terça-feira, 11 de agosto de 2009

A árvore da montanha

Renan e eu estávamos parados na frente da loja de ferragens do Anderson. Esperando o Anderson para que pudéssemos sair. Foi quando reconheci um dos escoteiros do grupo de Varginha nos cumprimentar com um sorriso luminoso, entrando na loja atrás de algo. Fiquei nervosa, fico nervosa agora sempre que vejo um escoteiro entrar numa loja.

Depois de algum tempo, Anderson saiu. Pergunto a eles por que têm de andar de preto nos cavalos pretos debaixo deste sol. Eles disseram que era para inspirar o pavor em qualquer criatura que se aventurasse a adentrar os domínios de Taurinos. Anderson mudou de assunto bruscamente e disse que o escoteiro estava comprando corda e que estava pedindo nota fiscal.

"Teu pai não pode dizer que o talonário dele não ficou pronto?"

"Ah, até pode, mas se o moleque insistir ele vai dar, com certeza", tornou o ferreiro.

Aquele dilema cruel. Entrar e arriscar a dar na vista tentando impedir que Alberto preenchesse uma nota fiscal. O menino foi embora aparentemente tranquilo e eu disse a mim mesma, "que será que aconteceu que acabou resolvendo o problema?"

Anderson já ia entrar na loja, curioso, quando Alberto saiu e explicou ao filho que não tinha talonário. Nos disse que nenhum dos comerciantes que ele conhecia em Taurinos tinha talonário. Pensei: viver em Taurinos é viver na eterna informalidade.

"É mortal, ele?", perguntou o lojista ao filho, curioso, vendo o escoteiro sumir na distância.

"É, pai. É mortal."

Mais tarde, perguntei aos dois se eles me visitaram ontem. Eles disseram que eu sabia que sim. Que pelo menos devia saber, já que os dois falaram em colaborar parando o tempo para causar o mínimo de impacto. Eu disse que entendia os dois mas que, mesmo assim, encontrar a barraca imunda de sangue e vísceras ontem junto a todos os escoteiros e pior, junto ao chefe deles não foi o que eu chamaria exatamente de mínimo de impacto. Eles começaram a me criticar novamente, enfurecidos. E ficaram me criticando por todo o decorrer do dia. Já vi que a nova tática da Polícia Obscura é se defender atacando. E criticando. Sei que eu não tenho sido fácil com eles dois esses dias, mas eles também não têm sido nada fáceis.

"Agora, vamos parar com esse negócio de chupacabras", Renan estava irritado, "quem chamou a gente de chupacabras?"

"Isso nós inventamos para o chefe dos escoteiros. Vocês queriam que eu falasse da presença da Polícia Obscura na cidade? É pra ser obscura ou não é?"

"Bom, eu e Anderson entendemos a desculpa, mas vamos parar por aí, tá? Já engoli a tal de Polícia Obscura", ele disse, olhando para Anderson e fazendo-o ficar vermelho, "agora, se começarem com esse negócio de chamar a gente de chupacabras, a gente vai virar essa cidade de pernas pro ar ou eu não me chamo Renan Augusto Giacomin Teixeira."

"E eu não me chamo Anderson Nascimento Caldeira", se apressou em ajuntar o ferreiro.

Comentei com "sêo" Danilo que os meninos detestaram a comparação com os chupacabras. Ele riu e achou natural. Mas concordou comigo que os chupacabras saíam perdendo feio na comparação com a Polícia Obscura.

"O mocinho mais novo deve ter ficado uma vara. Chamando de Polícia Obscura que já era bonito ele queria matar, imagina agora isso de chupacabras. Ia ser outra guerra no jeito daquela que quase aconteceu entre o Andrés, Renan, a senhora e o Jardineiro Celeste."

"O senhor acha?"

"Ah, se vier o assunto, é desconversar rapidinho."

Um dos escoteiros veio falar com a gente. Perguntou quem eram uns meninos de preto na cidade e eu disse que eram agentes.

"Agentes da Polícia?", o escoteiro perguntou, curioso.

"Ah, eles só andam a cavalo pela cidade e avisam os adultos sobre algum problema que viram."

"Sei, são como batedores", disse o menino, sorrindo.

"Mais ou menos… Bom, tem dias que eles são bem batedores, eu tenho de admitir."

Dessa vez foi "sêo" Danilo quem teve de reprimir às pressas um ataque de riso. Nosso desespero é nosso combustível. Reconheci o escoteiro. Foi o que nós vimos na loja de ferragens do Anderson mais cedo hoje. Estávamos felizes com o desfecho do episódio das notas fiscais, mas agora eu suspeitava que aquele menino poderia denunciar ao chefe que não se emitia notas fiscais em Taurinos. Será que eu não estava meio paranoica com esse negócio das notas fiscais no final das contas?

Andrés vem aprendendo que a vida de prefeito não é fácil. Ainda mais quando ele tem que esconder o fato de cinco centenas de companheiros escoteiros. E teve que lidar com problemas de infraestrutura na própria fazenda Taurinos. Sua sorte é que o Departamento de Obras morava no quarto ao lado. Adriano criou uma complexa infraestrutura para o evento na fazenda Taurinos, onde estavam concentrados todos os grupos escoteiros presentes, menos o de Varginha. Só Adriano sabia como o complexo funcionava, mas não seria mais necessário depois do Jamboree de qualquer modo. Andrés disse estar trabalhando também para abrir mais espaço na fazenda Taurinos para que o grupo de Varginha pudesse se juntar aos demais acampados lá.

O escoteiro das notas fiscais se chamava Renato. Acabamos fazendo amizade. E o Renato me disse que ele e os outros escoteiros do grupo estavam chateados pela distância que havia daqui até o Jamboree.

"É lá que as coisas acontecem, D. Stella", ele disse com os olhos brilhando.

Acontecem mesmo. Fiquei pensando em todos os quinhentos escoteiros em volta da fogueira cantando algo parecido com isso:

"A árvore da montanha, ole-li aio. A árvore da montanha, ole-li aio. Esta árvore tinha um galho. Ó que galho, belo galho. Ai, ai, ai que amor de galho. E o galho da árvore. A árvore da montanha, ole-li aio. Este galho tinha um broto. Ó, que broto, belo broto. Ai, ai, ai que amor de broto. E o broto do galho. E o galho da árvore. A árvore da montanha, ole-li aio… Este broto tinha uma folha. E esta folha tinha um ninho. E este ninho tinha um ovo. E este ovo tinha uma ave. E esta ave tinha uma pluma. E esta pluma tinha um índio. E este índio tinha um arco. E este arco tinha uma flecha. Esta flecha foi na árvore. Ó, que árvore, bela árvore. Ai, ai, ai que amor de árvore. E a árvore da montanha, ole-li-aio…"

A Árvore Da Montanha, canção escoteira, domínio público.

"A senhora mora aqui há muito tempo?", ele perguntou, me acordando de meus delírios.

"Uns seis meses."

"Ah, então é recente", disse o menino, sorrindo.

Recente. Uns quinze, dezesseis mil anos somente. Mas o que são quinze, dezesseis mil anos no tempo do planeta afinal?

Eu perguntei a Andrés qual o motivo do grupo dele ter sido segregado aqui. Eu disse a ele que os escoteiros estavam descontentes com o fato de estarem isolados a mais de um quilômetro de onde tudo estava acontecendo realmente. Ele disse mais uma vez que estava trabalhando para abrir mais espaço na fazenda Taurinos para que o grupo de Varginha fosse para lá também.

"Você quer me dizer então que houve espaço para todos os grupos escoteiros de Minas Gerais na sua fazenda menos para o seu próprio grupo?"

Andrés não soube o que responder. Tentou desviar o assunto, perguntando se eu não me sentia à vontade com o grupo acampado em minha casa.

"Se a senhora não quiser mais, eu posso arranjar um outro lugar pra a gente ficar", ele disse meio desapontado e sem jeito, olhando para o chão. Eu o peguei pelo queixo sem que ele esperasse e ergui a cabeça dele para que olhasse para mim através das lentes cheias da poeira do cerrado.

"Andrés, não muda de conversa, você sabe muito bem que não é esse o motivo da minha pergunta. Podem ficar o quanto for preciso, não me importo."

"Bom, então é isso mesmo, houve espaço para todos os grupos escoteiros na minha fazenda menos para o meu próprio grupo", ele agora parecia ligeiramente irritado.

Fiquei em silêncio. A explicação dele não era minimamente convincente mas honestamente eu mesma não tinha nem mesmo uma melhor. Do nada, de dentro da minha casa, o laptop começou a reinar e mandou uma música para reprodução no Winamp que em breve encheu a casa e o terreno todo, interrompendo o folguedo escoteiro aqui fora.

"Era uma manhã de abril, quando nos disseram que deveríamos ir. Quando eu olhei pra você, você sorriu pra mim. Como poderíamos dizer não? Com toda a diversão que se pode ter, viver os sonhos que sempre tivemos. Oh! As músicas que teremos pra cantar, quando finalmente tivermos retornado!"

A Última Batalha De Aquiles (fragmento), escrita por Led Zeppelin em Presence, 1976, Swan Song, Atlantic.

Entrei, para desligar o som e jantar.

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