sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Clint Eastwood

Renato acordou hoje. Praticamente 24 horas dormindo após a experiência com a Polícia Obscura. Não era muito para o que ele deve ter passado. Mas com certeza ele estava agora bem melhor. Ele comeu bem no café da manhã, o que é um bom sinal. Minha despensa está se esvaziando. Preciso ir ao supermercado do Souza esses dias para repor o estoque.

"Os cabritos ficaram falando comigo à noite enquanto eu tentava dormir, D. Stella", me disse o menino recordando a experiência, terrificado.

"Eu sei", respondi, tomando um gole de café; ele me olhou sério.

"Pelo jeito a senhora não acredita em mim. Eu sei que é difícil acreditar, mas eu juro, não estou mentindo! Os dois ficaram mesmo falando comigo. Só falavam palavrões e me xingavam o tempo todo."

"Eu acredito em você."

Ele ficou comendo em silêncio, olhando fixo para mim, provavelmente procurando um modo de me "convencer" de que ele estava falando a verdade.

"Ninguém acredita em mim. Desde que eu falei daquele homem que estava conversando com o Miguel…"

"Eu acredito nele e em você", eu garanti ao escoteiro; ele quase engasgou com o pão.

"Mas não pode as duas coisas serem verdade, D. Stella! Como pode ser ele e não ser ele?"

"Tem muita coisa nessa cidade que não se explica. Como podem dois cabritos falarem com você? Eu acredito porque eu vi os cabritos na tua barraca."

Ele ficou em silêncio. Não pareceu ter conseguido pensar numa objeção coerente.

"A senhora não acha que era o seu amigo conversando com o Miguel, então?"

"Acho que era alguém muito parecido com ele, mas que não era ele", declarei.

A Polícia Obscura apareceu logo em seguida, seguida de "sêo" Danilo. Perguntei ao Anderson se ele não estava mais trabalhando como lojista. Ele me disse que o pai iria cuidar da loja durante o Jamboree para que ele pudesse patrulhar a cidade com Renan. Os dois viram o escoteiro e Renan ia dizer alguma coisa quando eu fiz sinal para que ele ficasse calado. Eles ficaram quietos a contragosto porque estavam em minha casa. Isso não os impediu de lançar olhares fulminantes e furiosos na direção do menino. Renato não tinha medo deles, o que só aumentava o risco que ele corria; tinha cedo aprendido no escotismo a sorrir diante das dificuldades.

O escoteiro pediu licença e saiu, depois de fazer questão de lavar a louça que usou, apesar de eu insistir que ele largasse tudo lá. Passou pelos policiais e os cumprimentou, mesmo sabendo quem eles eram. Recebeu um silêncio emburrado como retribuição e se foi sem mais.

"Vocês precisam controlar esse ódio que aparece em vocês de quando em quando", disse "sêo" Danilo a eles quando o escoteiro saiu, prolongando um pouco mais a tromba dos dois, "às vezes mais atrapalha do que ajuda. Muito melhor guardarem essa energia para os entrantes, a população não tem nada a ver com isso, meninos."

"Caralho, mais um puxão de orelha? As minhas duas orelhas dão pra usar pra fritar um ovo de tão quentes que já 'tão, porra! Mil vezes porra, caralho!", o meganha mais velho estava irado e demoraria a fechar o registro dos palavrões.

"Tudo de errado é a Polícia que faz, dou conta não, puta que pariu", ajuntou o meganha mais novo.

"Pois acho bom que deem conta", eu disse, "gente que faz as coisas e tira da reta a gente encontra em qualquer lata de lixo. E vocês sabem muito bem que definitivamente esse não é o caso de vocês. Outra coisa: levo vocês a Conselho se entrarem na minha casa outra vez para atazanar um hóspede meu com aspecto de cabritos pretos ou qualquer outro aspecto medonho que venham a inventar. Minha casa não é trem-fantasma."

"A senhora não para de criticar a gente nem um minuto, eh? Caralho!", Anderson estava ofendido e emburrado.

"Fez errado, eu critico mesmo. Outro dia, se não intervenho, vocês tinham matado aqueles músicos do Rio. Vocês ficam assistindo esses filmes na TV até tarde e pensam que podem sempre entrar de sola onde quer que seja. Nenhum de vocês dois é Clint Eastwood."

Mais tarde, "sêo" Danilo veio me dizer o que eu já sabia: que até o momento não havia pistas do desaparecido líder da tropa, Miguel. Começo a ficar nervosa com a situação, cogitando o que poderia ter acontecido ao pobre homem. Como desapareceu? Para que lados andará? Quem era, se não era o velho sertanejo, o homem que Renato viu conversando com ele quando ele desapareceu? Temos corrido a cidade inteira com Adriano, chegamos a ir ao sítio onde ocorreu o ritual da Polícia Obscura e dali até as margens do lago da Ilha Basilisco e nada.

Fomos interrompidos por novo vozerio lá fora. Fico nervosa quando isso acontece, já me arrependi várias vezes de ter deixado os meninos acamparem aqui por conta disso. Andrés e Bruno estavam lá fora com os outros escoteiros, discutindo algo. À distância, via-se que Bruno tinha algo na mão, parecido com uma caixinha.

"O senhor voltou a fumar, "sêo" Danilo?", perguntou Andrés, conhecedor dos hábitos antigos do velho sertanejo.

O sertanejo olhou para mim e para ele. Disse que não. Andrés estendeu a ele a caixinha que estava na mão do Bruno. Era uma caixinha de Souza Paiol. Ele olhou para mim, sem nada entender. Eu entendendo menos ainda.

"Achei meio pra dentro meio pra fora, embaixo da minha barraca, agorinha pouco", disse o Renato para mim e para "sêo" Danilo, provavelmente repetindo o que já tinha dito a Andrés e Bruno.

"Se o senhor não voltou a fumar, quem teria passado por aqui e enfiado isso debaixo da barraca do Renato? Ele jura que a caixinha de Souza Paiol não estava ali quando ele montou a barraca", questionou Bruno.

"Juro mesmo. Pela minha honra", afirmou Renato.

"Sêo" Danilo se voltou para Renato, como que iluminado por algo novo, "você viu o Miguel por último e um homem conversando com ele que parecia muito comigo. Você se lembra do que eles estavam falando?"

O escoteiro parou e pensou. Não parecia conseguir se recordar.

"É importante que lembre do máximo de coisas que você puder", aconselhou o velho sertanejo ao menino.

O escoteiro pensou mais um pouco. Não parecia conseguir se recordar.

"Nada? Nem um nadinha de nada?", estimulava Andrés.

O escoteiro pensou mais um pouco. Finalmente olhou para nós e sorriu; agora parecia conseguir se recordar.

"Ele pediu um cigarro ao Miguel e o Miguel disse que não fumava e que era muito melhor não fumar. O homem acho que não gostou, mas não fiquei ouvindo mais porque não era um assunto meu. E porque eu tinha de ir pegar lenha para a fogueira da noite. Foi a última vez que eu vi o Miguel."

"Nó, por que não disse isso antes?", "sêo" Danilo olhou para mim revivendo ecos de antigos contatos com entidades no mato, se bem que não antigas assim.

"Desculpem, não achei que fosse muito importante", ele confessou, atônito.

Eu garanti a ele que fazia toda a diferença, "agora dá pra saber quem esteve com o Miguel quando ele sumiu. Mas foi muito bom que você tenha conseguido se recordar. A gente só tem que te agradecer."

"Vocês conhecem o homem que levou o Miguel?", ele olhou para nós no auge do suspense. Andrés e Bruno estavam em estado de estupor, esperando ser surpreendidos.

"A gente tem uma ideia de quem seja; eu e "sêo" Danilo encontramos com ele numa mata perto daqui."

O velho sertanejo confirmou. Disse que precisaríamos conseguir uma ou duas caixinhas de Souza Paiol para que o homem devolvesse Miguel (claro que se escudou de dizer que era o Caipora para não apavorar ainda mais o menino varginhense naquele mundo esquisito de cabritos pretos falantes). Bruno disse que ia à cidade e poderia comprar. "Sêo" Danilo disse que iria ele mesmo. Que menores de idade não deveriam comprar cigarros, mesmo que para os outros.

"Ele sequestrou o Miguel por causa de cigarros???", Renato estava no auge de sua perplexidade.

"Parece que sim", respondeu o velho sertanejo.

Renato fez questão de ir conosco. A princípio, eu não queria que ele fosse, mas no final achei que seria bom ele ver que "sêo" Danilo não tinha mentido. O velho sertanejo foi à cidade e voltou mais tarde, trazendo dois maços de Souza Paiol. Fomos nós cinco à mata.

Já fazia bem uma meia-hora que estávamos caminhando. Andrés discutia comigo como se poderia erradicar o Caipora da cidade, Bruno torcia o nariz para a ideia, Renato quase nada entendeu e eu e "sêo" Danilo dissemos a Andrés que essas coisas não se "erradicavam". Eram tão parte do mundo mental daquela mata quanto eram as árvores e plantas e riachos do lugar.

Estávamos num trecho mais fechado agora. Os três escoteiros nos seguiam em suspense. Andrés parecia estar com medo. Ao chegarmos à clareira onde pela primeira vez eu entrei em contato com o Caipora, paramos e nos sentamos no chão, aguardando. O velho sertanejo abriu a caixinha de Souza Paiol, tirou um cigarro e o acendeu. Via-se que ele tragava o cigarro a contragosto, como se aquilo fosse parte inalienável do ritual que ele não pudesse de modo nenhum pular. Renato olhava sem entender nada, mas nada ousava perguntar naquele momento em que viu que ninguém pronunciava uma sílaba sequer, mais uma prova de sua sensibilidade. O velho sertanejo fumava. Foi Bruno quem primeiro chamou a atenção para um assobio distante.

"É ele. Bem na terceira tragada… Quietos agora!", "sêo" Danilo sorriu.

""Sêo" Danilo?! É o senhor de novo, "sêo" Danilo?"

Renato se espantou. A voz era a voz dele. Ele olhava para nós em busca de uma explicação, mas só recebia pedidos de silêncio. O mato vinha estalando, gravetos se quebrando nas pisadas do que quer que estivesse vindo. Era o tempo.

Quando ele surgiu na clareira, era o escoteiro Renato. Aparecendo diante do próprio escoteiro Renato. O jovem varginhense tremia de cima em baixo sem conseguir se mexer do lugar. Nunca pensei que a visão de si mesmo pudesse inspirar tanto terror a alguém. Andrés e Bruno olhavam, um pouco menos espantados, mas espantados mesmo assim.

"Eh, o senhor de novo, "sêo" Danilo. E trouxe aquele do bom!"

O "escoteiro Renato" e "sêo" Danilo se sentaram juntos e fumavam em silêncio. Ninguém ousava dizer uma palavra. O velho sertanejo perguntou pelo paradeiro do líder de tropa. O Caipora disse que ele estava em sua barraca. Que ele nunca tinha saído de lá. Raciocinei aquilo como algo como animação suspensa. Ele estava ali, mas não estava ali. Ao mesmo tempo presente e indisponível.

Fui encontrar o escoteiro Renato sentado na parede do alpendre, ainda no escuro do começo de noite. Acendi a luz e as mariposas e outras criaturinhas noturnas já começavam a encostar na parede do alpendre atraídas pela luz, lançando sombras esquisitas e tortuosas sobre a superfície de tijolo. Perguntei do Miguel e Renato disse que ele tinha ido dormir depois do dia de descobertas. O menino estava ainda sob o choque de tudo o que tinha vivenciado.

"Por isso eu disse que acreditava em você e em "sêo" Danilo", eu disse a ele quando ele tocou o assunto.

"Foi difícil acreditar até ver. A gente pensa que só existe na semana do folclore na escola…", e ele olhou para mim, sorrindo sem-graça.

"É, não são só historinhas que o povo conta, aqui é o lugar onde essas coisas tomam vida de verdade."

"Sêo" Danilo apareceu logo depois. Perguntou também sobre o Miguel e recebeu a mesma resposta do escoteiro. Renato se desculpou com o velho sertanejo pela confusão e este acariciou ligeiramente a cabeça do menino, "larga mão, se eu não soubesse o que era, nem eu acreditaria."

"Eu nunca ia imaginar que uma cidade assim tão esquisita fosse ao lado de Varginha", confessou o menino, "que lugar é esse onde tanta coisa estranha acontece?"

Olhei para o velho sertanejo, em dúvida sobre se deveria dizer a ele. "Sêo" Danilo decidiu por mim, perguntando se eu tinha localizado alguma constelação nova como na outra noite. Eu disse que não e começaríamos um novo assunto, mas não contávamos com a tenacidade do jovem ao nosso lado.

"Que lugar é esse?", tornou o menino.

Eu o fiz dar sua palavra de honra que não diria a ninguém o que ouviu de mim e contei a ele sobre a cidade. Ele ouviu calado, como que preso à profundas cogitações. Perguntou se ele tinha morrido. Eu disse que não. Perguntou se Andrés e Bruno eram diabos. Eu disse que não, mas que eu às vezes tinha minhas dúvidas.

""Sá" Stella, assim vai assustar o menino…"

"Ele é um menino corajoso, "sêo" Danilo. E agora além disso, sabe exatamente onde está."

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