segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Chupacabras

Patrulha Tamanduá. Foi a única coisa que eu consegui distinguir do som do grito lá fora, em meio ao sono que ainda prevalecia. Se o dia de ontem foi uma completa falta do que fazer em meio à chuva, o de hoje prometia. Desci e fui ver o que estava acontecendo. Abri a porta para encontrar dezenas de barracas de camping em volta da casa e um bando de meninos olhando para mim. Eu tinha esquecido pela segunda vez do evento e mais ainda, que tinha cedido meu terreno para os escoteiros acamparem. Eu fiquei olhando ainda tonta de sono enquanto os escoteiros ensaiavam me saudar com seu grito de guerra. Ouvi o grito de guerra e valia por uns três ou quatro galos em torno da casa. O líder da tropa veio falar comigo.

"Muito prazer. Meu nome é Miguel. Nós da Patrulha Tamanduá saudamos a senhora e todo o bom povo de Taurinos. Andrés nos falou muito sobre a senhora e sobre sua atuação na defesa da cidade…"

Aposto que ele só falou na manutenção e não na criação deste hospício. Eu sorri para o líder da patrulha e para os meninos e lhes dei bom dia. Eles responderam em uníssono. Me lembrei de como Sérgio Dias ou seu irmão disseram numa entrevista que os Mutantes se isolavam num sítio distante para compor músicas para discos novos e viver "como se todos fossem um só".

Começamos a conversar e eles me ofereceram café. Eu recusei polidamente. Miguel me perguntou várias coisas da cidade. Eu disse a ele que ficasse bem atento aos conselhos de Andrés e de Bruno sobre onde não deveriam andar, certos trechos do entorno eram perigosos, procurei enfim dar-lhe uma análise geral da região.

"Parece uma região desafiadora para os meninos", Miguel sorriu.

"É uma região desafiadora para todo mundo", e eu sorri.

Ele pareceu sério de repente. Para maior estranheza, perguntei a ele qual era a data de hoje. Ele disse que hoje era dia 24 de janeiro de 2011. Pensei: estamos arrumados. Sorri e perguntei por Andrés. Miguel disse que ele tinha ido com os outros da Patrulha atrás de água. Não demorou muito e Andrés estava de volta com os outros meninos. Eles nos saudaram e eu puxei Andrés um pouco de lado para conversar, sob o olhar estranho do líder.

"Andrés, estamos fudidos. O calendário deles, como o da Meire, está quase um ano e meio na nossa frente."

"Calma, D. Stella; tudo se ajeita", respondeu o prefeito-escoteiro, olhando de soslaio para o líder que nos fitava todo o tempo.

"Como calma, rapaz? E se eles começarem a conversar sobre coisas da atualidade deles, que para nós é futuro ainda, e você não conseguir seguir as conversas? Já parou para pensar nisso?"

Andrés olhou para o lado e era Bruno chegando. Os dois seriam meus hóspedes de terreno durante o Jamboree. Ele chegou perto, saudou o líder e encostou em nossa pequena roda. Repeti o que tinha dito ao Andrés. Ele pareceu preocupado. Perguntou o que fazer. Eu disse que ele deveria perguntar ao Andrés, que aparentemente tinha a solução na manga. Mas é claro que Andrés não tinha. Sugeri que visitássemos as casas comerciais da cidade e pedíssemos ao donos que retirassem os calendários de vista. A sugestão era tão absurda que foi aceita prontamente pelos dois. Andrés disse que falaria com os comerciantes da cidade.

"E rezar pra que nenhum dos meninos peça nota fiscal."

"A senhora já tá querendo sacanear a gente", Andrés estava calma e discretamente furioso. Bruno, como já era de hábito, não dizia nada.

"Eu tô querendo sacanear vocês??? Enlouqueceu?? Você por um acaso parou pra pensar na metade dos problemas que poderiam acontecer quando tudo isso começou?"

Fomos interrompidos pela aproximação do líder dos escoteiros de Varginha.

No final da tarde apareceu "Sêo" Danilo. Amarrou seu cavalo lá fora e veio tomar café comigo. Veio saudando os escoteiros com seu ar bondoso de quem já vivenciou de tudo ou quase tudo. O olhar de quem entende as agruras e as alegrias (onde quer que andem) de viver.

"Olha, vai ter problemas nisso tudo que nós nem imaginávamos, "sêo" Danilo."

Contei a ele sobre a data mencionado pelo líder de patrulha de Varginha e a conversa com Andrés e Bruno. Ele arregalou os olhos para mim e depois se quedou sério, pensativo. Como se ele medisse cuidadosamente as consequências que poderiam advir dali. Concordou com a idéia de tirar os calendários embora não achasse que seria à prova de furos. Concordou porque achava que qualquer coisa que se pudesse fazer era válida.

Ele tinha trazido um saco de pães de queijo fresquinhos. Me convidou para tomar um café dia desses em sua casa, ver a instalação de eletricidade, "a senhora nem vai reconhecer a casa", disse com um sorriso satisfeito.

Enquanto tomávamos café, eu pensava justamente nisso. Mesmo. Quanto tempo fazia que eu não ia visitar "sêo" Danilo? Talvez desde minha passagem definitiva para cá. Para dizer a verdade, nem me lembrava mais.

Nossas reflexões foram cortadas pelo som distante de cavalos. O som dos cavalos parou como se fosse um CD sendo pausado e voltou como se soltássemos a pausa, indo morrer na distância, agora na direção oposta. Estranhei isso e comentei com o velho sertanejo.

"Final de tarde, espero que a Polícia Obscura não dê muito trabalho", disse "sêo" Danilo, suspirando.

Não fazia cinco segundos depois que o som de sua voz tinha morrido, e ouvimos um alarido dos escoteiros lá fora. Pelo som das vozes e gritos de espanto, não parecia ser coisa boa. Eu e "sêo" Danilo nos entreolhamos e saímos correndo para ver o que acontecia. Encontramos os escoteiros em torno de uma das barracas, lanterna apontada para a cobertura da barraca ela mesma coberta… com sangue e pedaços de vísceras.

Paramos, em estado de choque. Não menos em estado de choque estavam os escoteiros, Andrés e Bruno incluídos. O líder olhava para todos os lados, olhos arregalados e aturdido diante do que via. Eu e "sêo" Danilo, senão Andrés e Bruno também, tínhamos uma vaga noção do que tinha acontecido. A Polícia Obscura mais provavelmente parou o tempo, entrou no meu terreno, aniquilou um ou mais entrantes, se foi e fez o tempo voltar a correr novamente quando já ia longe. Foi isso o que nos fez sentir com uma pausa de CD naquele momento. Ajudei os escoteiros indicando a lavanderia onde poderiam jogar um balde d'agua ou mais na barraca e deixei que eles mesmos, como bons cavalheiros, recolhessem as vísceras.

Eu estava contando os segundos até que o líder da patrulha viesse comentar o evento. Despistamos o quanto foi possível.

"Pode ter sido um chupacabras", "sêo" Danilo disse ingenuamente, o que quase me fez gargalhar na frente do líder da patrulha. Consegui a muito custo conter a gargalhada e o líder nos olhava de forma cada vez mais estranha enquanto tentava ser simpático, "será que existem mesmo essas coisas como chupacabras?"

"Ah, por aqui às vezes aparece", garantiu "sêo" Danilo, quase me fazendo rir outra vez. Pensei que no caso eram dois chupacabrinhas, mas eram tão mais horríveis que eu cheguei a ter pena dos chupacabras.

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