segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Redemoinho

Adriano apareceu em casa hoje. Disse que a mãe queria vir, mas pediu que ele me sondasse antes. Eu disse a ele que velhas amigas como nós não tinham essa frescura de sondagem.

Aparecida apareceu logo depois, com Duílio. Foi então que me toquei de que fazia uma semana ou mais que não os visitava ou mesmo via. Fiquei entocada durante todo o tempo do Jamboree, não saí de casa, pelo menos não na direção da Taurinos. Aí, a montanha vinha até Maomé.

"Foi bonito o tal encontro", Aparecida me contava, "nunca vi jovens mais bem-educados em toda a minha vida. Me ajudavam até com as tarefas de casa, a senhora acredita?"

"Acredito sim", e me lembrei do escoteiro Renato, seu amor pela honra e sua correção. Pobre criança perdendo seu tempo nesta cidade absurda.

"E tinha umas músicas que eles cantavam", e ela cantarolou A Árvore da Montanha e outras tantas, "umas cerimônias deles que eram muito bonitas. Os meninos atirando com arco e flecha, nó, tanta coisa", ela parecia entusiasmada com o evento.

Duílio disse que estranhou que eu não aparecesse um só dia na fazenda Taurinos. Disse a ele que estranhei o mesmo. Que a presença dos escoteiros aqui desvirtuou a minha semana.

"Num bom sentido, sabe, mas mudou tudo", eu contemporizava para saber como a conversa se desenvolveria.

Os pais e o filho mais velho finalmente me disseram que não entenderam porque Andrés só voltou ontem para casa. Perguntaram se ele tinha ficado somente aqui. Eu disse que ele dava suas escapadas para a Prefeitura provavelmente, mas que a maior parte do tempo ficou aqui.

"D. Stella, ele promoveu o evento e não estava lá", explicou Adriano, "a gente teve que representar ele, foi um negócio bem sem-graça. Foi um evento bonito e tudo, mas ficou meio esquisito o anfitrião não aparecer, não?"

Nesse ponto, comecei a pensar se dizia a eles que Andrés e Bruno, assim como todos os escoteiros do grupo deles ficaram aqui porque alguém fez o favor de parar o tempo em torno deles num dia em que eles deveriam ficar aqui e esperar o início do Jamboree. E tudo provavelmente por causa do desentendimento entre o escoteiro Renato e a dupla medonha no centro da cidade. Acabei contando. A Polícia Obscura mesmo nem tinha pedido silêncio, afinal. Os Conselheiros não gostaram nem um pouco da história. Eu os fiz ver que os meninos de Taurinos sempre jogavam jogos entre si e que estávamos sempre no meio do redemoinho.

"Vejam, se formos pegar do começo, eram Andrés e Renan juntos metidos na história do Jardineiro Celeste, com o Arthur em cima pegando no pé", eu expliquei o que achava, "e agora Andrés e Bruno juntos metidos na história do Jamboree e o Renan em cima pegando no pé. Mudam os atores, e olhe que nem todos, mas o jogo é sempre o mesmo: regras de alguém são quebradas e o alguém parte para o revide. No caso do Jardineiro Celeste, não precisei mais que entrar no Santuário para desencadear a confusão. No caso da Polícia Obscura, "sêo" Danilo não precisou de mais do que dizer que um chupacabras tinha invadido minha casa para iniciar a quizumba. É como uma rixa descontrolada e permanente de todos contra todos, onde o que menos importa são os motivos e o que mais importa é verdadeiramente a rixa."

"Meu bom Mitra! Chupacabras, D. Stella? Como aqueles em Varginha?", perguntou Aparecida, assustada. Expliquei a eles o que tinha se passado e o que tinha sido combinado com a Polícia Obscura. O estranhamento do grupo escoteiro e a promessa que "sêo" Danilo e eu tínhamos nos feito de não deixar os escoteiros descobrir as bizarrias da cidade. O que era tentar esvaziar o mar, com 500 pessoas de fora pra lá e pra cá na área rural de Taurinos. Adriano torceu o nariz para a explicação, ele mesmo um dos meninos a que eu me referia.

""Sêo" Danilo teve que inventar qualquer bobagem na hora", eu acrescentei, "Renan ficou sabendo da desculpa dele, não sei como, e criou seu próprio cavalo de batalha a partir daquilo. Como se fosse uma vingança tardia pelo que ele passou no Santuário ou até a velha implicância dele com os apelidos como o da própria Polícia Obscura, entendem? Mas é bem como o Duílio disse outro dia, esses moleques ficam trocando as suas farpas e a gente aqui no meio do fogo cruzado."

A família Conselheiro não sabia o que fazer, isso era claro para mim. A zanga era a zanga do costume com o Renan e agora com o Anderson, mais novo membro da "milenar" Polícia Obscura. Mas de resto, era como se estivessem presos naquele mesmo torpor que atacou os meninos. Seria a Polícia Obscura parando o tempo outra vez?

"Essas crianças são doidas, todas elas, e a gente já não sabe mais o que fazer", disse um resignado Duílio para mim.

Duílio faz a sua parte, descendo a cinta em suas duas criaturinhas sempre que "necessário". Isso nunca resolveu os problemas, "sêo" Octávio descendo a cinta no Renan nunca resolveu os problemas, nada disso iria adiantar. Nem cessar. Porque já que sabiam que isso não iria resolver, preferiam descarregar suas frustrações nas crianças (apesar de que eu não defendo as surras, mas por vezes não dá para crucificar os pais por isso — pelo menos não como a Polícia Obscura crucificou o prefeito uns dez dias atrás).

"O que nós vamos fazer?", perguntou o pai.

"Eu gostaria bem de levar a Polícia a Conselho", afirmou o irmão mais velho do prefeito.

"O que isso vai resolver? Vai botar o Renan pra trabalhar com o gado junto com o Andrés ou prestando serviço comunitário na Prefeitura por duas semanas ou dois meses, depois acontece tudo outra vez?", perguntei. Eu questionava as soluções da terra para os problemas, embora não tivesse soluções melhores.

"Não sei se vai resolver, mas deixar as coisas passarem batidas assim todo o tempo acho que resolve menos ainda", afirmou Adriano, contrariado com o meu questionamento.

O pequeno construtor em questão era um adolescente muito doce, mas tinha um histórico de conflitos comigo que valia a pena ser considerado não importa o que eu dissesse a ele. No entanto, eu disse a ele que ele tinha razão: a humildade das punições era melhor que a impunidade pura e simples.

"Eu também concordo com o meu filho. Se não podemos impedir essas crianças de fazer o que fazem, vamos ao menos fazer eles verem que o que eles fazem tem consequências", declarou Aparecida, apoiada pelo marido. Os Conselheiros pareciam fechados nessa questão.

Andrés apareceu logo em seguida; sonado, mas querendo participar da conversa. Não se entusiasmou com a proposta de levar os policiais a Conselho. Aconselhou mesmo que não se fizesse isso. Eu e todos ao redor quisemos saber por que. Ele nunca explicou suas razões, além de dois ou três motivos fúteis.

Seria porque Renan o considerava um traidor por se juntar ao Bruno com uma finalidade tão próxima à natureza depois da "humanização" dos touros da cidade? Porque ele não queria irritar o policial mais ainda já que Renan o considerava um traidor?

No final, evitei mencionar o assunto tão misterioso e ancestral com Aparecida ali do lado, assim tão sujeita a faniquitos diversos de um infinito e ancestral pavor.

"Há um ponto que ainda não consideramos", eu acrescentei, "se houver punição para o Renan e o Anderson por isso e mais a crucificação do ex-prefeito e ele aceitar e chamar a responsabilidade da punição sobre o Jardineiro Celeste também? Afinal, ele deixou uma recordação do jardim que ele pretendia me dar contra a minha vontade e isso foi visto pelos escoteiros que acamparam em minhas terras. Aliás, ele estaria certo em invocar esse tipo de coisa e eu apoiaria. Se não se puniu o Jardineiro Celeste, por que punir agora a Polícia Obscura?"

"Ouçam a voz da sabedoria", recomendou Andrés e, engraçado, não parecia uma sátira, ele falava sério. Como eu, conhecia as implicações daquilo tudo.

"E talvez seja até esse o plano dos dois afinal", Andrés continuou em voz suave, "como no dia do acerto do Renan e do Anderson no Mithraeum. Ele jogou pra perder porque viu que poderia arrastar o chaveiro junto. E se ele estiver pensando o mesmo a respeito do Jardineiro Celeste? Quem garante que não? Quem sabe o que passa naquela cabecinha?"

"Sêo" Danilo apareceu um pouco depois e estranhou ver o clã reunido em minha casa. Mas disse que apesar dos prejuízos concordava com Andrés que não se deveria levar ninguém a Conselho. Concordou com a teoria de Andrés que poderia ser um plano, disse que era perfeitamente possível, "a gente não sabe o que ficou carregado ali naquela cabeça pelo tempo do Santuário e depois o Andrés se juntando com o Bruno e isso pode ter parecido uma traição para ele. Não falo nem dos tempos antigos, mas esse negócio mais recente do Jardineiro Celeste mesmo."

Houve uma pausa gigantesca, interminável.

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