quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Oferenda temporária

Eu chamei Andrés para dentro de casa hoje de manhã. Eu disse a ele que Renato estava tendo um pesadelo atrás do outro. Acordava de um, caía no sono como se fosse puxado de volta para um buraco e recomeçava a ladainha dos pesadelos de novo.

O sono dele ainda era agitado; nada de se admirar depois de um contato daqueles com a Polícia. Andrés ficou revoltado. Não esperava tanta confusão, era lógico. Isso sem considerar que ainda não havia nem sombra de Miguel e nada parecia indicar que seria possível, que dirá fácil encontrar o homem.

Levei o prefeito ao quarto de hóspedes e abri a porta para lhe mostrar o pequeno escoteiro adormecido. Ao abrir a porta, nosso horror e espanto foram totais: os dois cabritos pretos que vi sair da barraca estavam velando o menino no escuro, um de cada lado da cama, como súcubos minúsculos e horrorosos. Ao acender a luz, eles não estavam mais ali. Ao apagar, estavam ao lado da cama.

"Eles estão usando a própria energia do moleque para velar ele", disse Andrés, com olhos de espanto que deixavam entrever uma ponta de medo e preocupação.

Liguei para a Polícia. Anderson foi o primeiro para-raios que encontrei pelo caminho. Eu disse a ele que era um absurdo o que estavam fazendo. Tinha prometido me controlar e não fazer críticas, mas nunca era o caso de me controlar com a Polícia Obscura. Liguei para Renan e repeti a ladainha. Voltei ao quarto de hóspedes e Renato estava dormindo tranquilamente afinal. Nem sombra dos dois cabritos pretos que ladeavam a cama.

Andrés ficou admirado de eu ter conseguido acabar com o problema dos pesadelos de Renato usando nada mais que um telefone. Eu disse a ele que quando se sabe o origem do problema, fica mais fácil fazer com que as coisas voltem a funcionar. Disse também que além da esculhambação para cima dos dois policiais medonhos, tive que prometer um bolo de fubá e café com leite para os dois no fim da tarde, precisamente na hora da Ave Maria. Andrés não gostou muito da história. Disse que eu poderia criar um hábito neles como por exemplo, dar comida para um santo para resolver problemas. Eu disse a ele que fiquei pensando em como isso me lembrava o candomblé ou a umbanda.

"Eles acabam comendo bolo de fubá e tomando café com leite, almoçando, jantando por aqui a hora que vierem. Então, em que isso afeta?", eu quis saber.

Andrés disse que eles poderiam ficar mais exigentes com o tempo, mas deixou morrer a discussão sobre as oferendas. Me senti como uma mãe-de-santo arriando um despacho num limite qualquer de Taurinos. Sem falar que era quase como premiar os dois ao invés de punir a Polícia por abuso de autoridade. As criaturinhas noturnas então viriam e tomariam café comigo.

Renato passou o resto dia dormindo. Passamos o resto do dia procurando Miguel. Ne sombra dele, de nada, em lugar algum.

Eu disse a Andrés que se ele quisesse ficar, poderia. Os escoteiros se reuniam lá fora em torno de uma grande fogueira. E ele ficou. Quando se convida para comer, esses meninos de Taurinos são sempre cordatos e pontuais. Seis horas e o som dos cavalos começava a se ouvir. Depois de um ou dois minutos, estavam batendo a porta. Entraram reclamando dos escoteiros a quem chamavam bicho-grilos. Achei que eles estavam tendo uma enorme má vontade para com eles todos. Eles disseram que eram todos um bando de pavorosos bichos-grilos.

Eles ficaram comendo e olhando fixo para mim e para Andrés. Eu e Andrés ficamos comendo e olhando fixo para eles.

"Não fiquem olhando assim fixo pra gente a essas horas", advertiu o ferreiro.

"Bom, então parem de olhar fixo pra gente a qualquer hora", devolveu Andrés.

"O Andrés tinha que estar no café também? Por que está aqui de enxerido?", reclamou Renan.

"Para sua informação, D. Stella me convidou especialmente para o evento", esclareceu Andrés, olhos virados para mim.

"Que bonitinho, convidou especialmente para o evento", zombou Anderson, "ela prometeu o café pra a gente, não pra você."

"Prometi para os três que estão comigo agora."

"Isso não é justo, D. Stella, era a gente…", começou Anderson.

"…que estava torturando o escoteiro? Sim, eram vocês."

"Não era isso que eu queria dizer, D. Stella", ele ficou encabulado.

"Mas era o que você tinha que dizer. Me dá a impressão de que estou recompensando vocês por aquela cagada na noite passada."

"E por que é que vocês tinham que fazer essa merda toda com o Renato? O moleque é todo na dele, não faz mal a ninguém…", questionou Andrés furioso.

"Eu não vim aqui pra isso", Anderson se levantou. Eu disse a ele que ele sentasse e comesse. Disse isso com uma veemência que pareceu assustá-lo. O mais novo não se intimidou. Disse que Renato era folgado de querer dar lições de moral a eles no meio da rua. Eu disse que o escoteiro só estava dizendo uma coisa óbvia. Perguntei a ele se acharia engraçado passar mais uma temporada no Santuário.

"Ninguém aqui ficou rindo da situação de vocês, nem quem te deixou trancado lá no Santuário. Acha que isso é motivo pra rir? Ou se o Anderson sumisse, você todo preocupado e a gente rindo da tua cara?"

Houve uma pausa quase eterna. Os dois continuaram comendo normalmente (é claro que emburrados), quem diria. Eu já sabia que ia dar essa merda, sempre dava essa merda, mas quer saber? De vez em quando eu ligava em modo foda-se e foda-se. Eles acabaram de comer e iriam embora em silêncio se Renan e Anderson não me pedissem para falar com o escoteiro.

"Avisem o carinha que é bom ele respeitar quem ele não conhece."

"Ninguém desrespeitou você não, cara", Andrés olhou para Renan e sacudiu a cabeça.

Eles não disseram mais uma palavra e sairam para a ronda noturna. Fiquei lavando a louça do café e Andrés ficou me fitando na cozinha. Parecia ver em mim uma alma de outro mundo ou coisa assim. Não sei se a oferenda deu certo. Os umbandistas vivem no plano físico, as entidades em Aruanda e eles sempre sabem se a oferenda deu certo. Eu moro no mesmo plano que as entidades e saber se alguma coisa deu certo é sempre um problema.

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