segunda-feira, 29 de junho de 2009

Inimigo interior

O dia era um dia inteiro de festa na fazenda Taurinos e em muitas outras na cidade. Era dia de São Pedro e a última das festas juninas antes das férias de julho. Renan me contou, ainda com aquela vozinha ainda um pouco arrastada que adorava as férias de julho, a perspectiva da liberdade que as férias representavam para ele. Ele, que como os outros não tinha mais aulas e portanto não tinha mais férias. Tive pena daquela coisinha redonda, em plena liberdade dentro de uma gaiola chamada Taurinos e beijei sua cabecinha sempre confusa.

"Sabe D. Stella, já faz três, quatro dias que eu e Anderson não fazemos a ronda", ele ainda se recuperava do beijo na cabeça, coisa incomum para ele.

"E o que é que você quer que eu faça?"

Ele ficou calado, olhando a mesa do café, sem muito ânimo para comer, logo ele, aquele saquinho minúsculo sem fundo.

"E vê se come um pouco, tem broa de milho, pão de queijo, tudo o que você gosta na mesa. Ficar sem comer não vai ajudar em nada, Renan."

Fiquei pensando se conversava com ele sobre o sino. Por que não? Desde o dia em que falei da Polícia Obscura usando esse nome para ele pela primeira vez fiquei com um pé atrás de conversar essas coisas com ele. Não era para menos, ele passou a noite inteira torturando o Adriano e a mim por isso até que ele se "acostumou" naturalmente com o nome da instituição.

"Você ouve o tinnitus?"

"Eu estava contando quanto tempo a senhora ia levar para falar disso, D. Stella."

"Poderia ter se adiantado e puxado o assunto você mesmo, não?"

"Por que? O que a senhora pode fazer para voltar o sino na velocidade normal?"

Renan e "sêo" Danilo eram tão iguais às vezes no que diziam, pareciam ecoar um ao outro. Podia até investigar, mas seria paranoia nessa altura do Campeonato. Eu disse que realmente nada podia fazer. Perguntei quem podia. Ele me disse que o único era o Anderson.

"Bom, foi ele quem construiu aquele treco infernal, né?"

"E o sino funciona?"

"Quando o dobre dele tá normal, espanta a maioria dos forasteiros. Mesmo assim, tem uns que a gente tem que eliminar "manualmente" pra evitar problemas."

"A gente então precisa sentar com o Anderson e conversar."

"Que jeito? Se for nós dois falando, ele vai ignorar."

"Mas então que você acha que ele está planejando? Esperar o sino parar totalmente e ver os entrantes invadirem e pegarem vocês dois completamente sem energia?"

Batidas na porta. Fui ver quem era e eram "sêo" Danilo e Anderson. Este último entrou sério, andando com um pouco de dificuldade, ajudado pelo sertanejo. Ele não queria estar ali por nada desse mundo, era fácil notar. Anderson se sentou no sofá, ao lado de "sêo" Danilo (a única pessoa na sala de quem não era inimigo agora). Renan se sentou ao meu lado e ficamos uns instantes em silêncio que Anderson acabou quebrando.

"Eu me arrependo de ter criado aquela merda daquele sino", ele foi dizendo, "é mais uma bosta agora para fazer manutenção agora", eu já perdido a conta de quantas vezes o ouvi utilizar o verbo "arrepender".

"É, "sêo" Anderson, e uma hora ele vai parar por inteiro", falou "sêo" Danilo.

"Posso fazer uma pergunta?"

Anderson me olhou com aquele olhar frio e aquela cara costumeira de simpatia que os inimigos geralmente tendem a nos mostrar. Não respondeu ao pedido, o que provavelmente queria dizer sim.

"O que há de errado com o sino?"

"Tem que ele perdeu o movimento perpétuo que ele tinha que ter e está começando a parar."

"Por que?"

"Ora, porque se ele perdeu o movimento…"

"Facilita, Anderson. Estou perguntando porque você acha que o sino perdeu o movimento, não porque ele está parando."

Ele soltou o ar dos pulmões e ficou me olhando furioso. Disse que não tinha idéia. Que eu podia jogar na cara dele que ele era um inventor fracassado.

"Olha, a empaladora que você criou pelo menos funcionou maravilhas. Até hoje eu tenho pesadelos com aquela merda."

"Muito bem feito! Fico contente, porque é o que a senhora merece!", ele fez menção de se levantar e vir na minha direção, mas foi detido por "sêo" Danilo e Renan logo no início, "você tente agredir ela de novo e eu te arrebento, moleque", Renan mostrou-lhe os dentes, enquanto o sertanejo tentava afastar um do outro ao mesmo tempo que segurava o ferreiro. Eu disse ao "sêo" Danilo que o soltasse e ao Renan que se acalmasse.

"Você disse ao Renan que ia fundir o sino?"

"Disse."

"Você estava com ele quando fundiu o sino?"

"Não, ele estava aqui na sua casa."

O zumbido de novo. Mais perceptível, apreciável. Ainda não incomodava, mas eu não sabia o que tínhamos pela frente. Anderson acrescentou que não tinha a menor idéia de como poderia fazer o sino voltar à velocidade normal.

"Como foi que colocou o sino dobrando pra sempre, "sêo" Anderson?", quis saber "sêo" Danilo.

"Eu não posso dizer, "sêo" Danilo", ele disse, olhando o sertanejo, "isso é assunto da Câmara Interna. Vocês são da Câmara Externa da Polícia Obscura, não podem ter acesso."

"Nós fazemos parte da Polícia Obscura???", eu estava abismada. "Sêo" Danilo explicou que sendo uma das divisões da Sociedade Antiga dos Taurinos, isso nos fazia membros da Polícia Obscura também, só que dentro da Câmara Externa. Os dois meninos eram da Câmara Interna. Que na Sociedade, todos nós nove éramos da Câmara Interna.

"A senhora deve ter visto dois círculos no chão no dia da iniciação do Anderson, não? Pois um (o de fora) representava a Câmara Externa que era onde vocês ficaram. O de dentro representava a Câmara Interna, onde só podiam ficar "sêo" Anderson e "sêo" Renan."

Os dois meninos estavam em silêncio, sinal de que aprovavam a explicação de "sêo" Danilo. Eu nunca tinha me visto (muito menos "sêo" Danilo) como membro da Polícia Obscura. A simples ideia me dava arrepios. Anderson quebrou a pausa e acrescentou, "o que eu posso dizer é que eu usei a força daquele oito deitado (o símbolo do infinito) que temos no alto da armadura. Nós temos um modo de aplicar aquilo nas coisas e fazer com que elas se movimentem para sempre, agora como isso é feito é que eu não posso dizer; já falei até demais."

Sete horas da noite por aqui. Noite de São Pedro: bonita, mas sob a sombra de uma ameaça, como tudo por aqui. A quermesse estava animada na Taurinos. Eu e "sêo" Danilo discutíamos os meninos policiais e a conversa de tarde sobre o sino. O zumbido dele se tornava mais e mais perceptível. Não demoraria muito até que começasse a ocupar mais espaço do que desejaríamos.

Fomos até a fogueira, onde o sertanejo tinha deixado inhame em meio às brasas. Nos sentamos numa mesa próxima onde ele passava manteiga nos pedaços quentes e deliciosos da raiz e enchia duas caneca de café. Andrés veio e se juntou ao convescote trazendo pão de queijo, bolo de fubá e Coca-Cola.

"Sobre o que a gente conversava? Não, espere, deixeu adivinhar, é sobre música… Notas musicais… Sinos… Isso! Sinos!"

Olhei para "sêo" Danilo e ele sorriu. Andrés tinha essa mania de zoar os assuntos que me preocupavam, mesmo sabendo que me preocupavam porque eram cruciais para Taurinos. Eu disse a eles que às vezes achava que o menino sabia que nada realmente grave ia acontecer e ficava bancando o esperto. Se um dia eu descobrisse que se tratava disso, encontraria um jeito de abolir a Imortalidade em Taurinos só para poder matá-lo. E o faria bem lentamente, saboreando cada momento com inenarrável prazer.

"Creio em Deus Padre, D. Stella!", persignou-se Andrés. "Sêo" Danilo apenas sorriu para evitar uma risada alta, "e o nosso engenheiro, como se saíram com ele?"

"Tentou me agredir de novo hoje", e "sêo" Danilo assentiu com a cabeça, confirmando a informação.

"Mas intonces nós temos que enquadrar ei por desacato no Conselho, D. Stella! Não pode deixar isso barato!"

Sosseguei o facho de Andrés, "não vamos fazer nada disso, as coisas já estão bem complicadas se metade do que vocês disseram for verdade. Agora, se ele insistir na atitude, é certo que precisamos conversar."

"Nós marcamos para sair para lá de madrugada pra chegar lá de manhã. Vai ter de levar suprimento, tudo isso. O sino fica numa ilhota no meio de um lago. Lá venta, venta muito nessa época do ano."

"Eu vou", disse o pequeno Grão Vizir, resoluto. Uma vibração moderada do sino se fez ouvir em torno, depois foi sumindo, com qualquer som se vai.

"Nó, são cinco então, mais eu, D. Stella, Anderson e Renan", ajuntou o sertanejo.

Não íamos demorar muito na festa. Coisas mais complicadas nos esperavam. Tentei aproveitar bem o tempo, porque já previa encrenca pela frente. Eu sabia que iria sentir saudades de minha casa confortável na Taurinos, muitas saudades, nas horas em que estivéssemos na região do sino.

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