sábado, 15 de agosto de 2009

Circe

Renato me disse que não consegue mais esperar até começar o Jamboree. Miguel acordou cedo hoje. Eu o vi por umas oito da manhã. Ofereci café aos dois mas eles recusaram, dizendo já terem se alimentado. Andrés estava por perto ouvindo a nossa conversa e me disse que queria conversar comigo. Tinha ele uma certa lassidão no corpo, um estupor que eu não conseguia entender muito menos explicar. Na cozinha, enquanto eu tomava (e ele filava) um café, ele me disse que a hora do grupo se mudar para onde o Jamboree iria acontecer tinha chegado.

"Quando o evento começa afinal? Pensei que já estivesse acontecendo."

"Amanhã", ele tirou os óculos e começou a limpá-los devagar como em câmara lenta, olhando para mim.

"Nossa, parece que faz dias já que deveria ter começado… Enfim…"

Fiquei pensando em se eu já tinha perguntado a ele a data de início do Jamboree. Algo não estava batendo. Já pensava em minha casa como o refúgio de Circe, a feiticeira, de cuja morada ninguém conseguia ir embora. Ecos do cineasta espanhol Buñuel em seu Anjo Exterminador? Ecos do escritor inglês William Golding em seu Senhor Das Moscas?

E mesmo "sêo" Danilo ficou espantado ao saber que nenhum dos escoteiros tinha saído da minha casa em momento algum para o Jamboree. Mas eu recordei que tínhamos visto o escoteiro Renato na cidade. O chefe dos escoteiros não tinha saído daqui. Nem mesmo quando foi "abduzido" pelo Caipora em sua eterna busca de cigarros, mas o escoteiro tinha. Me lembrei de que fazia bem uma semana que eu não ia à fazenda Taurinos. O velho sertanejo não parecia entender patavina do que estava acontecendo. Eu não parecia entender patavina do que estava acontecendo.

Questionado, Renato saiu da roda de escoteiros onde estava e veio ter conosco. Eu perguntei a ele sutilmente o que achava de minha casa. Eu não sabia, mas não estávamos preparados para ouvir a resposta, nem eu, nem "sêo" Danilo.

"Maravilhosa", ele respondeu, "acho que eu não cheguei a lhe dizer o quanto é bonito o seu jardim. Não consegui explorar todo ainda e nem sei se vou conseguir."

Ele sorriu um sorriso luminoso, bem ao modo das crianças daqui. Eu e "sêo" Danilo quase quebramos o pescoço ao olhar um para o outro, "você disse jardim?" , perguntamos.

"Sim, este jardim lindo que a senhora tem, cascatinhas, pontes e tudo", ele assentiu com a cabeça. Miguel se aproximou de nós e sabendo do assunto, se desmanchou em elogios ao tal jardim. Eu e "sêo" Danilo não parávamos de trocar olhares significativos. Pedi que o chefe dos escoteiros me dissesse que dia era hoje. Ele perguntou porque eu me importava tanto com as datas inteiras e eu me saí com um tal problema de memória para datas.

"Hoje é 24 de janeiro de 2011", ele informou dando de ombros, quase simultaneamente com o escoteiro Renato, "não vejo a hora do Jamboree começar", e os dois sorriram aquele sorriso luminoso que já me acostumei a ver por aqui. Eu e "sêo" Danilo não parávamos de trocar olhares significativos.

Mais tarde estávamos a sós e "sêo" Danilo comentou que o calendário deles era bem diferente do nosso, mas eu o detive com um gesto na metade do comentário.

""Sêo" Danilo, o calendário deles não é só diferente do nosso. Essa é a data que o mesmo Miguel e agora o Renato me deram quando eles chegaram à cidade. Se é o que eu estou pensando, eles já estão vivendo o mesmo dia da chegada vai fazer cinco dias."

"É, pela conversa deles e pela data já deu pra ver que eles estão parados no dia em que chegaram", o velho sertanejo estava assombrado, "e agora, "sá" Stella?"

Por isso eu recordei que tínhamos visto o escoteiro Renato na cidade, mas jamais na fazenda Taurinos, onde tudo acontecia. Eles não iam porque o Jamboree não tinha começado ainda. Eles nunca iriam porque o Jamboree não iria mais começar. Porque o Jamboree já tinha começado e acabado. Foi só então que eu vi o tamanho do erro que cometi ao aceitar o grupo escoteiro aqui.

A Polícia Obscura apareceu logo em seguida para complicar as coisas. Os dois torceram o nariz para a permanência do grupo escoteiro em minha casa e vieram me perguntar quando eles finalmente iriam deixar a cidade. Expliquei que para eles o Jamboree nem tinha começado, porque eles estavam blá, blá, blá.

"E o pior é esse jardim que eles estão vendo em volta da minha casa", continuei, arrancando expressões de estranheza dos dois.

"Jardim? Que jardim?", o timing vocal dos dois foi perfeito.

Os policiais prometeram não assumir os aspecto de cabritos pretos falantes que cuspiam fogo pela boca mas foram arrancar o prefeito e o Bruno das barracas. Sorrindo amarelo para os escoteiros e seu chefe, fomos entrando para minha casa e a Polícia Obscura estava irritada com os dois que chamavam bicho-grilos, querendo explicações. Andrés e Bruno pareciam dois patetas. Como que perdidos no encanto de Circe. Eu e "sêo" Danilo podíamos notar que eles faziam parte daquilo. Como Andrés tinha ficado preso no Santuário, agora ele e Bruno compartilhavam a mesma sorte de não mais conseguir sair do dia em que os escoteiros chegaram aqui. Eu disse isso à Polícia, quando nenhum dos dois escoteiros presentes parecia encontrar palavras para definir aquilo pelo qual passavam. Os policiais serenaram a carga de ódio infanto-juvenil para cair na mais profunda perplexidade.

"Ih, tem isso também, é?", Anderson persignou-se como bom cristão.

"E essa história de jardim?", lembrou Renan, tornando a ficar irritado, o que já estava começando a me deixar irritada.

Andrés e Bruno afirmaram que nada sabiam de jardim nenhum. Perguntei em que dia estávamos. Estranharam a pergunta e responderam que era 10 de agosto de 2009. Renan franziu a testa, Anderson franziu a testa, eu e "sêo" Danilo franzimos a testa. Apenas Andrés e Bruno não franziram a testa, presas que eram daquele estado de torpor que não era diferente do que vi nos outros escoteiros do mesmo grupo. As longas noites passadas contemplando o céu; torpor.

"Renan, Anderson, vocês têm certeza de que esse negócio de parar o tempo é seguro?", foi a primeira coisa que eu perguntei.

"Ah, agora também é nossa culpa essa merda???", a criança mais nova se preparava para avançar em cima de mim.

"Renan, pelo amor de Mitra, não estou culpando vocês, só preciso de uma resposta. A gente precisa eliminar as possibilidades pra…"

O zangão se acalmou. Finalmente disse que se fosse por isso, teria sido a primeira vez. Eu não sabia o que pensar. "Sêo" Danilo não sabia o que pensar.

"E essa história de jardim? Os escoteiros vêem, mas o Andrés e o Bruno não", lembrou Anderson, começando a ficar irritado, o que já estava também me deixando irritada.

"Naquela noite com os músicos do Rio…", começou o velho sertanejo, "ah, vocês não vão começar com o sermão, né?", cortou Renan, rente e eu disse que ele ficasse quieto e ouvisse, "…a senhora notou se eles olhavam para os lados, como se estivessem admirando alguma coisa, "sá" Stella?"

"Não notei, se eles por algum momento viram que ali tinha um jardim, disfarçaram bem ou não se interessam muito por jardinagem."

Renan acrescentou que quando a Polícia Obscura chegou, implantou o terror e mesmo que eles prestassem atenção no comportamento deles, os músicos não estariam em condições de admirar o jardim, o que achei extremamente lógico.

"A chuva", disse "sêo" Danilo numa epifania.

Olhamos para a janela da cozinha a ver se o tempo fechava. O velho sertanejo riu e explicou que falava da chuva um dia antes dos escoteiros chegarem. O único incidente mais digno de nota a que poderíamos chegar naquele ou em qualquer outro momento, exatamente um dia antes da chegada dos grupos escoteiros a Taurinos.

"A chuva parou tudo, não foi?", disse o prefeito de seu canto, ainda sob forte efeito daquele torpor, sorrindo como um idiota.

Perguntei ao prefeito se ele não percebia que os dias e as noites estavam passando e, a julgar pela resposta que me deu, ele não parecia saber o que era dia ou o que era noite. Bruno não foi melhor em sua tentativa de explicar como tinha passado os últimos dias.

"Acho que seria melhor chamar o Arthur; não foi ele que mandou essa chuva?", sugeriu Anderson.

Renan não pareceu resistir a brincar com o clichê, "sempre achei que o Arthur era o verdadeiro manda-chuva nessa cidade."

Arthur chegou duas horas depois em seu cavalo. Ficou olhando as barracas enquanto atravessava o terreno em direção da minha casa. Ele parecia encabulado quando entrou. Não parecia querer olhar ninguém nos olhos.

"Arthur, o que havia naquela chuva que você fez cair?", foi a primeira pergunta que fiz a ele quando ele se sentou.

"Água, né?", ele respondeu a contragosto, como se tivesse ouvido a mais idiota das perguntas. Era óbvio que ele preferiria estar em outro lugar que não minha casa hoje.

"E nenhuma semente oculta, mágica ou latente veio junto com a água?"

O pequeno Feletti franziu a testa.

"O que é que a senhora quer dizer com isso?"

""Sêo" Arthur, os escoteiros não conseguem sair daqui da casa de "sá" Stella; e mais, eles estão vendo um jardim em torno da casa que nenhum de nós pode ver e que pelo jeito é o mesmo jardim que você queria colocar aqui mas teve que tirar."

Explicamos que ainda por cima havia a questão do eterno dia 10 de agosto de 2009, que nem o Andrés e nem o Bruno viam o jardim, mas que foram igualmente afetados pela parada do tempo. Arthur foi se espantando mais e mais à medida que a explicação progredia.

"Quando a senhora me disse pra tirar o jardim, ele deve ter ficado lá, mas não podia mais ser visto por ninguém da cidade", ele explicou para nosso assombro, "e a chuva deve ter revelado isso para eles, que eram de fora. Pode ter redobrado a energia do jardim, e assim ele agora pode ser visto, mas só pelo pessoal de fora."

"Isso sem dúvida explica porque nem o Andrés e nem o Bruno veem o jardim. Mas por que, se posso saber, deixou que o jardim permanecesse se eu tinha dito a você para retirar tudo?"

"Eu pensei que tinha feito isso, mas vocês me mostraram que ele ficou. E por que eu não sei."

"Então há coisas que você não consegue controlar", eu questionei.

"Sim, acho que nesse ponto não sou tão diferente da senhora, afinal."

E o menino sorriu um sorrisinho satisfeito ao me ver sem-graça. Mas antes que satisfeito, ele parecia triste. Disse que não podia prever o que poderia acontecer quando colocou o jardim em minha casa.

"Nós só queríamos fazer algo de bom pra senhora. Não dava pra ver esse estrago todo acontecendo…", ele começou a demonstrar nervosismo, olhando para todos, sentiu um nó apertado na garganta.

"Arthur, ninguém está te culpando por nada. É só que precisamos achar a solução pra essa bagunça. De mais a mais, nem sabemos se o jardim que ficou tem a ver com o estado em que os escoteiros estão."

"Pois é, ainda tem a Polícia pra culpar", lembrou Renan, tornando a ficar irritado, o que já estava começando a me deixar irritada.

"Não houve o problema do sino? Não poderia ter voltado?"

"Com certeza não", negou Anderson imediatamente, "e se voltasse, teria sido para todos nós, não só eles, nuemes?"

Anderson terminou dizendo que tinham aplicado a técnica de parar o tempo na fazenda Taurinos durante o Jamboree e isso não afetou em nada o tempo daquelas pessoas. Exatamente como fizeram aqui, mas lá foi mais de uma vez.

Ele tinha razão. Nos restava mesmo a chuva e o jardim que nos cercava e que não podíamos ver.

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