terça-feira, 30 de junho de 2009

Ilha Basilisco

O Sol subia preguiçoso por sobre as montanhas de Taurinos, preguiçoso até demais. O silêncio no carro só era quebrado pelo meu mp3 conectado no som do carro de Duílio que Anderson dirigia:


"A partir da cama num hotel de fronteira, olhos de água, céu e missa ao calor do dia ou à sua certeza. Mal o sol amarelecera no céu. Mal o sol amarelecera de esperança, toda a minha boa vontade. Olhos de água, céu e missa. Ao calor do dia ou à sua certeza. Mal o sol amarelecera no céu. Mal o sol amarelecera…"

Mal O Sol, escrito por Moto Perpétuo


As palavras da canção escrita por Guilherme Arantes tantos anos atrás ecoavam na minha cabeça. Quero dizer, ecoavam na minha cabeça, até que Anderson pediu para tirar a música. Pensei: "agora é moda os rapazinhos da Polícia Obscura me pedindo para tirar músicas." Quando Renan resolvia ficar de boa com a música, era Anderson quem entrava no plantão. Andrés me surpreendeu tomando a minha defesa:

"Eu estou escutando a música também, Anderson; não tira não, D. Stella."

"Tá me atrapaiano na direção.", a voz era levemente rosnada.

"Se quiser, eu dirijo.", tornou Andrés; "sêo" Danilo me relanceou os olhos como que farejando encrenca, "se fosse aquela barulheira de heavy metal, ou aquela música católica com violãozinho não te atrapaiava nem um pouco", ele rebateu.

Anderson freou o carro bruscamente, "quer dirigir, então você vai dirigir agora", ato contínuo desceu furioso do carro e, abrindo a porta, puxou Andrés para fora com violência. Este não gostou do movimento e enfiou um soco no peito do ferreiro já na saída. Este foi catando cavaco para trás, mas não demorou a se recuperar e já estavam os dois embolados. A confusão estava armada lá fora. Eu, Renan e "sêo" Danilo corremos para fora separar os dois. Precisamos, eu e "sêo" Danilo, pacificar os meninos o tempo todo.

"Vai dirige, seu bosta!", estava difícil segurar Anderson. Renan não sabia quem segurava porque sabia que os dois o tinham como desafeto, mas o problema com Andrés era menor dessa vez e ele acabou segurando o Conselheiro. Até nisso a situação era complicada. Só que Andrés não gostou de ter sido puxado por Renan e lhe deu um safanão que provocou outra confusão; desta vez um conflito generalizado ainda fora do carro, com Anderson pulando em cima dos dois, vermelho de raiva. Nós dois interviemos para evitar uma merda ainda maior. Não me perguntem como conseguimos separar os três. Isso são assuntos da Câmara Interna da Sociedade Antiga dos Taurinos.

"Desculpe, eu não entendo vocês. Está havendo um problema com o sino ou não está?"

Andrés dirigia agora. Não estávamos longe do lago. Nada de música nem de sons no carro além do motor. Finalmente, um pouco de sossego. Eu nunca tinha visto Andrés dirigir e achei que ele dirigia bem. Renan olhava para mim do banco de trás pelo retrovisor. "Sêo" Danilo seguia preocupado, olhando pela janela. No final de uma curva, passamos pelo plano onde ocorreram os ritos de iniciação da Polícia Obscura. Os mais estranhos arrepios correram pelo meu corpo me sensibilizando para a área até um pouco demais. Quase todos disseram ao mesmo tempo que todos procurassem não olhar pela janela. A exceção tinha que ser Andrés porque ele estava dirigindo. Pois bem, alguma coisa o pegou. Ele parou o carro, saiu de dentro e, para espanto de todos, saiu correndo na direção do ponto exato onde os ritos tinham ocorrido.

"Agora não vai dar pra segurar ei", disse o Renan, "ei vai ver toda a iniciação do Anderson que não viu naquele dia.", ele acrescentou, arrancando uma gargalhada de Anderson. Renan sorriu para ele e riu, mas o riso se apagou, mal os dois se descobriram rindo um para o outro. Renan bem que tentou continuar rindo, mas não conseguiu. A transição foi nítida tanto para mim quanto para "sêo" Danilo.

Eu não devia sentir pena de Andrés, exatamente pelo que ele fez durante o rito de Iniciação. Mas eu senti uma pena danada do menino, enquanto nos perguntávamos o quanto de tempo perderíamos naquele lugar. Tudo o que ele deveria ter visto nos atrasava agora. Duas horas perdidas olhando ele vomitar. O mais incrível foi ele ter voltado com as roupas limpinhas como daquela vez. Bebeu água como um camelo para limpar o ácido dos dentes, debaixo de uma barragem de tiradas ácidas e cortantes dos dois policiais. Ameaçou retomar o conflito com os dois e eu disse que já tínhamos demorado demais por ali. "Sêo" Danilo parecia assombrado e também encorajou os meninos a pararem com o besteirol para sairmos daquele lugar o mais rápido possível.

A ilha do sino Tinnitus ficava no centro de um lago de águas doces límpidas, que o sol da manhã tornava azuis. A visão do sino que se tinha daqui era impressionante. Era muito maior, visto daqui da margem, do que Andrés tinha ousado mencionar: o sino era tão grande quanto uma catedral.

Em meio ao puríssimo azul de cristal, formas estranhas em tons azuis mais escuros, como seres se movendo dentro da massa líquida. Andrés parou o carro em frente ao lago, ao lado de um pequeno pier de madeira. Dali saía uma pequena balsa tocada à corda: ela era presa a uma corda que se estendia da margem de terra até a margem da ilha. Para deslocar a balsa dentro da água, era só puxar a corda parecida com um corrimão de uma margem a outra. Andrés saiu do carro e foi a um ponto onde podia pegar a água do lago; encheu um garrafão de olhos fechados. E não os abriu enquanto não deu meia-volta e retornou ao carro. Olhei para "sêo" Danilo e devo ter parecido interrogativa, porque ele passou a me explicar porque o Conselheiro tinha coletado água de olhos fechados.

"Dendolago existem umas coisas chamadas basiliscos, que parecem umas lagartixas, mas são feios que só os dois meninos aqui quando estão de ronda no meio do mato. E o olhar deles puxa o seu e faz um mal danado. Eis vêm para a cidade e o sino puxeis para cá e prendeis dentro da água; só não pode olhar para dentro d'água muito tempo no mesmo ponto, sabe, eis podem puxar você pra dentro. Essa ilha se chama Ilha Basilisco por conta deles."

Ele se referia aos basiliscos presentes em bestiários desde a Idade Média, monstrinhos horrorosos nascidos de um ovo de galo (!) chocado por uma rã (!!!). Eu me perguntava porque o Conselheiro tinha coletado aquilo, então.

"E o Andrés vai beber essa água???"

"Sêo" Danilo riu, seguido de umas risadinhas dos mineirinhos minúsculos à nossa volta, "não tem problema beber a água não, "sá" Stella."

Eu dei risada e os meninos não gostaram muito. Geralmente os taurinenses me achavam cabeça-dura por descrer das coisas. Mas eu acabei dizendo que vi realmente umas formas azuis-escuras dentro da água azul do lago, "pois são eis, "sá" Stella", Andrés e "Sêo" Danilo beberam da água e foram passando. Bebi e era deliciosa, numa temperatura maravilhosamente refrescante. Não me lembrava de ter bebido água igual em minha vida (ou minha morte).

"E não precisa beber de olhos fechados, D. Stella", assegurou Andrés, sorrindo breve e ligeiramente.

Levamos os suprimentos para o pier e paramos lá por um tempo para analisar a situação. Esquecidos do episódio da água, os três meninos já engendravam novas escaramuças e conflitos. Olhei para "sêo" Danilo e ele disse que só poderiam ir dois de cada vez na balsa. Que os suprimentos contavam como um.

"São trinta minutos de travessia. Eu não posso retornar, porque vai levar uma eternidade levar um por um. Se eu for com o "sêo" Renan e a senhora ficar com o "sêo" Anderson e o "sêo" Andrés eles vão brigar e a senhora não vai ter como separar os dois. Se eu for com o "sêo" Anderson e a senhora ficar com o "sêo" Andrés e o "sêo" Renan, eles vão brigar e a senhora também não vai ter como separar os dois. Se eu for com o "sêo" Andrés e a senhora ficar com o "sêo" Anderson e o "sêo" Renan, eles também vão brigar e a senhora também não vai ter como separar os dois. A mesma coisa se a senhora for na balsa junto com um deles. Não temos como separar os dois, somos apenas adultos. Se a senhora deixar qualquer um deles com os suprimentos, eis vão fazer um estrago na mochila", acrescentou o sertanejo, desanimado.

Os três meninos gordinhos pareciam três pequenos lobisomens olhando para nós como quem examina comida num supermercado, enquanto "sêo" Danilo me propunha esse enigma.

"Eu vou primeiro com Andrés. Depois vem o senhor com o Anderson. Deixe eles se matarem à vontade", eu propus, eliminando a necessidade do enigma. Não estávamos em um maldito episódio dos Simpsons afinal; tínhamos um problema do tamanho de uma catedral para resolver.

Pois bem, os meninos se mataram como previsto, se arrebentando mutuamente de socos e pontapés enquanto iam diminuindo de tamanho na margem que deixávamos para trás. Tive pena de "sêo" Danilo, querendo intervir e não conseguindo.

Quando terminamos a travessia, os dois policiais estavam um caco e os suprimentos pareciam ter sido atacados por um rato, cujo nome começava com a mesma inicial de "rato". Que merda, eu tinha apostado que o Renan poderia ficar com os suprimentos e não atacar a mochila, com a falta de apetite que vinha demonstrando esses dias, mas me enganei. O garotinho estava de volta à sua voracidade primitiva.

Tinnitus era mesmo um colosso. Eu estava assombrada e intimidada pelo tamanho incomensurável do trambolho. Um verdadeiro aleijão na paisagem bonita da ilha, mas que por vezes parecia complementar aquela mesma paisagem com uma beleza simétrica, esquisita e assustadora. Daqui da prainha (que para meu assombro não era formada por areia, mas por quartzo moído como em Ibitipoca, na região de Juiz de Fora) já dava para sentir que ventava muito na ilha, como já tinha avisado "sêo" Danilo. Daqui também se avistavam os detalhes esculpidos no sino, uma tapeçaria refinada e absurdamente sofisticada dentro da nitidez cegante que se apossou da minha visão depois de minha morte. Eu olhei para o sino e para o criador do sino, incrédula. Como poderia ainda ser incrédula, mesmo depois de tudo o que já vi?

"Que é que a senhora tanto me olha?", ele perguntou, rude.

"Respeito com os mais velhos é sempre importante, "sêo" Anderson", asseverou o sertanejo com voz firme, fazendo o ferreiro se encolher ligeiramente, "existem muitos jeitos de perguntar as coisas."

A estrutura em torno dele era simples e objetiva: um objeto imenso, parecendo uma trave de futebol de onde Tinnitus pendia. Uma escada em caracol de torno de uma das colunas desse objeto e algo lá em cima que regulava a velocidade de dobre do sino. Depois de uns cinco minutos de caminhada por um trecho de mata para dentro da ilha, chegamos à base do sino.

O assombro do assombro. O tamanho mastodôntico do objeto, intimidador ao extremo. Os detalhes infinitos engastados no metal. Paisagens da cidade, seu casario, estações do ano. Anderson se animou um pouco e disse que os detalhes do sino mudavam. Que por vezes, se podiam ler até textos escritos no sino que se autogravava continuamente de acordo com as circunstâncias da cidade. Achei que o sino estava parado. Anderson disse que o movimento era lento demais para que os olhos pudessem acompanhar e estava ainda mais lento pelo fato dele estar parando.

Avisou que não deveríamos ficar exatamente embaixo do sino. Olhei para lá e vi o poço embaixo dele. O ferreiro explicou que os basiliscos e outros tipos de criaturas eram atraídos pelo sino e jogados dentro do poço. Achei que funcionava como um apanhador de sonhos gigantesco para a cidade.

"O que é um apanhador de sonhos?", quis saber Renan.

Expliquei a ele o que era e enquanto eu ia explicando, Anderson já subia a escada em caracol rumo ao topo da moldura do sino, "Renan!", Anderson gritou lá de cima com a voz irritada, "larga de conversa mole e vem dar um talento aqui!"

Contrariado, Renan subiu a escada. Lá em cima, os dois começaram a mexer juntos em uma alavanca ou coisa parecida que não podíamos enxergar por causa da altura extrema. O vento assobiava em redor, vento forte e amedrontador, levando as palavras ditas para o infinito, mesmo sob a luz do sol e sob o bom tempo na região. Nós três observávamos o movimento deles, sem nada entender da engenharia do ferreiro.

Comecei a dar a volta no sino. Admirava seus detalhes e me perguntava quanto tempo levaria até que Andrés ou "sêo" Danilo me dissessem que eu não deveria fazer isso. Para minha surpresa, eles me acompanharam em torno do sino. Do outro lado, os detalhes gravados, fabulosos e uma frase escrita na parte de baixo do sino:

"A letra A tem teu nome. Tu conheces metais como ninguém. Tu gostas de música, mas não entendes nada. A letra R tem teu nome. Tu não tens como ajudar sozinho."

"Por que Anderson teria gravado isso no sino?", perguntei. Os dois que me acompanhavam foram de opinião que aquela frase provavelmente não tinha sido gravada por Anderson.

"Tinnitus é como o Livro das Origens", disse Andrés, "é como se ele falasse com a gente, D. Stella."

Ele gritou para que os dois descessem. Daqui não se via, mas se adivinhava a expressão interrogativa dos dois. Eles desceram e vieram ter conosco. Apontei para a frase e perguntei se Anderson a tinha deixado ali. Pela expressão dos dois policiais, vi que era novidade para eles também que aquilo estivesse escrito ali.

"Diacho… Não tinha visto essa bosta…", fez o ferreiro, confuso.

"Mas o que isso quer dizer???", perguntou o outro policial, tão confuso quanto o primeiro.

"Quer dizer que nenhum de vocês dois vai conseguir fazer isso, pelo menos não sozinhos", explicou "sêo" Danilo.

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