quarta-feira, 20 de maio de 2009

Mintaka, Alnitak e Alnilam

Liguei para a fazenda Teixeira e perguntei ao Renan se ele iria cavalgar esta noite. O menino disse que não. O céu aberto me inspirava a sair pelos campos com meu mp3 e meus amigos para observar o céu noturno. Queria que Renan viesse, ele que quase nos matou de medo há pouco tempo com sua curiosidade sobre o que fazíamos no descampado. Queria que Meire parasse também para observar o céu. Dar um pouco de sossego de toda a loucura que ela tem vivido (mesmo perifericamente) na cidade. Mostrar que Taurinos não é só a violência descabelada de que ela tem sido testemunha involuntária desde que chegou.

"Posso ir de uniforme?"

"Ah, não, Renan; não vem com essa. Tem gente de fora na cidade que você precise exterminar assim com tanta urgência?"

"Hoje está tudo calmo", ele respondeu, a voz soando casual do outro lado da linha, sem se importar com minha ironia.

"Então, pra que esse negócio de de uniforme? Vem com as tuas roupas comuns, ninguém vai sair pra ronda nenhuma."

Mais tarde, Andrés perguntou se ele viria de uniforme, "se for assim, vão vocês duas, eu nem vou sair com Polícia do meu lado" e eu disse a ele que tinha pedido que Renan deixasse o uniforme em casa.

Eu disse que "sêo" Danilo tinha me prevenido quanto a andar pelos descampados de Taurinos, que não eram poucos. Renan se interessou e disse que provavelmente ele estava falando da Polícia Obscura.

"É por minha causa, eu sempre ando a cavalo pelos descampados à noite. Foi assim que eu encontrei vocês naquele dia. Mas hoje vocês estão comigo. Não tem como a… Polícia Obscura aparecer", ele aceitara o nome, mas ainda hesitava em pronunciar um apelido que tinha passado tanto tempo odiando mortalmente.

Andrés vinha caminhando com Meire, pouco mais atrás. Achei melhor dividir assim, se os dois vem juntos, um do lado do outro, sempre acaba saindo discussão. Renan parecia contente em ter sido chamado para sair que não fosse o chamado do dever — que era como ele se referia à Polícia Obscura — mas perguntou o que íamos fazer no descampado.

"O mesmo que estávamos fazendo naquele dia, eu e Andrés."

"E o que vocês estavam fazendo naquele dia, a senhora e o Andrés?"

"Olhando as estrelas", eu disse, "fazendo a leitura do céu."

"É assim tão legal olhar as estrelas que você saem à noite só pra fazer isso?"

"Eu acho legal assim. Lembro que eu viajava centenas de quilômetros para vir aqui perto, em São Thomé das Letras para ver o céu."

"Meus pais já foram para São Thomé passar uns dias. Eu sei porque eles me disseram, eu não tinha nascido ainda, mas o Guilherme estava com eles quando eles foram. Meus pais disseram que é muito bonito lá, mas que as pedreiras da cidade estão destruindo a cidade."

"É verdade. Já nem me lembro mais quantos anos faz que não vou a São Thomé. Espero que não tenham destruído tudo."

"Em Cambuquira eu já fui, ano passado, é aqui perto também. A cidade é bonita também, mas achei muito parada. A gente ficou num hotel com o nome da cidade. Ali perto tem o Parque das Águas, com aquelas águas de gosto esquisito e que dá caganeira depois. Tem uma até com cheiro de ovo podre, acredita?"

Eu ri. Disse que gostava de água gasosa direto da fonte. Disse que ele estava falando de água sulfurosa; o cheiro era devido aos sais de enxofre dissolvidos na água.

Sentamos todos numa canga enorme que eu tinha. Houve um silêncio grande. Eu estava envolvida pelas estrelas de um modo que não conseguia (nem queria) evitar. Fazia todos os meus problemas parecerem tão pequenos. Fazia todos os nossos problemas parecerem tão insignificantes. O que havia diante de nós era a vastidão do universo. A duzentos quilômetros acima do nível do mar, não há nuvens baixas. Nós é que estamos alto demais. Meire olhava também absorvida pelo visual absoluto da Via Láctea. Andrés procurava suas constelações favoritas.

"Andrés me falou que as estrelas formam uns desenhos, D. Stella", Renan me disse.

"Olha lá, Renan, ali é o Cruzeiro do Sul. Segue o meu dedo aqui, assim. Tá vendo? Aquela estrela ali sempre aponta para o sul."

"Ei, é bonitinho. E tem uma estrelinha ali quase no meio da… da…"

"Constelação, Renan", ajudou Andrés.

"Isso, constelação. Não é? Uma estrela minúscula ali no meio."

"Aquela é a que chamamos de Intrometida no popular. O nome astronômico dela é Juxta Crucem, o que significa algo como 'junto da cruz'. Fica a 384 anos-luz daqui", eu esclareci.

"Como é isso em quilômetros?", perguntou a Meire, curiosa. Expliquei que ela teria de pegar o número de segundos que há num ano inteiro e multiplicar por trezentos mil. Ela ficou assombrada. Disse que não conseguia nem imaginar um número como esse. Os meninos também se espantaram com o cálculo que eu propus. Renan chegou a dizer que o número talvez não coubesse numa calculadora normal, no que concordei.

"A mais próxima é a Gacrux que fica a uns 88 anos-luz daqui. Mesmo que a gente pudesse viajar a 300.000 km por segundo (uma velocidade que nem imaginar podemos) levaria 88 anos para chegar lá."

Andrés assobiou daquele jeito admirado.

"Isso pra nós não é problema. Daqui a 88 anos eu vou ter dez anos, de qualquer modo", comentou Renan, divertido.

"E eu, doze anos", ajuntou Andrés, rindo baixinho.

Meire olhou para mim com aquela cara espantada, me fazendo rir baixinho como Andrés. O silêncio era o dos grilos e curiangos ao redor de nós. Andrés mostrava agora a Renan sua descoberta, que era Órion, o Caçador Celeste.

"Eu achava que era perto do Cruzeiro do Sul, mas é bem do outro lado", ele disse, "olhe lá, Renan, o cinturão do caçador é formado pelas Três Marias."

Renan aparentemente não via nada do que estava sendo descrito. Andrés apontou outra vez e outra até que ele começasse a entender alguma coisa. Não teve problemas em visualizar as Três Marias, mas achou que aquilo não parecia nem de longe um caçador.

"Ah, Renan, você não tem é imaginação", declarou Andrés.

"Hmmm… Tenho muito mais que você", o pequeno ficou revoltado.

"Não tem…"

"Tenho…"

"Não tem."

"Tenho."

"Não tem!"

"Tenho!"

"Não tem!!"

"Tenho!!"

"Não tem!!!"

"Tenho!!!"

Mas que discussão de nível dessas crianças, "vocês não vão começar com essa putaria, vão?" e os dois sossegaram. Eu disse que as Três Marias tinham nomes interessantes: Mintaka, Alnitak e Alnilam. Esta última, eu disse a eles, distava quase 1400 anos-luz daqui. Meire ainda ria baixinho da briguinha dos dois. Disse que gostaria de viajar pelas galáxias. Renan falou que queria ter uma nave espacial e filmar sua viagem pra colocar o vídeo no You Tube. Eu ri e disse que nem todo o You Tube ia dar.

Ficamos horas ali. Eu já tinha perdido a conta. Eu notei que os sons da noite se calaram de repente. Andrés e Renan pareceram notar o mesmo. Só Meire ainda presa à contemplação do céu, ainda viajava pelas dimensões estelares. Não podia culpar minha amiga.

"Escutem", falou Renan.

"Escutar o que?", acordou Meire.

"Espera, faz silêncio e ouve", pediu Andrés colocando o indicador sobre os lábios.

Um som de cavalgada ao longe. Era alguém da cidade? Renan tinha dito que não haveria cavalgada hoje. Quem poderia ser? Renan colou o ouvido no chão.

"É o Agente Anderson", ele disse confuso e, vendo que Meire ia seguir seu exemplo e colar também o ouvido no chão, segurou minha amiga pelo braço, "ei, não faça isso, "sá" Meire, pelo amor de Mitra!!!", e acrescentou, "ele está naquele aspecto que vocês já conhecem e pela direção ele está vindo direto pra cá."

O diabo, quando não vem, manda o secretário. Eu já me via numa reunião do Conselho, dizendo a Anderson a mesma merda que disse a Renan naquele dia. Meire me perguntou o que era aquele aspecto e eu respondi que era algo que queríamos evitar na conversa de ontem. Que eu tinha proibido Anderson de nos aparecer daquele jeito.

"O negócio horrível que parecia um pato?", ela virou o pescoço, alarmada, aparentemente agora ouvindo claramente o cavalo que se aproximava.

"Lá vamos nós de novo", reclamou Andrés, "a gente parece que não pode ter um dia de sossego nessa clareira."

"Ih, que foi, eu tirei o sossego de vocês naquela noite, é?"

Andrés afetou uma risadinha forçada para mostrar que a frase de Renan não tinha graça.

"Renan, uma hora eu vou enfiar a mão na tua cara por essas tuas brincadeirinhas e você não vai gostar…"

Renan mudou de assunto e disse que não haveria nenhum problema. Tudo o que nós tínhamos a fazer era não olhar na direção de Anderson, muito menos diretamente para ele. Meire começou a sentir a instalação de um faniquito, "vamos embora, eu prefiro ir para casa", e eu disse que não haveria tempo. Já se ouvia o estalar dos gravetos que o cavalo medonho vinha quebrando em seu caminho até aqui. Andrés foi o primeiro a vê-lo de longe. Como na outra noite com Renan, vinha por detrás de nós. Andrés deu as costas para a aparição da Polícia Obscura. O cavaleiro foi se aproximando e diminuindo a marcha. "Continua vindo", disse Renan, "esperem que eu vou falar com ele."

"Mas esse menino é doido? Como vai falar com uma visagem dessas?"

"Esse menino é uma visagem dessas", explicou Andrés a Meire, tentando manter a calma.

Apuramos o ouvido. A aparição de Anderson, agora pertinho demais para nossa segurança, conversava com ele ou devia estar conversando. Não se ouvia nenhum som. Um minuto depois, ouvimos o cavaleiro vibrar o relho sobre o cavalo e se foi. O som do relho enviou fundos calafrios da base da espinha para cima de todos os presentes, menos Renan, totalmente imune àquele encanto fatal. Demorou cinco minutos para os sons da noite se manifestarem de novo. A própria natureza tremia debaixo dos cascos daqueles cavalos legendários.

"Tudo bem agora, podem relaxar, ele só está fazendo uns exercícios que eu passei para ele e veio me perguntar uma coisa."

"O que?", perguntamos eu e Andrés.

"Ah, mas vocês são muito curiosos. Ele queria saber o que nós estávamos fazendo aqui. Não queria se meter, mas ficou curioso, né. Veem? Não são só vocês que são curiosos."

Descobri que as pessoas daqui, envolvidas por esse céu maravilhoso todas as noites, num universo aberto como aquele, simplesmente não sabiam o que fazer com tudo aquilo. No céu, o Cruzeiro do Sul, Mintaka, Alnitak e Alnilam resplandeciam como sempre resplandeceram desde o início dos tempos.

Qualquer lugar longe daquele inferno | Mal nenhum

Rádio Universal: Polícia Obscura

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