sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Máquina pneumática

De volta de Varginha, onde eu, Duílio, Aparecida e "sêo" Danilo fomos visitar o prefeito de Taurinos. Senti muita pena do pobre homem. Ele não estava muito melhor do que o estado de choque sugerido por "sêo" Danilo. Os Conselheiros ficaram em choque eles mesmos ao ver através da vidraça as mãos e os pés do prefeito enfaixados. O prefeito, através de uma enfermeira, deixou uma carta de renúncia nas mãos de Duílio. Ele estava dormindo e a enfermeira disse que ele tinha deixado a carta com ela para que fosse entregue a qualquer cidadão de Taurinos que viesse vê-lo. Ele não retornaria mais ao cargo e só retornaria à cidade pelos motivos óbvios de sua residência em Taurinos. Bom, não era para menos. Eu não culparia a pobre criatura.

"O vice-prefeito vai ter que assumir a Prefeitura agora", disse "sêo" Danilo quase à meia-voz para mim quando estávamos um pouco distantes dos Conselheiros.

"E quem é o vice-prefeito?"

"Um ex-paciente seu aqui da cidade", tornou o velho sertanejo.

"Meu bom Mitra… Andrés???"

"O próprio. Tem conselho até no nome, "sá" Stella."

"Era só o que nos faltava."

"Mas, "sá" Stella, o menino já era prefeito de Taurinos de fato e de direito. O prefeito ali não mandava nada. A senhora não lembra do tempo da Lei dos Touros? Era o gordinho no comando da cidade todo o tempo…"

""Sêo" Danilo, pelo amor de Mitra, tem um exército de adolescentes pra chegar na cidade e como é que o pirralho vai fazer pra ser prefeito de Taurinos e escoteiro ao mesmo tempo???", e eu disse a "sêo" Danilo que iria ser uma gracinha ouvir Andrés dizer coisas a seu grupo como, "desculpem, adoraria ajudar a montar a fogueira para hoje à noite, mas tenho que ir à Prefeitura despachar."

O velho sertanejo coçou a cabeça. Claro, não tinha parado para pensar nisso. No meio-tempo, nem que o prefeito não tivesse renunciado, Taurinos ainda assim não teria um prefeito, com o homem destroçado no Hospital de Varginha. Andrés teria forçosamente de assumir o cargo.

"Mas que chapa foi essa, incluindo uma criança?", perguntei para subitamente me dar conta de minha própria ingenuidade.

"Mas que chapa que nada, "sá" Stella; a senhora acha que aqui é como lá em Santos? O Andrés era o prefeito e sempre foi e botou o hominho lá pra ficar de fachada."

Eu me calava. Mesmo, que interessaria isso agora? "Sêo" Danilo tinha razão. Eu sabia de onde vinha ou parecia vir o comando da cidade. Apostava eu que nem mesmo o nome da família veio em vão.

"Não veio mesmo, o nome tem que ver com a função que eles sempre tiveram na cidade", "sêo" Danilo explicou.

Ao chegarmos à fazenda Taurinos, Duílio entregou a carta ao filho mais novo já no alpendre. Andrés pegou a carta sem entender, olhou para todos nós, limpou os óculos antes de abrir o envelope. Leu e um traço de desânimo foi se acentuando em seu rosto.

"Sou o prefeito de Taurinos agora", ele disse sem muita convicção.

"Pois é", disse "sêo" Danilo, "agora o leme está nas suas mãos, "sêo" Andrés. Use-o com sabedoria."

Eu dei uma risada alta. O velho sertanejo e os Conselheiros me olharam aturdidos. Me desculpei e fui para casa, acompanhada por "sêo" Danilo.

"Desculpe, "sêo" Danilo, mas o senhor dizendo a ele para usar o leme com sabedoria foi engraçado. O senhor é um otimista incurável", eu disse, assim que nos sentamos no alpendre.

"Eu tinha que dizer alguma coisa, sô, o menino parecia tão desanimado…", o velho sertanejo sorriu encabulado.

"É, eu entendo", e eu ri de novo.

Houve uma pausa enorme. Desliguei a luz do alpendre, onde as mariposas e outras criaturinhas noturnas já tinham começado a encostar na parede atraídas pela luz, lançando sombras estranhas sobre a superfície de tijolo. Ficamos contemplando o céu noturno. De um lado da estrada começou ao longe o som de cavalos se aproximando. Do outro lado da estrada começou ao longe o som de um carro se aproximando. Eu ia comentar sobre isso, sobre como os sons se sobrepunham no silêncio da noite, quando "sêo" Danilo me deteve com um gesto, se abaixou e aproximou o ouvido do chão, retirando-o logo em seguida com uma careta.

"São eles?"

"Os próprios. Ainda estão longe, mas já dá pra notar de quem se trata."

O carro que eu tinha ouvido vindo do lado oposto, o da saída da cidade, agora encostava no portão. Um homem desceu, me chamou e ficou esperando no portão. Acendi a luz do alpendre e fui atender junto a "sêo" Danilo que já demonstrava estar alarmado pela confluência de fatores à frente. Iluminado apenas pela luz do alpendre que deixamos lá atrás, ao chegar mais perto, o rosto dele me transmitiu uma certa sensação de familiaridade. Eu já tinha visto aquele homem antes. Mas onde? Onde? Tinha medo dessas situações quando os rostos e vozes me soavam familiares.

"Boa noite, senhora", me disse o homem educadamente, "a senhora saberia dizer se passamos muito do caminho de Varginha?"

"Uns duzentos quilômetros, eu diria. Eu não lhe conheço de algum lugar?"

""Sá" Stella, eles estão vindo. Não vai dar tempo", o velho sertanejo estava apavorado.

"Talvez. Nós temos uma banda e tocamos muito pelo sul de Minas. Estamos justamente indo para Varginha tocar esta noite", o homem estranhou o comportamento de "sêo" Danilo e perguntou se estava tudo bem.

"Não, não está nada bem. Quantos vocês são no carro?"

"Três comigo, minha amiga que canta e que está dirigindo e meu amigo do saxofone está no banco de trás."

Imediatamente, ao ouvir a palavra "saxofone", me lembrei quem eles eram.

"Sua amiga se chama Paula e o seu amigo George? E seu nome é Bruno?"

"Bom, então a senhora nos conhece", ele parecia aliviado, "pois é senhora, só queríamos a saída da cidade pra chegar em Varginha a tempo pro…"

"Olha, Bruno, escuta com atenção; vocês não tem tempo pra achar a saída da cidade agora. Entra todo mundo pra minha casa já antes que esses cavalos cheguem aqui", Paula já colocava a cabeça para fora da janela do motorista para entender o que se passava. Tirei os dois de dentro do carro e coloquei todos para dentro de casa às pressas, "desculpa gente, agora não dá tempo nem pra explicar". Apaguei a luz do alpendre e esperamos todos na sala em silêncio, os músicos sem nada entender e obviamente apavorados com a recepção na cidade de interior.

"Chegaram, "sá" Stella", o velho sertanejo sussurrou.

Os cavalos se aproximavam do alpendre devagar. O ambiente se tornou pesado como capa de chumbo derretido. Os músicos começaram a sentir falta de ar. A aldrava bateu cinco vezes, como se fosse rachar a porta em dois.

"D. Stella! Abra em nome da Lei!", a voz era aquela de trovão envolto em um som de tambores de gasolina descendo loucamente por uma escadaria sendo dinamitada; o que se seguiu lá fora foram risadinhas sinistras de um adolescente e de um pré-adolescente, "legal a frase né, D. Stella, agora abre a porta, por favor. Tem um carro com placa do Rio de Janeiro parado aí na porta e eu tenho impressão de que eles estão aí com a senhora", disse uma vozinha microscópica lá fora. Paula comentou assustada que nunca tinha ouvido uma voz daquela e muito menos uma transformação daquilo naquela vozinha que ouviu a seguir.

"Eu vou abrir, mas peço um tempo", eu disse, já nervosa.

"A gente não tem a noite toda, D. Stella", disse Anderson, do outro lado da porta. A atmosfera sinistra da Polícia tinha se suavizado, mas sem dúvida voltaria pior. Expliquei aos músicos que havia dois meninos do outro lado da porta que tinham vindo para matar os três.

"Eles matam qualquer pessoa na cidade sem autorização para estar aqui. Se eu não conseguir provar que vocês são vocês, não vai prestar."

Paula ficou nervosa, acusou o guitarrista do grupo de ter errado o caminho e levado o grupo todo no rebosteio. Pedi calma e disse que iria conversar com eles. "Sêo" Danilo tentava acalmar a cantora e os outros dois a seu modo. Abri a porta e os dois meninos olhavam para mim com as cabecinhas tortas, como cachorrinhos que não entendem o que se passa com você. Eles portavam um rifle com uma lanterna fortíssima acoplada cada um e não tinham vindo conversar.

"Então, D. Stella. Entrega os forasteiros e a gente cuida do resto.", Renan sorriu um sorriso luminoso, esticando o pescoço para tentar enxergar o que havia na sala escura.

"Renan e Anderson, os três que estão aqui…"

"Sim, uma mulher e dois homens. Nós sabemos. Estamos acompanhando eles desde que entraram em Taurinos. Vai, entrega logo os três, D. Stella", esclareceu Anderson nos últimos estertores de sua boa vontade e paciência.

"Olha, eles são de um grupo de músicos do Rio de Janeiro. Vieram tocar em Varginha e pegaram o caminho errado."

"Bem errado", Renan respondeu, "já passaram bem duzentos quilômetros de onde deviam estar. A senhora conhece eles, D. Stella?"

"Conheço. Eles três tem um grupo no Rio chamado Kid Abelha, começaram nos anos oitenta…"

Os dois riram do nome do grupo e apenas Anderson parecia saber do que se estava falando. Ele parecia já ter ouvido falar do grupo, mesmo não sendo seu tipo de música favorita nem de longe.

"Diz para eles saírem. Um por um", Renan e Anderson estavam apontando seus rifles para a porta.

"Meninos, não acho que seja necessário apontar…

"Meninos é a puta que te pariu. Não é assim que a senhora fala? Agora diz para eles saírem. Um por um."

A perspectiva era sombria. Ele usava meu discurso contra mim agora, o diabinho. Eu já me via assistindo impotente à mutilação, desmembramento e descarnamento ainda em vida do grupo Kid Abelha, um grupo que compôs temas que marcaram vários momentos de minha vida. Eu tinha pressa e tanta coisa me interessava. Mas nada tanto assim.

Primeiro saiu o saxofonista, pálido como o inferno ao ver as duas criaturinhas de preto mirando sua cabeça com um rifle cada. Depois, a cantora e por fim o guitarrista, seguido de "sêo" Danilo. Todos devidamente mirados e iluminados pelos rifles.

"O senhor pode por favor tirar os óculos escuros?", pediu Renan ao saxofonista, confuso sobre o porque de uma pessoa usar óculos escuros à noite, "assim é melhor, pelo menos não parece uma mosca."

"Taurinos agora virou festa, é escoteiro, é músico chegando de toda a parte, onde é que a gente vai parar? Eu vi essa moça na Internet, conheço ela sim", disse Anderson com a luz no rosto dela.

Anderson perguntou quem tocava o que. Os músicos reponderam um tanto quanto embaraçados e o ferreiro pediu que eles tocassem uma música deles para provar quem eram. Os três fizeram menção de ir, mas Anderson segurou Paula pelo braço.

"A moça fica. E por favor, não tentem dar uma de espertos e sair com o carro, a gente mata a moça aqui e vocês dois antes de vocês sonharem em chegar a Varginha."

Ela se soltou de Anderson com um puxão, assustada e revoltada. O ferreiro se desculpou e os outros dois músicos trouxeram seus instrumentos depois do que pareceu uma eternidade. O guitarrista ainda quis afinar o violão e a cantora quase arrumou com o instrumento na cabeça dele. Depois, entre assustados e horrorizados com a situação, eles tocaram o que parecia ser isso:

"Só tenho tempo pras manchetes no metrô. E o que acontece na novela alguém me conta no corredor. Escolho os filmes que eu não vejo no elevador pelas estrelas que eu encontro na crítica do leitor. Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim. Só me concentro em apostilas, coisa tão normal. Leio os roteiros de viagem enquanto rola o comercial. Conheço quase o mundo inteiro por cartão postal. Eu sei de quase tudo um pouco e quase tudo mal. Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim. Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim."

Nada Tanto Assim, escrito por Kid Abelha em Seu Espião, 1984, WEA

Renan adorou a música. Vejo que Renan é atraído pelo pop carioca de algum modo, porque me lembro dele cantando um funk carioca no chuveiro em casa. Ele pediu outras e os músicos disseram que não poderiam.

"Olha senhor da polícia, seguinte: se vai matar, mata logo todo mundo. Porque se a gente chegar atrasado nesse show, o povo de Varginha é quem vai matar a gente e aí já adianta logo o negócio", propôs o saxofonista.

"Tudo bem, vocês podem ir embora", autorizou Anderson, "só têm que dar meia volta e descer duzentos quilômetros até chegar a Varginha que é a única coisa que vocês vão ver quando chegarem ao fim da estrada que desce. Só tem isso no caminho, então não tem como errar… de novo."

E graças a Mitra, a Polícia Obscura encerrou sua ronda e por um triz não aniquilou os integrantes do Kid Abelha, o que já estava de bom tamanho. Eu voltei a me sentar no alpendre com "sêo" Danilo e chamei os meninos para se sentarem junto conosco. Perguntei se Renan estava se sentindo melhor depois de agir tão mal comigo quanto eu agi com ele. O diabinho disse que sim. Anderson olhava para o céu estrelado e "sêo" Danilo seguiu seu olhar rumo ao infinito. Anderson olhou para todos depois e disse, "meu bom Mitra, era gente de verdade."

"Do que você está falando, cara?", perguntou Renan.

"Os músicos, Renan. Podíamos ter matado eles."

"Isso acontece, cara."

"Não, Renan, porra; se a D. Stella não avisa a gente que eram músicos de verdade e estavam perdidos, a gente tinha chumbado eles no chão."

"A gente podia testar com sal grosso. Mas você preferiu ouvir eles cantando…"

Fiquei olhando para "sêo" Danilo. Eles podiam testar com sal grosso e não testavam? E pessoas de verdade poderiam estar correndo sério risco por aqui? Os músicos, se não fosse tomarem abrigo na minha casa, já estariam numa vala.

E a noite seguia. Indiquei a eles uma outra constelação, próxima ao Cruzeiro do Sul e que eu vinha lutando bastante para localizar: a Máquina Pneumática. Não era uma constelação muito atrativa ou descritiva, era mais como umas estrelas formando o que parecia ser um quadrado. Sempre me dispus a localizar essa constelação, eu disse, por causa do nome estapafúrdio. Renan me perguntou o porque do nome e eu disse que os astrônomos costumavam batizar essas descobertas com nomes de invenções de seu tempo.

"Sêo" Danilo diria depois em muitas ocasiões que a noite contemplando as estrelas ao meu lado e ao lado da Polícia Obscura foi uma das noites mais fascinantes e esquisitas de sua vida.



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