domingo, 16 de agosto de 2009

Lugar-tenente

Acordei de um dos pesadelos mais assustadores que já tive. Acendi a luz da cabeceira, assustada, e havia uma coisa preta na minha cama, parecendo uma protuberância esquisita em meio aos lençóis. Levantei apavorada com aquilo e já ia gritar quando a protuberância ou o que quer que fosse me olhou nos olhos e deu um grito.

Aí, eu descobri a origem do pesadelo. Era o Renan. Dormindo comigo na minha cama. Ele explicou que tinha tido um pesadelo e por isso veio dormir na minha cama. Engraçado, um pesadelo acordando à noite com outro pesadelo. Eu pensei que ele tinha voltado para casa, mas o diabinho tinha mesmo era dormido aqui. Por isso o pesadelo bizarro dentro da noite. Fiquei olhando para ele enquanto ele falava, sonada, mas ainda assustada com o pesadelo. E ele permanecia ali. Falando comigo. Um pesadelo minúsculo que nem as botas tinha tirado para dormir.

"Não quero você dormindo de botas na cama", eu disse severamente e a coisinha preta se encolheu. Tirou as botas e se deixou cair na cama outra vez. Eram sete e meia da manhã. Acariciei levemente a cabecinha dele, pensando na realidade do povo lá fora, preso num dia qualquer há quase uma semana de distância de nós. Levantei, larguei o menino caído lá e fui fazer café. Ao descer, dei com o outro policial dormindo no sofá. Estava bem guardada e os pesadelos eram só um efeito colateral de ter os dois monstrinhos minúsculos em casa numa mesma noite de sono. Não acordei o Anderson, mas não procurei fazer mais silêncio do que já estava. O ferreiro acordou espontaneamente e se desculpou por não avisarem que iriam dormir aqui.

Quando o café estava pronto, ouvimos o Renan descer. Ficamos tomando café em silêncio por um tempo.

"O que nós vamos fazer agora?", perguntou o ferreiro, quebrando o silêncio incômodo.

"Você eu não sei, mas eu vou comer mais pão de queijo", respondeu Renan com seu minúsculo sorrisinho luminoso costumeiro.

"Eu estou falando dos escoteiros, Renan; esse problema do tempo deles parado desse jeito", Anderson ficou impaciente com o parceiro.

"E eu lá sei? O Andrés e o Bruno colocam essa penca de bicho-grilo tudo aqui dentro, caem no mesmo feitiço dos outros e ainda tem o jardim que está aqui mas não está aqui, que é obra dos outros dois bicho-grilos, do meu irmão mais velho também, que é outro bicho-grilo de merda."

O menininho dava voz aos meus próprios pensamentos. "Sêo" Danilo chegou e se juntou ao Grande Não Sei reinante em minha casa. O velho sertanejo mesmo não conseguia pensar em nada digno de nota.

Lá por umas seis da tarde, retribuí a visita a "sêo" Danilo, no horário tradicional em que já me habituei a visitá-lo. A casa estava muito mudada, era mais uma casa no sentido da alvenaria agora. O poste padrão da CEMIG em frente à casa. Trouxe meu laptop, contando com a eletricidade. O velho sertanejo não me esperava e ficou feliz com a visita.

"Mas chega pra dentro, "sá" Stella", ele disse sorrindo, "já estava esquentando água pra fazer café e tudo."

E ele me mostrou as lâmpadas elétricas nos cômodos, contente com a nova fonte de luz. Me disse que agora podia ler por mais tempo.

"Criosene ilumina bem, mas também faz uma sujeirada que a senhora não tem idéia." E ele sorriu novamente.

"E essa agora, hein, "sêo" Danilo?", perguntei, fazendo o assunto voltar ao que era.

Ele ficou em silêncio por um tempo. No final, disse que tinha estado pensando no que poderia ter acontecido e que não chegou a nenhuma conclusão. Podia ser tudo, podia ser nada, ele disse. Concordei. Com uma cidade disposta de forma tão caótica como Taurinos sempre tinha sido, pode chegar um dia em que um nó vai se fechar sobre a cidade e não vamos ter nenhuma solução sem pé nem cabeça para esse nó. O sertanejo concordou que havia uma possibilidade disso acontecer, embora a ideia lhe assustasse.

O café ficou pronto e bebemos em silêncio por algum tempo. "Sêo" Danilo me olhou de maneira estranha e me disse que vinha examinando sua memória e que uma das coisas que aconteceu no dia em que os escoteiros chegaram foi que justamente nós combinamos de eu visitar "sêo" Danilo aqui em sua casa. Me lembrei de que realmente tínhamos combinado isso que fiz hoje de forma tão espontânea. Ele disse que, do que ele conseguia se lembrar, foi outra das coisas realmente diferentes que aconteceram no dia.

Começava a escurecer e ouvimos o som de cavalos lá fora, ao longe. Pareciam ser dois. Olhei para "sêo" Danilo. Os dois cavalos pararam em frente à casa de "sêo" Danilo e eu ia olhar pela janela, quando o sertanejo me puxou para trás bruscamente.

"Nunca olhe pela janela com som de cavalos a essas horas da noite. A janela enquadra e dá muito mais clareza ao formato do que quer que esteja lá fora. É como se fosse umas dessas lentes de aumento. Foi o que aconteceu quando a senhora viu o Renan uma vez pela janela do seu alpendre, lembra?"

"O que a gente faz?"

"Espera", ele murmurou com o indicador sobre os lábios.

Os cavalos tinham parado. A sensação era aquela do ar pesado que já tínhamos experimentado tantas vezes. Um ar irrespirável, quando tudo em volta, chaleiras, fogão à lenha, lâmpadas, parecia ter vida, mas uma vida mórbida e movimentos rastejantes. O velho sertanejo se persignou.

""Sêo" Danilo! Vamos conversar, "sêo" Danilo!", a voz era aquele vômito grave de uma voz passada num triturador misturado ao som de tambores de gasolina rolando uma escadaria. Era Anderson falando. Pensei: que assunto eles teriam para tratar com "sêo" Danilo naquele aspecto? Naquele espectro.

"Pode abrir, "sêo" Danilo, não estamos mais armados", agora era a vozinha minúscula do Renan, "eu trouxe até pão de queijo; o senhor não merece, mas eu trouxe até pão de queijo", ele disse ao entrar, nos mostrando um lenço branco, "pra gente comemorar que a senhora finalmente resolveu vir e conhecer a casa nova do "sêo" Danilo."

"Renan, tem pelo menos uns vinte pães de queijo nessa sacola", riu Anderson olhando para nós de modo matreiro.

"Sêo" Danilo e eu nos entreolhamos sem nada entender. Pelo menos eu não estava entendendo. Já ele parecia ter noção do que estava acontecendo.

""Sêo" Danilo, a gente tem o maior respeito pela sua pessoa. O senhor não estava querendo sacanear a gente com aquele negócio de chupacabras…?"

"Achei que a gente já tivesse discutido isso, Renan", eu tentei.

"A senhora achou errado. Mas fez o certo quando resolveu visitar "sêo" Danilo. Os escoteiros foram embora da cidade agora pouco", retrucou Renan, "fiz o tempo deles liberar só quando a senhora resolvesse visitar o "sêo" Danilo e agora que está aqui, eles se foram. Seu amiguinho estava chorando quando entrou no ônibus. Acho que ele não acreditou quando percebeu que tinha perdido quase uma semana aqui."

"Foram vocês todo o tempo", o velho sertanejo se recusava a acreditar.

"E estiveram na minha casa hoje de manhã, fingindo que estavam preocupados com o problema dos escoteiros, o senhor acredita?"

Como o velho sertanejo, eu ainda me recusava a acreditar que os dois tinham segurado os escoteiros no mesmo dia em que chegaram para o Jamboree. Fiquei olhando os dois meninos de preto enquanto eles ensaiavam dar uma risadinha matreira típica daqueles mineirinhos. Enfurecida, eu disse que eles deveriam ir embora. Anderson respondeu que eu não estava em minha casa.

"Nem ela, nem vocês, sô!", cortou o sertanejo, com um semblante severo, "isso não é jeito de se falar com os mais velhos, sô Anderson! Vocês ouviram "sá" Stella, agora peguem o pão de queijo de vocês e sumam."

Eles se levantaram, "da próxima vez que chamarem a gente de algum apelido, a coisa vai ficar feia nessa cidade, eu juro", grunhiu Renan, pegando o saco de pão de queijo de modo brusco e saindo emburrado, acompanhado de seu fiel e valente (e emburrado) lugar-tenente.

Fiquei encafifada quando entendi que eles seguraram os meninos em minha casa até que eu viesse visitar "sêo" Danilo. O sertanejo disse ter comentado com eles sobre a visita no mesmo dia em que tínhamos combinado isso, mas nunca imaginaria que Renan e Anderson fossem pegar o mote para usá-lo como limite automático de sua praga de tempo sobre os escoteiros. Porque ninguém nunca imaginaria que Renan e Anderson fossem pegar o mote desse jeito.

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