sábado, 8 de agosto de 2009

Prefeitura

Andrés reclamou de eu não ter ido hoje de manhã em sua posse como o novo prefeito de Taurinos. Eu disse que estava dormindo e não queria acordar cedo. Eu não iria à posse de qualquer maneira. Achei horrível a história da crucificação do prefeito e todas as circunstâncias que a envolveram. Ir à posse seria como comemorar o estado lamentável em que o ex-prefeito se encontra no meu entender. Mas eu disse que ele era bem-vindo e que tinha sido bom ele vir. Contei o incidente da noite anterior com o Kid Abelha e ele disse que tinha "visto" e "ouvido" tudo.

"Bom, então você sabe o tranco que foi. A confusão. Ficou eu e "sêo" Danilo lá apagando o incêndio da Polícia Obscura. Os músicos desesperados sem saber o que estava acontecendo"

"E no final o Anderson se tocou", observou o novo prefeito de Taurinos (o diabrete ficou nos vigiando enquanto olhávamos o céu noturno), "entendeu que podia ter matado três pessoas de verdade."

"E que não fossem, fossem projeções dos músicos verdadeiros, quem garante que eles não iriam levar chumbo aqui e aparecer mortos lá no Rio como aconteceu com os caras de Santos que vieram atrás de mim?"

"Diacho… A gente precisa conversar com eles, D. Stella", disse Andrés, parecendo alarmado.

"Precisa sentar e conversar, eu sempre disse que isso tem de ter um limite. Se eu não estivesse lá com "sêo" Danilo, os três poderiam estar mortos a essa hora, Andrés. São três pessoas conhecidas pela mídia, não os ratos que vieram atrás de mim. Imagina se isso começa a atrair gente pra cá, que tiro no pé deles mesmos."

Eu me esforcei para fazer Andrés entender que tínhamos de convencer os dois policiais que atrair mais gente para cá com essas atitudes seria dobrar ou triplicar a carga de trabalho deles mesmos. Além de criar uma aura mística totalmente indesejável para a cidade, atraindo massas como no caso de São Thomé das Letras, cidade bem perto daqui.

"Desse jeito, daqui a pouco Taurinos entra na rota da Estrada Real."

"Creio em Deus padre", e Andrés persignou-se.

Discutimos o assunto da Polícia Obscura na Prefeitura. Presentes estavam o prefeito, o irmão mais velho do prefeito, todo o efetivo policial de Taurinos, eu e "sêo" Danilo. Os policiais me olharam com uma ponta de ódio. Para eles, eu estava me queixando da atuação deles em defesa da sociedade local.

"Renan, vocês não tinham que fazer todo aquele estardalhaço", asseverou o prefeito, apoiado de perto por "sêo" Danilo, "se podem testar com sal grosso, de quanto sal grosso vocês precisam?"

Renan estava de tromba mas respondeu que um grão de sal grosso era suficiente para testar qualquer entrante. Disse que o comportamento de um entrante era diferente do de uma pessoa comum e que o sal grosso só serviria para os casos de muita dúvida, porque a mera presença do sal grosso já denunciava o entrante.

"Então por que todo o constrangimento com os músicos? Quero dizer, não deu pra notar pelo tal comportamento que eles eram pessoas de verdade?", eu apertava os meganhas minúsculos.

Renan e Anderson ficaram em silêncio, seus olhos esporadicamente encontrando os meus e despedindo faíscas de ódio. "Eu tenho um recado; um ódio interno guardado", como um dia gravou Luiz Melodia.

"Renan ou Anderson, a D. Stella está fazendo uma pergunta", lembrou Andrés.

"A gente não é surdo, Sr. Prefeito de Taurinos", disse Renan secamente.

"Então responde porque aí a gente vai ver que além de vocês não serem surdos também não são mudos", eu pressionei.

"A gente vai testar nos casos que tiver dúvidas mesmo que sejam pequetiticas", declarou Renan enfim, enquanto Anderson se dividia em olhar para nós e para o parceiro.

"E olha, chegar com educação na casa dos outros. Já disse que não quero a Polícia a cavalo no meu terreno sem necessidade, apontando arma para as pessoas que estão comigo. Isso foi e é abuso de autoridade. Não houve a menor necessidade disso. Fui eu quem os levou para dentro, já sabia a confusão que iria ser quando vocês chegassem. Não estavam aqui para fazer mal a ninguém, apenas erraram o caminho."

A gente fala as coisas na esperança de que vá adiantar alguma coisa. Mera ilusão. Os policiais ainda assim me olhavam com uma ponta de ódio. Para eles, eu estava me queixando da atuação deles em defesa da sociedade de Taurinos mesmo assim.

E a Polícia Obscura foi me cercar em casa, no fim da reunião, numa espécie de lobby antirrepressivo. Era só o que me faltava, os pestinhas dos policiais pitbulls agora me enchendo o saco em casa.

"A senhora, hein? Vai ficar de Corregedora agora, é?", rosnou Renan de maneira afetiva (e efetiva).

"E se ficar, qual é o problema?", rosnei retribuindo a ele um pouco de sua doce ferocidade.

"Por que a senhora não disse isso tudo pra gente ontem? Por que teve que dedurar pro…"

"Renan, em primeiro lugar, o Andrés "viu" e "ouviu" tudo. Conversei com ele e já imaginava que ele tinha "visto" aquilo acontecer, não dedurei ninguém. Em segundo lugar, eu estava querendo relaxar um pouco depois daquela bagunça e falar sobre ela na mesma hora só ia me deixar mais nervosa. E vou dizer mais: você é bem idiota se pensa que pode fazer alguma coisa nessa cidade que a cidade inteira não fique sabendo no dia seguinte."

Renan não disse nada, mas quase acabou fazendo beicinho. Me dava vontade de abraçar o menino e apertar muito aquela coisinha fofa quando ele ficava com aquela carinha linda emburrada. Mas às vezes não dava pra ser muito carinhosa com ele ou ele entendia tudo errado e como uma boa desculpa para aprontar outras. Então, não abracei, não apertei, mas fiquei discretamente curtindo a trombinha dele. Com aquela expressão, ele parecia mais como uma borboleta procurando comida.

Anderson veio também, mas ficou em silêncio. Me olhava mordido, mas não dizia nada. Eles jogavam usualmente o jogo do "você não sabe o tanto que eu ralo pra defender você". Eu sabia como era. Tinha horas que eu adivinhava o jogo, a intenção, o eterno conflito de interesses reinante na cidade. Tinha horas que nada fazia sentido, nem à luz do jogo, da intenção, ou do eterno conflito de interesses.


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