quinta-feira, 14 de maio de 2009

O garoto com a pedra no sapato

Encontrei bilhete na porta de minha casa hoje de manhã. Andrés dizia na mensagem que ele e o pai tinham ido à Varginha buscar Aparecida e Adriano, que receberia alta do hospital hoje.

Estes dias, tenho me lembrado da Meire. Não a tenho encontrado mais no MSN. Não que isso me preocupe, mas tenho tido saudades das conversas com ela pelo messenger. Queria poder acompanhar a evolução dela com as práticas que sugeri, se é que ela ainda está se dedicando a isso. Talvez seja a correria da vida dela. Não é muita, mas ninguém põe conversas no MSN acima de suas próprias prioridades cotidianas. Seria tão bom poder encontrá-la em Taurinos. Mas é a vida dela e se ela tiver desistido, nada posso fazer a não ser me conformar.

Aparecida não teve palavras para me agradecer pela ajuda que dei aos homens da fazenda durante sua ausência. Sentia saudades das conversas com ela na cozinha enquanto eu a ajudava com os trabalhos de casa. Estava contente por vê-los de volta.

Em sua cama, Adriano estava muito melhor que o descrito por "sêo" Danilo ontem durante a reunião no Mithraeum. Era evidente que o velho sertanejo tinha exagerado o estado dele para impressionar mais a todos (especialmente o policial) em seu relato durante o encontro. Mas era verdade que a noite sob tortura da Polícia Obscura o tinha devastado física e emocionalmente. Eu disse a eles que o policial viria se desculpar com Adriano assim que a loja de ferragens fechasse esta noite. Adriano disse que achava que já era hora dele reconhecer que estava errado. Aparecida fechou a cara e disse que não queria estar presente, ou acabaria agredindo "o monstrinho minúsculo". Adriano riu, divertido. Considerando de quanta temperança e sentimento de conciliação ela geralmente dispunha, tive ali uma idéia do que foram para ela essas duas semanas cuidando do filho no hospital.

"Não sei, tenho medo de perder o controle e meter a mão na cara daquele menino", ela disse, agastada.

Andrés veio ter comigo no alpendre. Me disse que Renan aproveitou o horário de almoço para ir até a casa da Dica. Que ele levou consigo uma garrafa, do mesmo tipo que ele tinha jogado na cara do Célio. Ao chegar à sala, onde o menino estava, deu a ele a garrafa, sentou-se não muito longe dele, fechou os olhos com uma careta e esperou. Célio colocou a garrafa no chão. Renan levantou-se imediatamente, foi até ele, pegou a garrafa do chão, colocou-a novamente nas mãos do Célio, sentou-se e esperou. Repetiu o processo até que o Célio dissesse que ele o perdoava e pedisse que ele fosse em paz. Vi que era uma maneira muito peculiar de se desculpar, correndo o risco de terminar ele mesmo no hospital. Houvesse uma sombra de rancor no agredido, o policial teria perdido alguns de seus dentes.

"Renan é uma figura, isso eu posso dizer com certeza", riu Andrés.

"Você está vigiando o menino?"

"Claro, preciso ver se ele está obedecendo as resoluções a reunião do Conselho de ontem. E ele está. A senhora viu tudo certinho ontem antes da reunião começar. Viu que ele ia usar essa tática de ser um carneirinho manso para mostrar o Anderson como desobediente aos olhos do Conselho por não se juntar à Polícia Obscura. Ele virou o jogo, quando Anderson achou que as punições só iriam para o Renan. Ele tem dez anos, mas é inteligente pra raio. A gente não pode subestimar o carinha."

"Ele deve vir aqui hoje à noite."

"Sim, ele deve vir ver o Adriano, dar uma contemplada no estrago que fez no meu irmão. E se quer saber, pode Adriano cuspir na cara dele que ele não vai se revoltar; vai pedir desculpas novamente e novamente até que ele seja perdoado."

"Você acha que ele está fazendo isso sinceramente? Ou tudo é somente parte da estratégia dele?"

"Renan não é um cara fingido. Tem milhões de defeitos, é estourado pra raio, mas fingido ele não é. O que ele faz é porque ele sente. Eu acho que ele entendeu e aceitou a explicação do Anderson de verdade. Viu que ele estava errado em levar isso assim a ferro e fogo. Eu acreditei no Anderson também. Nunca achei que ele tivesse criado esse apelido para zoar com o Renan. Mas Anderson já sentiu que o cerco está se fechando em volta dele. Ao sentir isso ontem, Renan decidiu se submeter. Ele viu que o Conselho ia condenar as atitudes dele e que se rebelando ele só iria causar mais sofrimento para ele mesmo. Foi inteligente, reconhecendo que estava errado, mas nem por isso deixou de ser sincero. Mesmo Renan consegue se olhar de fora de vez em quando. Anderson não; ele só faz acrescentar mais sofrimento a ele mesmo se escondendo do dever. Está sendo humilhado por ele mesmo ao se recusar a entrar na Polícia. A comunidade sabe disso e não demora muito vai começar a pressionar até que ele não aguente mais. Aí, ele vai comer na mão do Renan direitinho, como um cachorrinho que não tem mais para onde ir."

"Meu Deus, que situação…", eu abanei a cabeça.

"É, ninguém disse a ele que ia ser fácil. Renan está sofrendo também, D. Stella; não pense que tudo é cantar vitória. Ser recusado não faz parte dos gostos pessoais dele. Anderson é o melhor amigo dele; dá pra imaginar como dói no carinha por dentro que Anderson tenha fugido da função que ele deveria estar cumprindo junto com ele."

Ele olhou para os lados, como se quisesse compartilhar algo que os outros não pudessem ouvir.

"Naquela noite no descampado, e a senhora deve ter sentido isso também, ele estava calmo, como se quisesse entender o que nós fazíamos ali olhando o céu. Ele teve inveja de nós porque nós podíamos sentar no campo à note e olhar as estrelas enquanto ele tinha de estar caçando aquelas coisas e invasores nos limites da cidade. Não era só a energia do medo que ele queria. Ele queria se alimentar da energia da nossa amizade, curtindo o céu juntos, ele queria estar conosco sentado ali."

"Por que então não apareceu com o seu aspecto normal? Eu adoraria que ele tivesse vindo e sentado conosco!"

"Porque mais que da nossa amizade, naquele momento ele precisava do nosso medo. Por isso ele ficou tanto tempo ali atrás de nós. Porque a gente não se atrevia a olhar, e não podia saber o que ele estava fazendo por esse mesmo motivo, o que só aumentava o nosso pânico. A incerteza é a mãe do medo. E o pai do medo é o escuro. Por isso avançava com o cavalo tão lentamente. Cada passo que o cavalo dava aumentava ainda mais o nosso terror. Embora no aspecto normal ele não goste de ser temido (fica puto de raiva com isso), naquele aspecto precisava disso para completar o que ainda faltava de energia. Agora, ele é O Monstro. E a energia que as pessoas lhe deram não vai mais se dissipar. Ele está pronto para iniciar o Anderson, quando a hora chegar. O poder vai ficar com os dois e nunca mais vão precisar se alimentar disso, porque isso já vai estar dentro deles para sempre. A única peça que falta para completar tudo o que ele precisa é o Anderson. A senhora pode imaginar o quanto a recusa dele está atrapalhando a função e os planos do Renan. Os dois estão desesperados, cada um pelo seu motivo. Mas que no final de contas é o mesmo motivo."

Como eles costumavam fazer, assobiei, de pura admiração ao ouvir tudo isso, embora fosse algo que já imaginasse, juntando os pedaços de tudo o que tenho ouvido sobre o tema.

Noite e dia | O dia do perdão

Rádio Universal: Polícia Obscura

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