quarta-feira, 1 de julho de 2009

Ouvido absoluto

Anderson foi o último a chegar. Nos reunimos no Mithraeum por conta das discussões e brigas dos meninos ontem na Ilha Basilisco. Sendo o Mithraeum um campo neutro, eu esperava que pudéssemos resolver o enigma do sino juntos. Começamos explicando a Adriano, Arthur, Bruno e Guilherme o que aconteceu. Renan contou até mesmo sobre a experiência de Andrés no lugar de iniciação de Anderson, o que arrancou gargalhadas dos cinco outros Taurinos, para desassossego de Andrés que fitava Renan com aquele olhar característico de ódio que sempre me incomodou nos meninos daqui.

"As letras que tem seu nome, A e R são as dos dois meganhas…", Bruno tentava entender.

"Meganha é o caralho!!! Isso é desacato à autoridade policial!!", Renan se ergueu furioso, "vê direitinho como é que fala da gente, Bruno!"

"É, também acho bom que…", disse Anderson, mas interrompeu a frase no meio. Via-se que ele não queria ter a mesma opinião do parceiro mais novo nem que fosse para defender a si mesmo. Eu achei aquilo estranho. Desde o começo, aprendi que a Polícia Obscura tinha como código de honra a união dos dois, fossem qual fossem as circunstâncias. Não entendia a disposição briguenta deles, principalmente a de Anderson; sabia que era devido muito à zanga de Anderson por ter sido feito policial antes de sua vontade, mas aquilo chegava a ser absurdo, considerando aquele código de honra. Eu disse a mim mesma que iria observar aquilo mais de perto.

"Bom, sim, os nomes dos policiais", atalhou Arthur, querendo se livrar da nova maré de discórdia, "mas o que quer dizer isso de que você gosta de música mas não entende nada?"

Guilherme olhou para Arthur e Renan olhou para Guilherme. Este não devolveu o olhar para o irmão, talvez porque estivesse perdido em pensamentos.

"O único nesta reunião que conhece música é o meu irmão", disse Renan, ainda olhando para Guilherme.

"O sino está tocando na nota errada", Guilherme aparteou, "desde o dia da tua iniciação, Anderson. Eu comentei isso contigo, mas você preferiu ignorar o que eu estava dizendo."

"Impossível!", rebateu Anderson, já começando a ficar irritado, "tratei o sino e o bronze da ressonância o tempo todo pra que a nota saísse certinha, não pode estar tocando a nota errada. Eu sou liso com essas coisas, eu não erro, Guilherme!"

Poderia soar como excesso de presunção, mas não era. Não em se tratando de Anderson, eu vinha descobrindo. Mas se Anderson não tinha errado na fundição do sino, o que poderia ter saído errado?

"O problema não está no bronze nem no sino, Anderson; eu sei que se foi você quem fez só poderia ter saído perfeito", tornou Guilherme, "o problema está na velocidade do dobre dele. É como um disco daqueles antigos que diminui a rotação. A nota está descendo cada vez mais por conta da velocidade, cara. Agora mesmo eu estou ouvindo o sino em fá."

"Espera, espera, o Guilherme podia ouvir o sino desde o início?", perguntei, sem entender, "não eram apenas os entrantes que podiam ouvir?"

Renan explicou que Guilherme podia ouvir qualquer som, mesmo um copo quebrando e dizer que nota ele produziu ao se quebrar. A isso se chamava ouvido absoluto. Ele podia, ainda segundo Renan, ouvir mesmo os sons que nós não podíamos. Embora espantada, não perdi meu tempo reclamando com eles que eles nunca tinham me dito isso. Já tinha aprendido que era um procedimento inútil.

"O som do sino não me perturba, D. Stella", ele falou, "posso fazer o som desaparecer da minha atenção como aparecer na hora que eu quiser."

Que loucura. Não teria imaginado isso nem em mil anos. Me lembro que durante o ritual de iniciação de Anderson, ele citou uma música de Guilherme Arantes, mesmo sabendo que não poderia falar. Isso traía um certo fanatismo por música, um lado que eu não conhecia nele. Entendi a presença dele em minha casa com o violino.

"Que aconteceu com você quando você disse que o que o entrante falou era uma letra do Guilherme Arantes?", ao ouvir a pergunta ao meu lado, estranhamente, Anderson estremeceu e começou a suar frio.

"Eu levei um chutão nas costas, vindo de fora do círculo externo", ele respondeu, baixando os olhos, sem encarar o irmão caçula que o fitava, "e foi muito bem feito pra você", acrescentou Renan, rindo deliciado como estivera naquela tarde fatídica, "sinto uma dorzinha nas costas e tenho pesadelos com aquilo até hoje, se a senhora quer saber."

Imagino. Tendo seguido as regras, já tem sido para mim um pesadelo, imagino o que ele deve ter passado por quebrar essas regras. Andrés disse que o assunto estava bom, mas era completamente fora do que tínhamos vindo conversar. "Sêo" Danilo aprovou a observação dele, olhando para mim. Anderson também me fitava do modo mais estranho que já vi. Eu tinha visto aquele olhar antes. Só não me lembrava onde, mas sabia que era algo muito próximo ao assunto sobre o qual conversávamos.

Ficou decidido pelo Conselho que Guilherme iria para a Ilha Basilisco em vez de Andrés desta vez. Adriano saiu da reunião tão calado como tinha entrado. Se eu nunca o tivesse visto, não saberia nem mesmo qual o timbre de sua voz.

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