domingo, 28 de junho de 2009

Espantalho

Alberto apareceu na Taurinos hoje de manhã. Trouxe Anderson, que ficou sentado na mesa junto conosco, mas era como se estivesse em outro mundo. Cabeça baixa, não dizia uma palavra. O pai parecia triste e deprimido. O filho mais ainda. Não me lembro de ter visto aquele homem sorrir, talvez exceto pelo dia em que me perguntou se eu era católica, durante a Lei dos Touros.

"Eu disse a ele, ele precisa voltar às boas com o Renan", Alberto dizia, gesticulando muito, "não se pode guardar rancor de ninguém. Faz mal por dentro. Agora estão os dois aí, que nem se aguentam em pé."

Achei que estávamos perdendo tempo com Anderson. Nada iria mudar a situação deles assim, do nada. Somente os grandes trancos da vida movimentavam esta cidade morta e enterrada a 200 quilômetros acima do nível do mar. Digno de nota apenas o reconhecimento dele do zumbido presente no ar de vez em quando. Ao ouvir falar no ruído, Anderson levantou a cabeça. Foi a única coisa que o fez levantar a cabeça. Para mim, era a única novidade em Taurinos naquele momento.

Andrés veio ter comigo depois do almoço. Perguntou se eu estava ouvindo um zumbido. Eu disse a ele que já o vinha escutando havia uns dois dias. Manifestava-se, depois se calava, como que enterrado no fundo do nosso subconsciente.

"Tinnitus, não é?", perguntei, me referindo à condição médica em que o ouvido percebe ruído que na realidade não foi produzido.

Ele arregalou os olhos para mim. Antes que eu perguntasse se ele precisava de um médico também, ele me perguntou, "como a senhora sabe o nome do sino?"

"Que sino?", achei razoável perguntar. Você nunca sabe os segredos que o pequeno Grão Vizir pode ainda estar escondendo dentro de si. Assim como você nunca sabe os segredos que Taurinos pode ter ainda escondido. Eu tinha o palpite de que todas as eternidades não bastariam para esvaziar esse oceano de surpresas.

"O sino que Anderson construiu perto do lugar onde ele teve a iniciação. Não é possível que a senhora não tenha visto ei quando fomos lá. É imenso, quatro a cinco vezes maior que a casa aqui da fazenda, D. Stella…"

Agora me lembro que não me lembro de nada disso. Todo o tempo presa à cena dos círculos, depois sem poder nem mesmo desviar os olhos de dentro do círculo interior. Não, eu não tinha visto nenhum sino realmente. Mas como eu poderia ignorar, simplesmente ignorar um objeto do tamanho que ele descrevia?

"O maior sino do mundo, o Tsar-Kolokol III, fica no Kremlin, Moscou, Rússia. São de 150 a 200 toneladas. Ele tem seis metros de altura e seis de diâmetro.", eu disse a ele, "a casa da fazenda deve dar pelo menos quatro vezes isso, Andrés! Como foi que o Anderson conseguiu construir um monstro desse tamanho no dia da iniciação??? Só para fundir o sino russo precisaram de 200 ferreiros especializados em fundição de sinos, meu jovem amigo. Como é que o seu amigo e meu inimigo favorito conseguiu um feito como esse?"

"Anderson, o que for para fazer com metal, ele faz mágica, D. Stella. E aqueles 200 coitados estavam em Moscou, não em Minas Gerais."

"Andrés, isso não é piada de mineiro, sabe. Está acontecendo algo grave em Taurinos, segundo você mesmo diz e a gente precisa saber…"

"Quem disse que eu estou contan'o piada de mineiro? Lá vem a senhora de novo dizendo que eu sô mentiroso, porra!"

"Tem como irmos de carro até lá ver? Eu, você e Adriano ou seu pai?"

"O pai não deixa ir até lá, enlouqueceu, D. Stella?", ele parecia apavorado com a simples idéia.

"Mas por que?"

"O sol negro iluminou aquele lugar. O lugar é maldito, é ponto de iniciação da Polícia Obscura. Renan se iniciou ali, Anderson se iniciou ali. Já foi bem ruim a gente ter que ter ido até lá testemunhar o ritual do Anderson, sabe. Por que acha que Renan escolheu aquele lugar? É um fim de mundo dentro do município, ninguém vai ali. A senhora lembra que nem os pássaros cantavam nas redondezas? Não se ouvia nenhum som de bicho, nem na'. Na rastejan, pian, cantan, na."

"O som que a gente ouve é o som do sino?"

"É o som do sino parando. Quando ele está tocando normal, ninguém ouve, só gente de fora."

"Como é que é?"

Andrés me explicou que Anderson construiu o sino gigantesco visando aliviar o trabalho da Polícia Obscura. A idéia era espantar os entrantes utilizando o som do sino. O sino era então como um gigantesco e pavoroso espantalho sonoro. Não funcionou desde a estréia. Teoricamente a frequência produzida pelo sino deveria espantar até o próprio Satanás, mas algo saiu errado, algo que nenhum dos dois sabe dizer o que é. O sino só poderia ser ouvido pelos entrantes quando estivesse tocando. Quando ele começou a diminuir a velocidade de balanço, um zumbido resultante começou a ser ouvido por toda a população de Taurinos. Quando o sino parasse por completo, a vibração saindo dele seria o bastante para enlouquecer todo mundo na cidade, ensurdecer e arrebentar tudo o que encontrasse em seu caminho, começando pela própria cidade.

"Tinnitus era pra ser como a Polícia Obscura com som. Ele ia patrulhar a cidade pelo som; pelo menos essa foi a intenção de Anderson ao construir ei. Agora, já começou fudido…"

"Igual ao sino russo. Nunca tocou."

"Ah, mas ess' tocou e toca. É que a gente não pode ouvir. Agora tá começan'o ouvir a vibração dei porque ei tá parando de mexer, D. Stella. Só vai ficar pior com o tempo."

O sino (qualquer que fosse seu tamanho) era então mais um fragmento que se perdeu. Foi apagado de minha memória do dia da iniciação de Anderson. Como isso aconteceu, só encontra paralelo em minha perda de memória em março. Mais uma memória em salto, como a própria existência da Polícia Obscura. Eu conversei longamente com Renan sobre isso. Era como um quadro de um filme que o projetor agarrasse e ao soltá-lo o filme já estaria num quadro muito mais adiante causando uma ruptura do movimento. Somando-se à evolução da resolução de imagem dos Agentes que presenciei da Polícia Obscura, tudo aqui me passa a impressão de ser um mundo feito de vídeo.

Discuti com "sêo" Danilo hoje. Fiquei bem nervosa com ele, mas depois me acalmei. Queria que ele parasse de me chamar de louca cada vez que propunha um plano de ação.

"Se o senhor não tem idéia melhor, "sêo" Danilo, por que não essa? Vamos até lá, vemos o desgraçado do sino."

"Eu pensei que a senhora já tinha visto ele na desgraça da Inciação do menino do "sêo" Alberto, "sá" Stella… E ir até lá só pra ver o sino, desista. Se o "sêo" Anderson for com a gente, pelo menos já temos uma luz para guiar; foi ele quem criou aquilo. Se ele não souber o que fazer, quem vai saber?"

"O senhor precisa conversar com ele, "sêo" Danilo, vai ver que o senhor ele ouve. Ele é meu inimigo agora, nada do que eu disser vai mudar alguma coisa para ele."

"Outra coisa é que se tem que ficar lá só enquanto tiver luz do dia e mesmo assim é perigoso, "sá" Stella. Se eu fosse a senhora assuntava um pouco mais antes de ir", ele acrescentou.

"Não tem muito tempo para se assuntar, "sêo" Danilo."

"Mas o que a senhora pode fazer para acertar o sino?"

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