segunda-feira, 18 de maio de 2009

Saudações de um homem morto

Logicamente, o dono da mercearia Servebem Para Servir Sempre me disse que no momento não tinha um carro disponível para levar minhas compras. Ao menos as separou e empacotou para mim, com base na lista que mandei por Internet. Eu não tinha mais alguns suprimentos básicos, não poderia ficar esperando. Pedi a Duílio que fosse comigo e com a Meire. Eu estava arrebentada do dia de ontem; me recusei a comentar com ela o que tinha acontecido no alto da montanha. A figura de "Jacques DeMolay" não me saía da cabeça (na falta de um nome verdadeiro servia esse, que o homem havia de ter um nome, mas agora que nome tinha?). Quem dera eu pudesse apagar de minha mente a memória do homem, como o próprio homem fora apagado da existência por Renan e Anderson. A figura de nenhum daqueles três homens me saía da cabeça. Mas principalmente a figura daquele homem, o último a ser morto pelo ferreiro. Como esquecer suas palavras? Sua fina ironia, as últimas palavras de sua maldição para Renan.

"Ontem, lá pro final do dia, me senti estranha", disse a Meire, me acordando de meus delírios pessoais, "fraca, como se fosse desmaiar. Achei que era algo que tivesse ficado de anteontem, sabe? Mas Aparecida e Duílio me disseram que estavam se sentindo do mesmo jeito. Saímos lá pra fora para tomar um ar e estava anoitecendo. Pelo menos, foi o que a gente pensou. Mas era um eclipse do Sol, você viu lá na montanha também? Depois um clarão como se fosse um raio e o Sol voltou a ficar vermelho de novo…"

"Vi sim, eu vi tudo isso", eu me apressei em responder, "foi estranho, não?"

Duílio confirmou as palavras dela sobre como se sentiram. Ele parecia saber o que tinha provocado o "eclipse", mas não tocou no assunto, se limitando a olhar para mim de forma significativa.

"Engraçado, eles não prevêem esse tipo de evento astronômico na televisão? Geralmente aparecem no Jornal Nacional essas coisas, um dia antes e tudo…"

"Pois é, nossos jornalistas cada vez mais desinformados", eu dei uma risada fraca, como que para que o assunto perdesse força.

Guardamos as compras no porta-malas do carro de Duílio. Ele se animou a mostrar a Meire a cidade. Meire deliciou-se com a arquitetura colonial que já tinha feito sua delícia na própria fazenda Taurinos. As casas azulejadas, as telhas antigas feitas nas coxas (literalmente feitas nas coxas, de onde veio o termo para algo feito sem cuidado, embora as telhas desse tipo hoje em dia valham uma fortuna pelo caráter histórico e estético delas da própria estética colonial brasileira do interior). Decidimos parar no Zé das Profundezas para comer uns pastéis antes de retornar.

A caminho da praça principal, Duílio viu um carro que nunca tinha visto antes. Ele nada disse, mas notei seu interesse pelo carro e a placa de Ribeirão Preto. E eu pensei na destreza que tinham os moradores de Taurinos para reconhecer algo que estivesse fora de seu aquário com tanta rapidez.

Pegamos uma mesa do lado de fora no bar do Zé. Enquanto aguardávamos os pastéis, conversávamos sobre astronomia, um de meus assuntos prediletos, motivados pelo assunto do "eclipse" de ontem. Meire, como eu, não entendia grandes coisas do assunto, mas parecia gostar muito do que ouvia. Duílio não tinha a astronomia como seu assunto predileto, mas se interessava ele também pelos números e curiosidades do nosso Sistema solar e além.

Sons de cavalos na praça central, um grupo de tropeiros antigos passando. O bucolismo das coisas da cidade. Nada que me distraia por muito tempo, no entanto. Estou com o pensamento no topo daquela montanha e em tudo o que vi por lá. "Jacques DeMolay", o olhar feroz de Anderson cada vez que me encarava. Definitivamente fiz um pequeno inimigo. Um inimigo minúsculo, mas um inimigo poderoso.

Falou no diabo. Mais sons de cavalos, mas desta vez não eram mais os tropeiros. Era a Polícia Obscura. Agora, em dose dupla, os meninos de preto. Dupla encrenca, a julgar pela Iniciação de Anderson. Os dois apearam em frente ao bar, amarraram os cavalos em frente ao cocho, entraram. Renan cumprimentou a nós três e entrou. Anderson veio em seguida, cumprimentou Duílio educadamente, perguntou de Aparecida e dos meninos e desapareceu dentro do bar. Duílio fez menção de levantar e lembrar a ele que eu e Meire estávamos presentes, e eu o segurei pelo braço, pedindo que ele não o fizesse. Agora eu sabia como era ser a mulher invisível. Eu sempre quis ser invisível e agora que tinha conseguido, não sabia porque não me sentia tão feliz quanto imaginava que seria quando conseguisse.

"Mas o menino tem que respeitar os mais velhos", o homenzarrão protestou.

"Que está acontecendo? Que menino malcriado, ignorando as pessoas… Eu posso entender que ele me ignore já que não me conhece, mas ele não conhece você já há um tempo, Stella?", protestou Meire, fazendo coro com o dono da fazenda Taurinos.

"Sim, ele é um menino bem malcriado, mas se não fosse por ele e o nosso amigo Duílio aqui, que teve a brilhante idéia de ir buscar o menino, você agora não seria mais que um pedaço de carvão na lareira do tempo", eu disse, defendendo Anderson.

Lembrei a ela que o menino se submetera a uma iniciação duríssima para salvar a vida dela. Não fosse a distração que ele ofereceu a Renan prometendo se apresentar para ser iniciado na Polícia Obscura e depois a conversa que teve com ele para convencê-lo de que ela era minha amiga, não uma entrante qualquer, o policial a teria queimado viva. Ela olhou assombrada para Duílio e ele confirmou palavra por palavra o que eu disse.

"Então foi esse menino? Meu Deus… Que tipo de infância essas duas coitadas dessas crianças vão ter, Stella e Duílio?"

"Uma do tipo permanente", disse o homenzarrão, sorrindo um sorriso estranhamente divertido e amargo a um só tempo.

Os dois policiais saíram do bar com um balde, deram água aos cavalos. Anderson jogou o resto da água na cara de seu cavalo e na do de Renan, retornou ao bar para devolver o balde. Sentaram-se numa mesa próxima a nossa. Renan lançava alguns olhares para nós; parecia estranhamente constrangido, como se quisesse ter sentado conosco, mas por algum motivo não ter podido. O motivo tinha a letra "A" como inicial, disso eu tinha certeza. Zé das Profundezas apareceu com duas garrafas de Coca-Cola e duas coxinhas para os meninos da Lei. Pensei em como é folclórico no sudeste brasileiro um policial entrar num bar e pedir coxinhas. Derivou até o apelido de "coxinhas" aos próprios agentes da Lei em alguns lugares de São Paulo, por exemplo.

"Zé, suspende aqueles pastéis e traz outros iguais?", Duílio parecia faminto e irritado pelos policiais terem sido servidos primeiro mesmo tendo chegado depois. Renan e Anderson relancearam os olhos para ele.

"Ô "sêo" Duílio, a muié tá ven'o", o homem se apressou em se desculpar.

Os policiais mal tinham acabado seu lanche quando um carro virou na esquina. Duílio prestou atenção ao carro. Renan e Anderson também. Era o mesmo carro com placa de Ribeirão Preto que passou por nós numa das ruas do centro. No carro estavam um motorista bem jovem e sua namorada ou pelo menos era o que ela parecia ser. Renan, calma e mineiramente palitando os dentes, meneou a cabeça para o novo parceiro de patrulhas. Anderson se levantou, montou no cavalo e foi de encontro ao carro, obstruindo a passagem deles, montado no animal enorme.

"Bom dia, amigos", ele disse educadamente, "onde é a entrega? Talvez eu possa guiar vocês até lá."

"Talvez você possa sair do caminho", disse o jovem motorista, rindo, "ou a única entrega vai ser a do seu corpo para uma funerária", e o motorista tirou uma automática da cintura. Antes que ele pudesse mirar, Anderson relhou a mão dele tão rápido que não houve olhos ali que pudessem acompanhar o movimento. O relho arrancou a pistola da mão do rapaz, trazendo-a de volta para Anderson que num segundo movimento enrolou o relho no pescoço dele, desmontou do cavalo e com rapidez fisicamente impossível enrolou o relho no eixo dianteiro do carro. Como ele fez isso é difícil saber, mas colocou o carro em movimento; o relho esticou como uma corda de viola, enforcando parcialmente o rapaz.

"Então? Que tal dar meia-volta e sair da cidade?"

"Vai tomar no seu cu, gambé!", o rapaz ainda tentou dizer, sufocado.

Anderson sacudiu a cabeça, ergueu os olhos para o céu e fez o carro acelerar. O relho se enrolou mais no eixo do carro e simplesmente decepou a cabeça do rapaz, que provavelmente caiu entre aos pedais, em meio aos gritos desesperados da namorada. Agradeci a Deus que Meire não conseguiu ver o que se passava da posição em que ocupava na mesa, embora ficasse alarmada pelos gritos espantosos da moça. Eu e Duílio vimos tudo. Ele, que deveria estar mais acostumado que eu, dividia comigo o mesmo nível de espanto. As pessoas que passavam esvaziaram a praça rapidamente, como se tivessem recebido treinamento especializado.

"A senhorita sabe dirigir?", inquiriu Anderson, dirigindo-se à sobrevivente.

"Não… Não…", ela não cabia em si de tanto horror.

"Pois eu acho bom a senhorita aprender e já. Troca de lugar com o desinfeliz desse defunto e vai, antes que eu perca a paciência, viu?"

Ela ainda fez menção de jogar o cadáver para fora do carro para se sentar, mas foi detida a meio caminho da ação pelo policial, "trouxe lixo, vai levar o lixo de volta. Mantenha a cidade limpa e a cidadania em dia", e ele sorriu para ela.

Eu nunca vi uma pessoa aprender a dirigir tão rápido, nem mesmo em cursos oferecidos por vigaristas. Se Anderson tivesse mandado, até CNH ela conseguiria ali mesmo sem sair da praça. O carro deu meia-volta na praça e desapareceu em direção aos limites da cidade em menos de cinco minutos. Anderson voltou à mesa e tinha Meire olhando fixamente para ele, tentando entender o que tinha acontecido. Duílio e eu trocamos olhares tão espantados quanto antes. Renan continuava palitando os dentes tão calmamente como antes.

"Vamos nessa?", sugeriu o policial mais velho.

"Tá na hora", respondeu Renan, levantando da mesa. Os dois montaram seus cavalos e se foram, depois que Renan se despediu de nós três e Anderson se despediu de Duílio, aparentemente sem pagar a conta. Podiam eles ter conta ali, podiam não. Não era eu que iria investigar.

Zé saiu do bar com o mesmo balde que tinha emprestado aos meninos para lavar a rua manchada de sangue da porta de seu bar. Ao retornar, parou na nossa mesa para avisar que não tinha pastéis. Duílio perguntou ao Zé quantas horas ele levava para dar falta de um item no próprio bar dele. Pediu coxinhas, só para descobrir que os policiais tinham comido as duas últimas. E fomos embora com a mesma fome com que tínhamos entrado, depois de testemunhar a mais que magnífica entrada de Anderson na Polícia Obscura.

Sol negro | Qualquer lugar longe daquele inferno

Rádio Universal: Polícia Obscura

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aí algumas linhas. Agora, sem essa de Viagra ou Tramadol ou coisas do gênero ou seu comentário vai para a lata do lixo.