terça-feira, 4 de agosto de 2009

Perséfone

Donana apareceu em seu carro hoje de manhã. Encontrou café pronto, tudo na mesa mas recusou polidamente a refeição, dizendo já ter tomado seu desjejum. Fiquei tomando o café e detestando tomar café com alguém que não queria tomar café comigo. Imaginei que ela não tinha vindo exatamente para se sentar e recusar meu café da manhã. Ela não demorou muito para tomar a iniciativa.

"Renan está lá em casa, tem estado tão triste esses dias."

"Por que?", eu estava sendo bem joão-sem-braço, me fazendo de desentendida.

"Ele veio aqui ontem, não foi? E vocês conversaram a respeito dele."

"Donana, não é segredo nenhum na cidade que eu me apeguei muito ao menino nesse mês e tanto que ele ficou em minha casa. Acho que foi comentado até na minha festa de aniversário de corpo ausente, não?"

Ela ficou em silêncio. Disse que desde que o menino voltou para casa, vinha se sentindo triste por ele e por tudo. Eu deixei fluir meu lado psicóloga e tentei motivar a pobre mulher. Mas não deixei de falar nas reflexões que eu tive no dia anterior.

"Para com isso, você tem um marido que cuida de vocês todos, tem dois filhos lindos, saudáveis; conte suas bençãos, não seus problemas. Dê força aos problemas e eles terão força. Você tem tudo nas mãos, mulher. Não desperdice isso, não deixe que isso escape de você!"

"Eu estou triste por isso ter acontecido. Meu marido agiu numa hora de raiva e expulsou o menino, eu também estava chocada pelo que aconteceu, aquela gritaria dele no meio da rua com o Anderson. Ele só encontrou abrigo na sua casa. A senhora cuidou dele como eu faria, natural que desenvolvesse os mesmos sentimentos. Eu estou triste, muito triste mesmo por isso ter acontecido. Eu sinto muito, D. Stella."

"Donana, mesmo numa cidade como Taurinos, você sabe o que é fazer um menino de dez anos errar por uma cidade em busca de abrigo? Vocês iam mesmo deixar o Renan sem um teto sabendo que, errado o quanto ele possa ter sido, ele ainda assim é um dos dois filhos de vocês?"

Ela estava chorando; não havia som, só lágrimas. Eu tinha pena de Donana. Dela, do menino e de mim mesma, sem essa de autocomiseração, mas me escalavrei bastante nessa história. O processo deixou marcas fundas nela também, eu via agora. Também mais uma vítima da sociedade machista predominante em Taurinos, sem opor ou se impor de maneira que pudesse ter evitado toda essa situação. O menino terminou dividido entre duas figuras maternas, o que foi mais uma das sequelas do malfadado episódio. Eu despertei a mãe que havia em mim para depois atirar nela à queima-roupa no dia da despedida. Eu já me via na iminência de passar a eternidade ressuscitando essa mãe para logo depois poder atirar nela à queima-roupa outra vez.

Guilherme apareceu à tarde. Quando eu esperava que ele começasse um sermão sobre os presentes de aniversário que não abri, ele se sentou no alpendre comigo e ficou um tempo em silêncio. Depois olhou fixo para mim e perguntou a única coisa que conseguiu perguntar.

"Por que?"

"Do que é que você está falando, Guilherme?"

"Por que todo esse negócio da minha família e da senhora com o Renan? Por que todo mundo só cuida do Renan? E eu? Não conto?"

"É lógico que conta. E muito. Mas o seu irmão passou por situações bem difíceis, Guilherme. A atitude dos teus pais de mandar seu irmão embora de casa fez com que ele caísse aqui. Eu não iria deixar seu irmão na rua. Me apeguei a ele e isso acabou dando problema, como tudo mais em Taurinos."

"A senhora com certeza acha correto o que ele fez naquele dia", o irmão mais velho me olhava com olhos fundos de censura.

"Eu não ia ser a juíza de seu irmão. Só vi ali alguém que precisava de um teto. Ele estava desesperado naqueles dias; tudo o que ele tinha planejado foi por água abaixo quando Anderson se recusou a continuar como amigo dele. Na época não sabíamos que o Anderson não estava no normal dele desde o dia do ritual da Polícia Obscura. Seu irmão não tinha como entender o porque da reação do Anderson e se desesperou. Não acho certo o que ele fez, mas acho que foi algo que ele sentiu no momento e que não deixou Renan pensar claramente numa solução melhor. Se me perguntar, é isso o que eu acho."

E, depois de uma pausa, eu disse a ele, "não acredito que você esteja com ciúme de seu irmão mais novo, Guilherme."

Ele ficou emburrado depois me olhou desafiador como um galinho garnisé, "e se estiver? Qual o problema? Nem o meu presente a senhora quis!"

"Guilherme, tanto a caixa do seu presente quanto a do Bruno estavam vazias."

"Estavam vazias porque a senhora recusou o jardim! Recusou tudo! Se o Renan tivesse dado o presente ia ser a maior felicidade, né??? Vê o presente que ele te deu, muito pior que uma caixa vazia!", ele gritou, no auge da excitação nervosa, socando o braço da cadeira, enfurecido.

"O que tinha então dentro da caixa?"

"Agora não interessa mais!", ele me fitou furioso e começou a chorar, "fiquei horas e horas em Varginha escolhendo a merda do presente, pra que, porra?".

Um Guilherme ciumento, que amorzinho. Mas eu estava triste por ele e por tudo o que aconteceu. Ele tinha razão. Que diferença isso faria agora? De qualquer modo, as circunstâncias em torno dos eventos nesses vinte dias acabaram falando mais alto. Tentei tocar o ombro dele e ele o retirou num puxão raivoso.

"Não encosta. Nem chega perto."

"Eu não estava em mim. Estava furiosa, Guilherme. Quando Arthur me disse que as sementes…"

"As sementes que os passarinhos puseram em volta da sua casa eram as sementes daquele jardim que a senhora viu e que eu nem cheguei a ver! A gente nunca que ia derrubar a sua casa! Não é que a gente não pudesse, mas a gente nunca que ia fazer isso com a senhora! A senhora acha que a gente ia derrubar a minha casa porque o meu irmão levou a senhora no Santuário!? A casa do Adriano, que estava apoiando a gente???", e ele enterrou a cabeça entre os braços cruzados exatamente como Arthur tinha ficado no dia em que recusei o jardim.

"Mas eu apoiei vocês. Apoiei o Jardineiro Celeste. Se eu soubesse para onde estava indo e o que aquilo significa para a cidade jamais teria entrado. Fui a primeira a cobrar de Andrés e do teu irmão essa palhaçada. Se não acredita em mim, pergunte a eles. Só fui entender que eu tinha entrado em uma reserva biológica quando conversei com Anderson e "sêo" Danilo no churrasco lá nos Conselheiros já tem quase um mês. Foi então que eu conversei com os dois aqui em casa. Você acha que eu iria saber se o que vocês estavam dizendo era verdade ou não?"

Demorou, mas eu o ergui da cadeira e o levei para dentro. Ofereci café. Ele aceitou e nos sentamos na mesa. Mudei ligeiramente de assunto e perguntei o que significava Arthur aparecer aqui com um lenço branco nas mãos. Só para ter uma segunda versão da tradição já que já tinha conversado sobre isso com "sêo" Danilo. Guilherme olhou para mim e foi essa a única vez que a curiosidade dentro dele falou mais alto que a raiva que ele sentia.

"Ele estava avisando que não vinha brigar. Ele veio, é?"

"Sim."

"Eh, Arthur…", e ele sorriu um sorrisinho minúsculo.

Ele descontraiu um pouco, notei. Mas isso não solucionava problemas, apenas os afastava momentaneamente. Era claro que nunca iria apagar a desfeita que fiz ao recusar aquilo tudo. Não adiantaria muito perguntar a eles se ter o jardim em minha casa os faria feliz. Provavelmente colocar o jardim aqui era importante naquele momento, mas agora não fazia mais qualquer diferença. Juntando com a história toda de Renan, fácil entender que ele se julgasse preterido.

"O que o Arthur disse é que eu crio essas situações, como essa briga eterna do Jardineiro Celeste com o Andrés…"

"E se não é a senhora, quem mais?", Guilherme me colocava contra a parede.

"Eu disse a eles que talvez eu tivesse "apenas" posto a roda para girar, foi exatamente o que eu disse, com essas palavras."

Houve uma pausa enorme. O que ele poderia me dizer? O que qualquer um poderia aventar a não ser crenças? "Eu acredito que seja a senhora.", "Eu acredito que não seja eu." Muito embora "sêo" Danilo me dissesse e reiterasse que não há crenças em Taurinos, essas eram algumas delas. A crença de que sabíamos o que vinha provocando todos os eventos desde o início. A crença de que era isso ou aquilo.

"Mesmo que seja eu quem esteja criando isso, não estou criando necessariamente para o meu prazer, tenho que dizer, Guilherme. Tem meses desde que cheguei aqui que não paro, é um incêndio atrás do outro e eu correndo de lá pra cá para apagar."

"Não teve nenhum incêndio aqui desde que a senhora chegou", ele rebateu ingenuamente.

"É um modo de falar, não? Parece que esta cidade está todo dia sempre a um segundo de se destruir."

"A senhora criou o Jardineiro Celeste pra proteger a natureza de Taurinos contra a senhora mesma e as pessoas de fora. Como criou a Polícia Obscura pra proteger Taurinos dos forasteiros. Isso é o que eu sei. Mais que isso, não sei."

Tentei saber mais detalhes sobre o Jardineiro Celeste daquela fonte confiável, mas a fonte confiável estava meio emburrada e não disse mais nada até ir embora.

À noite, o clã Teixeira inteiro apareceu. Vinham conversar comigo sobre Renan. Sem maiores detalhes, porque já não aguento mais escrever sobre isso, mas até o patriarca do clã Teixeira chorou e houve um mea culpa coletivo, desses que não resolvem mas também não enganam.

Um dos problemas era que Renan tinha tido duas mães e gostado da experiência. O outro problema é que Guilherme estava com ciúmes do irmão e iria aonde ele fosse. Se Renan queria ter duas mães, ele queria também. "Sêo" Octávio e Donana não conseguiam acreditar no que estava acontecendo. Para sossegar a dupla, tivemos que combinar que os dois viriam para cá em 1º de janeiro e iriam para lá em 1º de julho, como se fossem Perséfone, passando seis meses no Olimpo e seis no inferno. Mas onde é o Olimpo e onde é o inferno?

Não deviam ser ainda nove horas da noite quando "sêo" Danilo apareceu. Faziam quinze minutos que o clã dos Teixeira tinha deixado minha casa. Contei a ele sobre o dia e ele se admirou do que aconteceu, embora não se espantasse muito com a solução a que chegamos.

"É, o músico e o policial, já leva tudo num pacote só, "sá" Stella", depois ele pareceu arrependido de ter dito isso, embora eu não tivesse me importado e até achado graça no atual estado das coisas.

Nós encerrávamos ali o assunto com o Jardineiro Celeste, pelo menos este assunto. Não saiu a contento para nenhum dos lados, mas o que não tem remédio, remediado está. Agora, a certeza dos pequenos guardiães da natureza local e suas investidas agressivas contra aqueles que representam ameaça aos recursos naturais locais. Um conflito fantástico entre a natureza e o progresso que posso ter criado eu mesma não faz vinte dias. Como o tempo me leva aqui é que eu não sei. Talvez seja, como disse "sêo" Danilo uma vez, que eu dou demasiado valor ao tempo.

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