sexta-feira, 3 de julho de 2009

São João

Renan acordou às quatro da manhã. Se movia pela casa como um elefante minúsculo. O carpete no andar de cima não era suficiente para abafar os passos pesados do pequeno. Claro que acabei perdendo o sono e fui ter com ele, pedir um pouco de silêncio. Fui ao quarto dele, acendi a luz e ele estava dormindo normalmente.

Mas os passos no andar de cima não paravam e pela progressão, pareciam vir por trás de mim.

"Renan, tem alguém aqui dentro", eu o sacudi e ele abriu os olhinhos sonados, arregalou os dois de súbito, olhou com uma expressão de terror e alarme que eu nunca tinha visto nele, como se olhasse por trás de mim, não diretamente para mim. Quando dei por mim, eu estava caída no chão do quarto dele. Perto da porta, sangue em todo ponto da parede e do chão, uma poça que refletia a luz do abajur; o corpo de um homem para um lado, a cabeça para outro, cabeça horrenda virada de frente para mim, os olhos arregalados dos estertores de uma morte violenta. Expressão dantesca que nem todos tem o privilégio de ver num cômodo de sua casa às quatro horas da manhã de uma sexta. Aterrorizada, virei os olhos daquela coisa horrível e vi Renan, sentado na cama ainda com uma foice na mão, olhando para mim, sem conseguir se erguer para me ajudar. Via-se que tinha dispendido um exagero de energia para fazer aquilo. Olhei de novo para a porta e não havia nada mais ali. Como se fosse um sonho, mas segundo Renan, não era.

"Não tem nada ali, mas tinha", me disse ele com o ar abatido dos últimos tempos, "se eu não empurro a senhora, tinha lhe encostado e lhe tirado toda a energia."

Fomos para fora um pouco; ficamos olhando o céu lá fora, fazendo uma higiene mental. Ele estava com um pouquinho de frio da madrugada e eu sentei atrás dele, um degrau acima, o abracei e ficamos sentados no alpendre, olhando as estrelas. "Estranho como demora a amanhecer", pensei algumas horas depois. Engraçado que ele acabou dizendo o mesmo, apenas com outras palavras.

"Tinnitus está parando o tempo. Os relógios. O giro da Terra em volta de Taurinos, D. Stella."

"Quer dizer a Terra toda???", eu estava ficando assombrada pelo alcance da coisa. Na hora me lembrei dele matando os dois forasteiros aqui e os dois morrendo de verdade no plano físico em Santos. Será que isso iria afetar a rotação do planeta inteiro?

"Não, isso é só aqui no município", ele disse a palavra "município" num sotaque montanhês tão engraçadinho que eu tive um ataque de ternura e o beijei na cabecinha. Ele sorriu, mas ficou surpreso como sempre fica. Tentei falar no incidente no quarto dele e o menininho me disse que eu só falasse a respeito quando Mitra saísse de carro, logo ao romper do dia.

"Por que a senhora me beijou?", ele sorriu novamente, curioso, "por eu ter matado o entrante no quarto?"

"E também porque eu acho um amorzinho o jeito de vocês falarem. Muito lindinho", e ele deu uma risadinha minúscula ao ouvir isso. De repente, ele me encarou sério, como se aquilo despertasse nele uma pergunta por uma curiosidade que havia muito pensava em satisfazer, mas não tinha ainda achado oportunidade de falar.

"Por que a senhora fez a gente mineiro, D. Stella?"

"Não sei, Renan, não tenho a mínima ideia. Talvez porque eu goste daqui. Por que? Você não gosta de ser mineiro?"

"Acho que gosto. Mas também nunca fui paulista, gaúcho, sergipano ou amazonense pra saber se é melhor ou pior", respondeu a coisinha redonda e fofinha antes que eu o beijasse novamente em mais um de meus ataques de ternura.

Andrés apareceu junto com o irmão mais velho e ficamos conversando. Comentamos sobre como a falha do sino estava começando a trazer problemas. O zumbido começava a incomodar e se tornar mais alto para todos nós. Adriano foi o primeiro dos dois irmãos a mencionar que o tempo estava passando cada vez mais devagar. Andrés disse que a ideia de Anderson em construir o sino foi perfeita, mas que o que causava o problema que enfrentávamos agora poderia muito bem estar diante de nosso próprio nariz. Contei a eles sobre o incidente no meio da noite e eles disseram que era só o começo. Eles falavam como se ainda estivéssemos na Lei dos Touros em março.

Adriano contou que viu sombras escuras em torno da casa da sede da fazenda Taurinos. Não se animou a ir ver o que era, até porque já sabia do que se tratava. Andrés acrescentou que não tinha como fechar as portas da casa para esse tipo de coisa, sempre acabava entrando, como moscas por uma janela sem uma tela.

"E o pior é essa canseira e falta de energia. Logo logo, eu e o Anderson não vamos mais ter força pra limpar a cidade desses trastes e aí eu quero ver", reclamou Renan, ainda bem abatido da rápida aventura noturna de horror.

"Vamos lá, gente, nós temos que por as cabeças para funcionar. O que o sino quer dizer com aquelas mensagens? A solução, seja lá qual for, está nelas", eu os conclamava a usar a massa cinzenta.

Tirei da bolsa uma folha onde eu tinha anotado as instruções do sino em sequência, "primeiro ele disse que Anderson não poderia resolver sozinho, porque não entendia de música. Depois ele disse que Anderson não estava lá; que Renan estava sozinho. Depois disse que Guilherme estava lá e que a nota G tinha o seu dobre. O que isso quer dizer?"

"Anderson me falou que a nota pra que ele construiu o sino e a nota em que ele devia tocar era a nota que nós Taurinos consagramos ao Sol.", disse Renan, como se se lembrasse do que Anderson disse só naquele momento.

"A nota é Sol", disse Adriano num espasmo de iluminação.

Abri meu laptop. Na internet, procurei artigo sobre notação musical. Eu me lembrava que em alguns países, as notas musicais era referidas por letras e não pelos nomes em latim do antigo hino a São João, que encontrei no site de Robertinho Mori e mostrei a eles, junto com sua tradução:

"Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labii reatum
Sancte Joannes

Para que nós, servos, com nitidez
e língua desimpedida,
o milagre e a força dos teus feitos elogiemos,
tira-nos a grave culpa
da língua manchada
ó São João."


Fiz ver a eles que cada nome de nota musical tinha sido tirado das iniciais de cada um dos versos. Eles se entreolharam como sempre fazem quando topam com algo em que nunca tinham pensado antes. Se interessaram vivamente pelo assunto. Andrés perguntou porque então o primeiro verso não começava com do, já que dali se tirou o nome da primeira nota.

"Porque o maestro italiano Giovanni Battista Donni, percebendo que "ut" não era fácil de ser cantado, porque terminava numa consoante, mudou a sílaba para "do", usando a primeira sílaba de seu próprio sobrenome. Isso aconteceu no século 17, mais provavelmente em 1640", eu expliquei a eles.

"Mas nem a nota si encaixa, D. Stella", ajudou Adriano, "a inicial do último verso é "sa", e não "si"…"

"Encaixa sim. No último verso, ele tomou as iniciais das duas palavras, Sancte Joannes, SJ, em vez da primeira sílaba da primeira palavra. Na Europa, em muitos países, especialmente os de língua germânica, como no latim também, o "i" e o "j" são exatamente a mesma letra."

"Mas nó, D. Stella, o "i" e o "j" têm um som muito diferente", estranhou Renan, com aquela vozinha minúscula em rotação baixa.

"Para nós aqui, Renan; para eles, as duas letras têm o mesmo som. É outra língua, outra cultura", eu disse a ele.

Eles ficaram em silêncio. Não sabiam o que pensar. Abri a Wikipédia, em busca de correspondências para as notas musicais. Estava ali, sem margem para qualquer dúvida: a nota representada pela letra G era a nota sol.

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