terça-feira, 19 de maio de 2009

Qualquer lugar longe daquele inferno

Andrés e Adriano apareceram cedinho de manhã. Vieram perguntar coisas sobre o dia de ontem. Meire estava dormindo ainda quando eles chegaram. Eu não estava muito na finalidade de conversar. Sabia que eles iriam ficar falando principalmente sobre a iniciação de Anderson no alto da montanha. Aquilo me deprimia, mas fora as crises de vômito ditadas pela nojeira explícita e pela crueza extrema das cenas, o psicológico dos meninos não parecia ter sido afetado. Andrés, esse nem as crises de vômito teve. Perguntei se eles já tinham tomado café. Eles disseram que não. Que os pais estavam dormindo ainda. Que eles pareciam ter ficado esquisitos desde o dia da iniciação de Anderson. Eu disse que provavelmente o Sol negro tinha afetado a cidade inteira.

"Vocês poderiam inverter as coisas e fazer café para os pais de vocês uma vez por ano que fosse. Aliás, se seus pais não acordam, vocês ficam morrendo de fome numa boa, não?"

"Ninguém morre em Taurinos, D. Stella, graças a senhora", lembrou Andrés.

"Pior ainda, nem a morte para interromper de vez o sofrimento."

Andrés se calava. Eu disse a eles que me ajudassem a fazer o café. Ele eram extremamente desajeitados, mas de algum modo conseguimos arrumar uma mesa decente. Contei a eles de um eclipse solar que vi em 1994. Adriano me disse que foi o ano de seu nascimento. Naquele dia me senti péssima. Estranha ao extremo. Imagine-se então um fenômeno como aquele do Sol negro, derivado de uma mágica diabólica como aquela que tragou o ferreiro para dentro das sombras. As coisas que ele foi e será automaticamente obrigado a fazer.

"O que a senhora achou do ritual de iniciação?", perguntou Andrés.

"Sem comentários."

De repente, me lembrei da roupa dele no fim do ritual, limpa, imaculada como tinha subido a montanha. E perguntei a ele como tinha sido o ritual. Ele ficou desconfiado da pergunta. Adriano se animou a responder e eu pedi a ele que ficasse quieto. Eu disse a ele que queria saber de Andrés.

"Por que a senhora está me perguntando isso? E por que o Adriano não pode responder?"

"Por que você não responde?"

"Tudo bem, vou dizer", o menino deu de ombros. O relato dele foi qualquer coisa menos o que eu e Adriano vimos no topo daquela montanha.

"Onde você estava durante a Iniciação do Anderson, Andrés?"

"Ora essa, eu estava… Que diabo de pergunta é essa? Não me viu lá, não me viu dentro do carro, no banco da frente do lado do Adriano?"

"Seus olhos e os seus ouvidos estavam em outro lugar. Você estava ali parado como uma coluna no círculo exterior, mas não viu nada do que aconteceu dentro do círculo interior. Seus olhos não queimavam porque você não os desviava de dentro do círculo, mas você "via" e "ouvia" outra parte de Taurinos, qualquer lugar longe daquele inferno, não é? Isso explica porque você tinha as roupas limpinhas quando saiu de lá. Você estava fresquinho como uma flor ao sair de lá. Todos nós cinco, incluindo o seu irmão, só faltamos cagar nas calças com toda aquela desgraça. Você parecia que tinha saído do cinema depois de assistir uma comédia romântica. Isso me deixou bem encafifada na hora."

Andrés olhou para o irmão, envergonhado. Adriano sorriu e o sorriso se transformou numa risada que deixou o irmão mais novo ainda mais sem-graça.

"Que malandro! Andrés é um pilantrinha, esse meu irmão caçula!"

"A nossa presença bastava, porra! Mesmo de olhos abertos, vocês podiam ter imaginado uma bandeira do Brasil no lugar daquela merda toda que vocês viram…" Andrés tentou se justificar.

"Engraçado, achei mesmo que uma bandeira do Brasil era a representação perfeita daquela merda toda que nós vimos durante o ritual", eu teorizei, procurando não rir.

"Agora que você fala. A gente devia te entregar pra Polícia Obscura", ralhou Adriano, no fundo sentindo vontade de rir, e brincou, folgazão, para desespero do irmão mais novo, "aliás, eu vou ligar pro Anderson agora mes…"

"Pode economizar a ligação, se quiser", disse uma voz familiar vinda da sala, "há quanto tempo sua fechadura está arrombada, D. Stella?"

Andrés mudou de cor. Anderson assomou à porta da cozinha, à paisana.

"Há quanto tempo você está aí???", a pergunta de Andrés era um verdadeiro clássico.

"O tempo suficiente. Eu não estou zangado com você, Andrés. Você não perdeu nada. Pode relaxar."

"Eu gostaria de poder relaxar também", eu interferi, "mas me veio de repente uma nostalgia danada do tempo em que a Polícia batia na porta antes de ir varando por dentro da casa das pessoas."

Andrés e Adriano se quedaram quietos. Eu ofereci café ao recém-chegado também. Ele aceitou o café e se desculpou por ter entrado sem pedir licença. Disse que não tinha exatamente vindo na qualidade de Polícia. Disse que viu a fechadura arrombada e veio conversar para tentar descobrir quem poderia ter arrombado a porta. Fui com ele examinar a porta. Ela encostava, mas não trancava. Havia um sinal de arrombamento nítido na porta. Nítido naquele momento em que eu finalmente prestei atenção. Há quanto tempo estaria daquele jeito? Agora me lembrava que nunca tranquei a porta de casa mesmo com tudo o que acontecera.

"Foi a Polícia", disse Adriano, num repente.

"Como é que é? Eu estou ouvindo direito? Você está me acusando ou o Renan de ter arrombado a porta da casa de D. Stella?", rugiu Anderson.

"Ei, espera aí, foi a Polícia lá de Santos, onde a D. Stella vivia, Anderson. Isso já está assim desde que eu e o pai construímos a casa."

"Como você sabe que foi a Polícia?", perguntou o ferreiro.

"Eu vi na hora que eles estavam arrombando. "Sá" Meire veio com eles."

"Stella, quem está aí com você?", a voz da Meire vinha lá de cima.

"Nada, são os filhos do Duílio e o policial malcriado de ontem, Meire. Sabe aquele policial que passou pela gente no bar do Zé das Profundezas e só cumprimentou o Duílio? Então, é ele.", eu gritei de dentro da cozinha, deixando Anderson vermelho.

Meire apareceu na porta da cozinha.

"Eu queria te agradecer, menino malcriado", ela disse olhando para Anderson; este último olhou para mim, confuso, "por ter salvo minha vida."

Ela abraçou Anderson e beijou o menino na cabeça. Os irmãos Conselheiro riram baixinho, divertidos com a cara do amigo. Anderson ficou mais vermelho ainda. Que amorzinho. Me perguntei — filho único e tudo — quantas vezes aquela coisinha redonda tinha recebido um carinho de quem quer que fosse nessa merda de cidade.

"Que é isso, "sá" Meire, eu não ia deixar a senhora morrer", ele falou encabulado, as bochechas vermelhas de menino de interior que recebe um carinho inesperado, "mas isso não quer dizer que não odeie você e D. Stella por terem me feito entrar na Polícia Obscura quando tudo o eu queria era um pouco mais de tempo pra me preparar. É só porque eu deixaria meu até meu pai morrendo para vir ajudar D. Stella e qualquer amigo dela de verdade. É só porque eu fui criado para isso. Isso não quer dizer que não odeie você e D. Stella, "sá" Meire. Se está me fazendo um carinho, está fazendo um carinho numa pessoa que te odeia. E eu não posso odiar vocês porque passar minha vida inteira protegendo D. Stella. E mesmo assim odeio. Eu não sei o que fazer, sabe."

"Você não pode estar falando sério", disse a Meire, atônita, olhando para mim, como que em busca de socorro, de uma explicação para aquela coisa que tinha acabado de beijar.

"Pode sim, Meire. Anderson é tudo isso que ele está te dizendo."

"Eu odeio o Renan porque ele me transformou nisso que eu sou agora. Aquilo que vocês viram na praça. Aquilo que a senhora viu na montanha. E igual a aquilo que "sá" Meire viu dentro da floresta. A idéia de ficar do lado dele é nojenta. Eu odeio o Renan com todas as forças. Mas eu não posso odiar o Renan; eu tenho de dar cada gota do meu sangue (e depois ainda ir em frente sem sangue mesmo) para proteger meu parceiro, assim como ele tem que ir até o inferno mais profundo pra poder me ajudar. Quem consegue viver desse jeito? E, sendo que a gente nunca vai morrer, quem não consegue?"

Ele olhou o vazio. Ninguém se atrevia a dizer uma palavra. Ele prosseguia, "quando eu piquei aquele primeiro cara com um machado e fatiei ele, vocês não sabem o gosto que eu sentia em ouvir ele gritar de dor. Vocês não sabem a dor que eu sentia em ouvir ele gritar de dor. A aflição de arrancar o topo do crânio dele no machado pra fazer uma cuia e beber o sangue dele…"

"Ele picou o que??? Bebeu o que???", Meire não acreditava no que estava ouvindo. Fiz sinal para que ela se calasse.

"Você não queria porque queria saber o que aconteceu no alto da montanha?", perguntei, olhando severamente para ela, "pois é isso que ele está contando. Quis escutar, agora escuta. Agora aguenta."

"No segundo cara, depois que o Renan arrancou o saco dele inteirinho e enfiou todo na boca, eu tive orgulho de como ele era decidido. De como ele fazia alguma coisa tão forte com um invasor que ia servir de lição por toda a Eternidade."

Meire foi se afastando dele, aos poucos. Ele a seguiu com os olhos.

"É, "sá" Meire, melhor ficar distante. Se me encontrar dentro da noite, eu e o Renan, somos aquela figura com bico enorme de pato, com um número oito deitado na testa, que você viu na mata. Você só vai me reconhecer no lombo do cavalo porque eu sou mais alto que o Renan. Melhor mesmo ficar distante."

E, depois num rompante:

"Quer ver como eu sou na cavalgada de noite? Quer ver o que a Polícia Obscura fez comigo?", ele estava falando sério.

Andrés e Adriano se levantaram apressadamente, "acho que está na hora de voltar pra fazenda… A gente não quer atrapalhar."

"Anderson, eu te proíbo. Você está na minha casa."

Anderson se calou por uns instantes. Depois disse que jamais apareceria na frente dela ou na minha naquelas condições se eu ou ela não quiséssemos. Mas que se ela quisesse, poderia.

"Você ficou igual a ele?", Meire perguntou, assustada.

Anderson assentiu com a cabeça e fungou.

"O Sol ficou preto e me transformou."

Meire olhou para mim. Me cobrou a conversa do "eclipse" e por que eu não tinha explicado isso a ela. Respondi que ela ainda não tinha metido o nariz de forma tão decisiva na história e nem acreditaria em mim de qualquer modo. E a adverti de que ela poderia se arriscar até mesmo a ficar presa aqui para sempre, como aconteceu comigo, e por fazer a mesma coisa: saber demais sobre a cidade. Ela se recusava a acreditar e eu disse que isso era mais como uma teoria minha que não devia ser levada ao pé da letra. Mas que eu já tinha tido a prova do poder de criação da imaginação humana. A prova era a própria Taurinos.

Anderson contou todo o ritual para Meire (e para Andrés que — a seu modo — não tinha também estado presente aos eventos) e eu vi o horror crescente no semblante dela. Penso em quantos anos ela envelheceu naquela hora.

"E aquele carro na praça? O que foi que você fez pra fazer aquela moça gritar tanto?", Meire arriscou, entre apavorada e ressabiada, pobre mulher tentando saber mais sobre o solo em que pisava, mesmo sem saber se aguentaria saber a verdade.

Anderson ficou surpreso, relanceou os olhos para mim e perguntou se Meire não viu o que se passou. Eu disse que na posição em que ela estava na mesa ela não podia enxergar e de mais a mais ela não sabia o que esperar dele. Andrés se interessou, aparentemente não tinha "visto" aquilo acontecer; Adriano apenas ergueu as sobrancelhas.

"Eu arranquei a cabeça do namorado dela no relho. Se não fosse o trabalho que ia dar pra mandar recolher o veículo, eu tinha matado aquela vagabunda escrota e fodida também. Tão vagabunda, tão escrota e tão fodida que queria jogar o corpo do namorado fora do carro como se fosse um lixo. Não que pra mim ele não fosse lixo, mas eu pensei que ele em importante em alguma coisa pra ela. Mas que nada, que importância é que o cara ia ter pruma vagabunda escrota e fodida como aquela? Fui muito educado com ela. O que ela merecia era uma boa escarrada, bem grossa, no meio da fuça. Eu não ia fazer nada, mas o filho da puta ia atirar. Eu não queria matar, mas não me arrependo porque não posso me arrepender. Agora eu tenho que proteger a cidade, goste ou não goste. Eu fiz isso desde o começo emprestando as armas pro Renan, não foi? Pois agora eu tenho que fazer isso, mas eu odeio fazer isso. Eu não tenho vontade própria, quando eu vou ver eu já fiz, eu não tenho querer ou não querer. Estou fodido por toda a Eternidade."

Continuamos a falar sobre a fechadura por mais um tempo, depois que Anderson desabafou e que Meire conseguiu dominar seu faniquito. Eu não esperava que ela entendesse o que acontecia em Taurinos, mas que ela dominasse um pouco mais o seu espanto, o que também era extremamente difícil (já era difícil para mim, quanto mais para ela). Meire ficou curiosa pelo assunto, foi ver a fechadura arrombada. Ela disse que tinha sido a Polícia de Santos. Ela disse que ela mesma os levou até lá. Adriano olhou para Anderson, que retribuiu o olhar e se desculpou com ele.

"Você me disse no telefone que estava se sentindo estranha. Não que fosse uma novidade pra mim te ver se sentindo estranha, mas dessa vez, do jeito que você falou, fiquei preocupada. E eu tinha razão. Você falou que estava indo para um outro plano, uma coisa assim. Que pelo menos era assim que você se sentia."

Os meninos olharam para mim. Houve um momento de silêncio mortal entre todos nós. Eu neguei aquilo que ela dizia. Eu me lembrava do que tinha dito a ela e do que ela tinha dito a mim.

"Não, Meire; você começou me dizendo que não estava zangada comigo e que eu poderia ter sido menos dura com você por causa da conversa que tivemos sobre o menino mexicano. Você me disse que minha franqueza era… Meus Deus, como era mesmo? Cortante como um punhal. Cortante como um punhal, isso mesmo. Eu até brinquei dizendo que punhais são para perfurar, não para cortar e você me disse que eu tinha entendido muito bem… Então eu disse a você que viria para Minas Gerais naquele mesmo dia e que não íamos nos ver por algum tempo. Foi isso."

"Tudo isso aconteceu, Stella; só que em nenhum momento você não me disse que estava vindo para Minas Gerais. Na verdade, você me disse com todas as palavras que achava que ia morrer. Que você nunca tinha sentido antes o que estava sentindo naquela hora. Depois, eu tentei dizer que ia até à sua casa para te levar ao médico, mas não tive mais resposta. A linha não caiu, entendeu? Se tivesse caído ou você colocado no gancho era outra coisa, mas ficou o som do ambiente da tua casa, os barulhos de uns vizinhos tocando música alto. Foi um trabalhão conseguir que dois policiais viessem comigo. Um deles é meu conhecido e ele se arriscou muito para arrombar a sua porta. Porque se pegassem ele, ele ia ser exonerado, sabe? Ele pegou um outro amigo dele que fazia a ronda junto, olha, foi uma demora louca, mas fomos. A gente tem que entender, né, é o ganha-pão dos caras. Quando chegamos à sua casa, não foi difícil arrombar a fechadura, por isso você vê que não teve muito estrago na fechadura, olhe lá para ver."

Mas como eu poderia ter falado com ela? Eu falei com Duílio ele no dia anterior ao telefonema dela. Se eu falei com Duílio no dia anterior, eu já estava em coma. Como poderia Meire ter tido uma conversa comigo ao telefone quando eu já estava em coma?

"Eu não tenho idéia de como o tempo passou ou de como você misturou tudo na sua cabeça, Stella. O que eu sei é o que estou lhe contando."

Olhei para os meninos. Anderson estava assombrado. Os irmãos Conselheiro estavam assombrados. Como se estivessem ouvindo a descrição de seu próprio nascimento. E estavam. Como se fossem crianças crescidas assistindo ao vídeo de sua própria ultrassonografia. E eram. Sem saber, Meire estava contando a eles sobre o Dia da Criação, de seu próprio ponto de vista. Meire notou o espanto das crianças, os rostos espantados de tudo o que já não mais seria novidade para eles. Achei que era o espanto duro e típico do momento da Criação, da saída do caos primitivo. Como eles, eu não deveria estar espantada. Mas estava no topo do meu espanto eu também.

Saudações de um homem morto | Mintaka, Alnitak e Alnilam

Rádio Universal: Polícia Obscura

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