terça-feira, 18 de agosto de 2009

A figura do cão

Primeiro foi o vácuo. Depois, meu corpo caindo no vazio, um abismo muito além do que eu poderia acreditar se alguém me contasse. Um abismo infinito onde eu teimava em cair sem parar, o grito de horror contido em minha garganta sem jamais deixar a garganta em momento algum.

Despertei, não sei como. Acordei daquilo e estava sentada em minha cama, curtindo o horror e a irrealidade do momento pós-sono. Ao mexer a perna esquerda, um objeto quase me perfurou. Uma chave de fenda em minha cama. Como veio parar aqui?

Desci até o térreo. A janela que dava para o alpendre aberta. Tentei abrir a porta. Estava trancada. Trancada??? Aquela porta não trancava desde a construção da casa. A fechadura não era mais a mesma. Fui à janela olhar, pisei em algo mais que quase perfurou meu pé ainda descalço. Uma chave, inserida na argola de um chaveiro. Experimentei a chave na porta. Servia perfeitamente e sem o mínimo esforço. Saí para o alpendre e não havia viva alma lá fora. Um vento frio do sol meio que oculto entre nuvens me assolou por instantes. Entrei, fechei a porta sem trancar e fui fazer café. Eram nove e tanto da manhã.

Enquanto tomava o café, "sêo" Danilo apareceu. Ofereci café a ele e mal ele se sentou para tomar o café, lhe contei sobre o sonho horrível, a chave de fenda na cama e a troca da fechadura. Ele me ouviu com atenção e começou a cerrar o cenho.

"O chaveiro deve ter lhe causado problemas de sono além de ter solucionado o problema da sua fechadura", disse o velho sertanejo sem sombra de dúvida no que dizia.

"O senhor acha que…"

"Tenho certeza. Ele veio aqui, arrumou a fechadura e passou um bom tempo no seu quarto apertando o seu pescoço. Foi o que eu lhe disse que aconteceu com meu avô quando ele contou sobre o Jurupari."

Anderson estava conferindo mercadorias na porta da loja no final da tarde, quando Duílio deu a volta na praça e estacionou na guia do outro lado da rua. Descemos "sêo" Danilo e eu, Duílio esperou no carro. Anderson sorriu ao nos ver, mas viu que seu sorriso não encontrava correspondência.

"Gostou da fechadura nova?", ele perguntou meio sem-graça, olhando para mim e "sêo" Danilo alternadamente.

"Adorei. O que não gostei foi o preço."

"Ah, eu não faria isso por dinheiro", ele sorriu novamente.

"Mas pelo prazer puro e simples de me provocar pesadelos você faria, não?"

O sorriso se desvaneceu de vez. Ele ficou me olhando calado e depois voltou a conferir as mercadorias, "a senhora às vezes fala demais."

"Sêo" Danilo e eu trocamos olhares.

"Sim, era o que se dizia do Adriano, lembra? Aliás, a família dele só não está chamando vocês de santos."

Anderson ficou em silêncio. Eu disse a ele que ou eu falava demais ou eles assumiam o que faziam de menos. Perguntei se esperavam que eu mantivesse segredo sobre a idiotice deles durante o Jamboree. Ele não respondeu e só fazia olhar a prancheta em busca de seus dados. Estendi a ele a chave de fenda que encontrei sobre minha cama. Ele a tirou de minha mão, sem-graça e nervoso e entrou na loja para guardar a ferramenta.

"Eles vão por isso em Conselho?", agora ele parecia preocupado ao retornar à frente da loja, "porque se forem…"

"Vocês vão reabrir o caso do Jardineiro Celeste?"

Anderson ficou em silêncio. Via agora que estávamos "sêo" Danilo e eu um passo à frente de seu plano B. Pediu que fôssemos embora porque já tinha perdido a conta das mercadorias duas vezes. O sertanejo parecia disposto a cooperar, mas eu pretendia falar com o ferreiro por mais algum tempo.

Anderson viu que eu não iria sair e sorriu para mim um sorriso luminoso. Luminoso e estranho, deformando as beiradas do rosto dele da borda para o centro transformando todo o conjunto num sorriso grotesco, horrível de um rosto cuja feiura eu já conhecia de muitas e muitas rondas.

Fui me perdendo na luz morta daquele sorriso até que a luz se misturou com outra e eu tinha de repente Duílio e "sêo" Danilo sacudindo a minha cabeça, eu estatelada num banco da praça principal.

"Eh, "sá" Stella, às vezes a hora de sair é mais cedo do que a senhora pensa…"

"O que é que faço aqui, quero ir lá falar com…"

"A senhora é louca, não vai mais lá não, vamos é embora daqui antes que ele resolva vir até a praça."

Começou a juntar gente pra ajudar ou simplesmente de curiosidade; eu temia que formassem uma roda. Olhei para a porta da loja de ferragens e no escuro interior me pareceu ver algo como um cachorro enorme oculto pela penumbra. Não havia nenhum cachorro na loja.

"Que cachorro é aquele na porta da loja?", perguntei aos dois enquanto me punha de pé, "é por isso que eu digo que a gente vem que sair daqui assim que puder, por exemplo agora", disse Duílio, abrindo a porta do carro e me enfiando dentro. Eu quis abrir a janela, mas Duílio agiu de seu lado e a fechou novamente.

Uma massa negra emergiu de dentro da loja de ferragens, espalhando os populares como pombas que corriam gritando para as ruas ao redor e se esborrachou de focinho e tudo na janela fechada que eu tinha insistido em abrir. Um cão negro. Monstruoso.

Desesperado, Duílio manobrou o carro para a frente bruscamente atingindo o cão de raspão e quase fazendo o animal rolar por cima da capota para se estatelar no chão por trás de nós. Eu nunca o vi dirigindo tão rápido pelas ruas acanhadas da cidade. Não levamos dez minutos para chegar à fazenda Taurinos em segurança.

A noite caía sobre Taurinos. Pedi a Duílio que me deixasse em casa. Ofereci pouso a "sêo" Danilo e ele acabou aceitando de tão assustado que ainda estava. Ao chegarmos ao portão de minha casa, um arrepio correu pelas espinhas de nós três: havia um cavalo preto amarrado ao portão de minha casa. Duílio nos olhou interrogativamente, "sêo" Danilo e eu olhamos para Duílio tão interrogativamente quanto. Renan? Ele não tinha a chave da minha casa. Não havia ninguém em frente à casa, nem parecia haver ninguém no alpendre. A não ser que estivesse atrás…

…ou dentro da casa.

"Sêo" Danilo, Duílio e eu entramos por outro lado da cerca, evitando passar perto do cavalo. A luz das estrelas iluminava o caminho naquele breu inicial da noite. Fomos nos aproximando da casa devagar usando nada mais que os olhos acostumados ao breu da noite para enxergar o caminho. Ninguém no alpendre.

Acendi a luz do alpendre e mariposas e outras criaturinhas noturnas já começavam a encostar na parede do alpendre atraídas pela luz, lançando sombras esquisitas e tortuosas sobre a superfície de tijolo. Girei a chave na fechadura nova em folha o mais devagar que pude. Os dois homens me olhavam assombrados. Abri a porta do mesmo modo. Acendi a luz da sala e lá estava ele sentado na escuridão numa poltrona.

Saber de antemão que era ele não amenizou o choque de vê-lo ali à noite na penumbra da minha sala. Ele estava com um molho de chaves nas mãos. Disse que eram cópias caso eu precisasse e as largou sobre a mesa de centro. Se levantou e foi embora passando pelos homens que olhavam ainda mais assombrados que antes. Eu fui até o alpendre falar com ele, mas não havia nada lá. Nem ele, nem o cavalo dele. Nem o som do cavalo partindo.

"Ele foi para casa, "sá" Stella, ou fazer ronda, já que ele está assim de preto", disse "sêo" Danilo quando me viu voltar à sala. Duílio ainda tinha os olhos do tamanho de dois pires enquanto se persignava loucamente no sofá.

Disse a Duílio que ele poderia esperar até passar o café. Ele esperou. Ficamos conversando sobre o dia de hoje. Insisti que o que eu tinha visto sair da loja era um cão negro. Os dois disseram que não duvidavam que fosse um cão negro. Disseram que o que duvidavam mesmo era que Anderson tivesse cachorros.

"Mas então o cachorro enorme que saiu da loja era…"

"Era, D. Stella. Por isso que eu estava doido pra sair dali. Não viu o tanto de gente espirrando pra todo lado? É o que o povo diz, cavalo, cão, pato, essas coisas."

"Se "sêo" Duílio não fecha a janela ele entrava no carro, "sá" Stella; nó, ia ser um inferno. Ele passou por mim agora pouco que não para de me dar calafrios e olha quanto tempo faz que ele já saiu daqui."

"E ele é só um desses moleques que moram nesta cidade, só isso", acrescentou Duílio.

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