domingo, 12 de abril de 2009

Planária

Hoje foi um dos raros dias em que vi Renan a manhã inteira. Anderson resolveu não aparecer. Guilherme fazia suas coisas, de lá para cá o dia inteiro e todos na fazenda pareciam estar ocupados. Todos, menos Renan e eu. Notei que ele não parecia ter nada mais para fazer a não ser sentar no sol como sempre. Hoje, ele se sentou próximo à uma árvore e se deixou ficar ali por muito tempo. Debaixo da árvore, mas fora da sombra. O culto solar sempre presente nas mínimas atitudes do dia-a-dia. "Por Mitra!", diria descabeladamente o prefeito desta esquisita cidade de Taurinos.

Penso em "sêo" Danilo e que faz tempo não lhe dedico uma visita. Saudade dos dedos de prosa ao cair da tarde, o cheiro delicioso do café recém-passado, o pão de queijo… Começo eu mesma a ser dominada pela minha própria nostalgia.

"A senhora viu a lagarta?", perguntou Renan, meio divertido, meio raivoso. Você já viu alguém meio divertido, meio raivoso? Se viu, viu algo bem parecido com o Renan ao me fazer essa pergunta.

Disse a ele que não vi lagarta alguma. Ele pareceu frustrado pelo fato de eu não ter visto a tal lagarta. Agora eu penso que ontem veio também Andrés com uma conversa de "como está a senhora no dia de hoje", ou qualquer absurdo como esse. Mas entendi que ele estava divertido pelo fato de ter visto a lagarta e raivoso pelo fato de eu não a ter visto.

"Estava aqui agorinha", e Renan enfatizou o "agorinha", enquanto olhava para todos os lados numa vã tentativa de localizar a tal lagarta, "juro pela minha mãe mortinha."

Bom, nada de lagartas. Renan me olhava de vez em quando, em silêncio embaraçado. Talvez ele visse a lagarta e eu não. Talvez ela tivesse simplesmente entrado numa toca ou coisa parecida.

"A lagarta me disse mesmo que a senhora não ia ver", ele suspirou, resignado.

"Tá vendo? Eu sabia que havia uma explicação lógica para isso tudo."

Que absurdo eu dizendo essas coisas. Renan aproveitou o momento e sorriu para mim com milhares de dentinhos minúsculos. Foi então que eu percebi que era um sonho. Levantei, fui à minha cama e de lá não saí até acordar de fato e de direito. Daí, o pestinha mesmo em pessoa foi me acordar.

"Como está a senhora no dia de hoje?", me disse o pestinha.

Cheguei à conclusão de que [isto de "Como está a senhora no dia de hoje?"] era um conluio entre ele e Andrés para me encher o saco durante as tenras horas da manhã.

Os sonhos outra vez. Me deixando outra vez em situações confusas e estranhas. Um certo senso de estranhosidade. De espantosidade em geral. E eu me lembro de que tenho de conversar com Renan e Anderson sobre as sessões de sonhos.

"A senhora acha que isso funciona mesmo? Não vejo em que isso ajuda a gente."

Se ao menos eu pudesse ter certeza de alguma coisa nesta cidade de Taurinos… Isso ajudaria e muito. Não que eu queira ter todas as respostas, mas isso renova a confiança e ajuda a levantar a moral de quem pensa que você tem todas as respostas e para isso depende de você. O problema em si é que a realidade aqui é tão volátil. Tudo se transforma de uma maneira alucinada, impedindo qualquer análise lógica. Estranho como por vezes me sinto tão à vontade nesse mundo estranho a ponto de esquecer de mim mesma. Quando na verdade em minha vida vivi uma realidade comum e corrente, dessas de acordar cedo, trabalhar o dia inteiro e à noite voltar para minha família e jantar, assistir uma TV normal e ir dormir para mais um dia de trabalho? Acho que nunca fui talhada para essa realidade comum e corrente de qualquer modo.

"D. Stella", o menino me puxou pela manga, coisa que sempre detestei nos meninos daqui, "eu estou falan'o com a senhora."

"Acho que ajuda sim", eu respondi maquinalmente, pela mera obrigação de responder, perdida como estava em meus pensamentos alucinantes.

"D. Stella, o que é uma planária?", Renan perguntou, mudando bruscamente de assunto.

Expliquei o que era uma planária e ele ficou furioso. Fiquei confusa, pensando o que na explicação poderia tê-lo deixado furioso. Só quando Anderson pôs os pés na fazenda eu consegui ligeiramente entender o porquê e no final das contas tive de apartar uma briga dos dois. O que eu entendi foi que Anderson comparou o pênis dele a uma planária. Provavelmente, Renan só hoje se lembrou de me perguntar. Talvez apenas para não ser injusto. Achei bonitinho da parte dele.

Na casa de "sêo" Danilo no cair da tarde. Ele sorriu, um pouco cansado do dia, mas com a habitual camaradagem. E com o habitual café e o clima tranqüilo de seu sítio pequeno e bonito.

"Pois eu pensei que não vinha mais. Mas hoje mesmo, engraçado, não esquentei café. Resolvi fazer novo. Como se tivesse um palpite de que a senhora viria."

Contei a ele sobre as sessões de sonhos e tudo o que vinha ocorrendo com Renan. Ele deu um sorriso de quem sabia das coisas.

"Os sonhos que se tem aqui são diferente de tudo o que se sonha em outras cidades de Minas e em outros lugares onde os sonhos já são esquisitos. Na maioria das vezes os sonhos que se tem aqui são tranqüilos, mas têm tantos detalhes que se tornam muito sem pé nem cabeça."

Eu disse a ele que entendia. Que o que ele dizia tinha muito a ver com os sonhos dos últimos dias. Aquela profusão de detalhes, os eventos desconexos, tudo aquilo. Aquela questão da sombra de Renan aparecendo nos sonhos que eu nunca consegui explicar. Talvez não fosse nada, talvez fizesse um mundo de diferença.

Nostalgia | Algo estranho

Rádio Universal: Teatro De Sombras

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