovem forte e corajoso. Reconheço nele o meu amigo de infância uma vez mais", disse "sêo" Danilo, feliz em ver o menino de volta.

Andrés sorriu para "sêo" Danilo ao ouvir essas coisas sem ter nem mesmo como sorrir. Os outros, com exceção de Renan, estavam mudos de espanto. Andrés tinha de ter mesmo algo de especial. Renan falava sem parar, "o carinha é um Daqueles Que Retornaram. Porra, não é fraco não. Por duas vezes, voltou de onde ninguém retorna. Agora retornou de dentro do abismo do poço e voltou à vida. Será que tem alguma coisa que ele não consegue fazer? Por que eu não posso ser ele?"

Andrés ainda andava com dificuldade pela estrada de sol. Já longe da cachoeira, notamos o frescor do ar até aqui seco como o mais seco deserto. "Sêo" Danilo foi o primeiro a identificar a brisa de umidade.

"E ele que fique na escuridão dele por mais 52 anos", disse Anderson, resoluto, "quando ele retornar, estaremos prontos para ele como sempre estivemos."

"Assim seja!", foi o coro geral antes da risadeira geral. Estávamos salvos e ninguém precisou morrer. Me vem à mente o rosto de Arthur, companheiro que ficou para trás nessa luta. A memória do rosto compenetrado dele estudando o livro, a última recordação que tenho dele, me enche de infinita ternura e uma esperança nas coisas a virem que não consigo, nem quero explicar. Eu deixo o sentimento tomar conta de mim e vivo o êxtase daqueles que ainda caminham sobre a Terra. O êxtase de quem descobriu que a vida pode ir além. Sempre além.

Chacoalhar minha árvore | Cidade em movimento

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