quinta-feira, 2 de julho de 2009

Figura de um oito

Guilherme era o homem. Ou o menino, melhor dizendo. Melhor ainda seria dizer que ele era o cara. Ele quis trazer seu acordeon para a Ilha Basilisco, mas foi impedido pelo irmão mais novo. Ao invés disso, acabou trazendo consigo um diapasão, mais fácil de carregar.

Era a primeira vez dele e de Adriano na Ilha Basilisco. Ele olhava o sino criado pelo amigo ferreiro como eu, sem acreditar no que via. Em Taurinos se podiam ver coisas por vezes que assombravam os próprios moradores da cidade, acostumados àquela realidade mágica e irreal. Anderson parecia cada dia mais tenso, como se estivesse a ponto de explodir. Na vinda, eu tive que colocá-lo separado de Renan, no banco da frente, ou Adriano (que hoje era quem dirigia o carro) iria acabar batendo ou capotando, tamanha a energia destrutiva acumulada dos dois. Guilherme parecia tenso também, podia sentir no ar a tensão entre os dois policiais e parecia preferir estar em qualquer lugar que não fosse o carro dos Conselheiros naquele momento. Eu não podia culpar o garoto, mas ele parecia ter um papel essencial no problema que se apresentava naquele momento.

Na ilha, Guilherme esperou que os dois policiais se adiantassem e, sós comigo e Adriano, comentou que desde o dia do ritual não reconhecia o velho amigo Anderson. Isso era mais que natural, quem sai de um ritual daqueles exatamente como entrou? Nem nós, que nem éramos os executantes, o que dirá Anderson. O menino objetou que havia algo na expressão de Anderson que ele, Guilherme, já tinha visto antes. Eu disse a ele que tinha tido a mesmíssima impressão, de uma forma muito nítida. Que eu já tinha visto aquele olhar antes. Guilherme também achou que o detalhe que chamou sua atenção na expressão dele poderia mesmo ser o olhar. Adriano nada dizia, mas parecia sentir o mesmo: seguia interessado e silente a um só tempo.

Eu sentia falta da sobriedade e da temperança do velho sertanejo Danilo no dia de hoje. O modo como impôs respeito ao Anderson quando ele já se destemperava mais uma vez, seu conhecimento da cidade, sua guarda intemporal dos costumes locais. Claro que havia limites no que ele poderia fazer. Somos reféns desses sete meninos. Quando "sêo" Danilo disse que não tínhamos como separar sozinhos os meninos quando brigavam, que éramos apenas adultos, era isso que ele queria dizer. Hoje estou só no meio desses monstrinhos minúsculos, pequenos paióis de pólvora sempre prontos para voar pelos ares.

No sino, não precisamos dar a volta. A parte voltada para o final da trilha já mostrava um outro desenho. No texto gravado, a mesma disposição enigmática da primeira vez.

"A letra A tem teu nome. A letra A é a primeira letra da palavra "ausente". A letra R tem teu nome. Tu estás aqui, mas tu estás sozinho. A letra G tem teu nome. A letra G tem teu dobre."

Fiquei olhando para Anderson e ele me devolveu um olhar no mínimo embaraçado. Renan olhou para mim e para os outros, tão confuso quanto todos os outros.

"E essa agora?", perguntou Adriano, "mais uma charada?"

Uma chorada, isso sim. Longe de apontar soluções, o "manual de instruções" auto-atualizável de Tinnitus só parecia nos propor mais problemas. Definitivamente há algo emperrando as coisas por aqui.

Hoje, subimos todos a escada em espiral, apesar dos protestos dos dois policiais, especialmente de Anderson que se opôs o quanto pode até que eu, Adriano e Guilherme pusemos os dois em xeque. Afinal, a Polícia Obscura era subordinada à Sociedade Antiga dos Taurinos por mais que fossemos da Câmara Externa da Polícia.

Lá em cima, era um passeio largo, como uma canaleta e parapeitos com altura razoável para o vento que corria por sobre o topo do sino, um vento contínuo, permanente. Tínhamos chegado ao ponto mais ventoso da ilha: o próprio topo do arco do sino.

Paramos em frente ao equipamento. Eu nunca tinha visto nada parecido. Era uma caixa soldada no chão ou talvez fosse melhor dizer que ela era inteiriça, formando um todo com o resto do imenso arco de sustentação de Tinnitus. Sobre a caixa, um oito deitado como os que se viam nas armaduras noturnas e pavorosas da Polícia Obscura. O oito era como uma partícula luminosa se movendo ali sobre o tampo da caixa, formando sua figura artificialmente e absurdamente luminosa mesmo à luz do dia.

Guilherme se juntou aos outros dois e também colocou suas mãos sobre o oito. Eles fecharam os olhos e ouvi Anderson dizendo coisas a ele baixinho, algo como instruções do que Guilherme deveria imaginar enquanto se concentrasse. O zumbido do sino já começava a incomodar, especialmente nesta ilha, tão perto dele, especialmente quando estávamos exatamente em cima dele.

Nada aconteceu. O zumbido continuava. Renan coçou a cabeça e olhou o parceiro e o irmão. Anderson tinha o ar distante, enquanto Guilherme parecia que o observava com atenção. De repente, Guilherme tirou do bolso o diapasão que tinha trazido e com ele deu leve pancada no arco. O mais estranho de tudo sucedeu nesse instante: Anderson caiu desmaiado no exato momento em que Guilherme fez isso. Enquanto socorríamos o ferreiro, Guilherme parou com o diapasão na mão. Relanceei os olhos para ele e ele olhava para mim, aparentemente confuso com o que acabava de acontecer. Não menos ficamos eu, Renan e Adriano. Guilherme afirmou que a nota não se encaixava mesmo com a do diapasão; estava descendo mais e mais.

Andrés ficou dando voltas pela sala como uma fera enjaulada enquanto eu e Adriano contávamos aos pais dele sobre o dia de hoje. A mesma sensação de estranhamento por toda a parte, a linguagem hermética do sino trazendo mais confusão ao invés de soluções.

"Mas quer dizer que o "A" representa o Anderson?", perguntou Aparecida, interessada e já se queixando do som do sino que começava a se tornar mais e mais presente, incomodamente presente. Agora, o sino já não é mais intermitente, algo que vem e que vai. Já se tornou contínuo.

"Sim, como o "R" representa o Renan e o "G" o Guilherme", explicou Adriano. Duílio acompanhava interessado, mas não dizia uma palavra. Como o próprio filho mais velho, mais cedo na ilha.

"E se ele estava ausente, quer dizer que ele não estava lá? Que ia querer dizer com isso, que ele estava com a cabeça em outro lugar, por exemplo?", ela continuou.

Adriano não soube ou não quis responder; eu disse que achava a idéia dela bem pertinente. A passagem do desmaio de Anderson quando o som do diapasão foi produzido foi a que causou mais estranhamentos na fazenda Taurinos.

"Anderson tem estado bem estranho ultimamente, não é simplesmente aquele sentimento de revolta do início", afirmei.

"Outro dia eu brinquei com o Anderson dizendo que se ele me desse o polegar esquerdo dele eu conhecia um jeito de fazer alguma coisa terrível com o Renan", disse Andrés, em tom confessional, tão subitamente que assustou todos nós, "ele tirou uma faca de caça do bolso e eu tive que tomar a faca dele porque eu vi que ele ia cortar a porra do próprio polegar dele. Nó, foi uma briga…".

A narração encheu todos nós de assombro. Aparecida chegou a ralhar com ele, "isso é coisa que se proponha pra alguém, menino sem juízo?", e Andrés acrescentou, "e isso é contra eles mesmos, a Polícia Obscura não pode funcionar assim. Pela Lei deles, um tem que se matar pelo outro e o outro tem que se matar por um. Pensar em prejudicar o parceiro não existe. Foi brincadeira, mas o olhar do Anderson não era de brincadeira, era de quem aceita uma proposta séria, fora a briga que foi com ele prele guardar a bosta da faca. Me arrepio só de pensar. O olhar dele não era o olhar dele."

"Guilherme me disse o mesmo hoje na ilha e eu também tenho sentido o mesmo", informei e Adriano cedo confirmou minhas palavras com a cabeça.

"Eu "ouvi", D. Stella", Andrés me disse, sorrindo ligeiramente.

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