segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Ano zero

Sentada no alpendre de tarde. Numa cadeira de balanço e com o laptop ao lado, olhando o saibro em volta de casa. Pensando novamente em Renan. Pensava que aos poucos me acostumaria à solidão. Pensava que já tinha me acostumado a ela. Mas a solidão é companheira teimosa, insiste em ficar do lado por vezes mesmo quando no meio de uma festa, de uma celebração.

Quantas vezes em meio a uma roda de amigos eu me sentia presa da mesma solidão que sinto hoje. Ficava pensando comigo se os meus amigos se sentiam ou se já tinham se sentido assim alguma vez na vida. Não a solidão da falta de companhia, mas a da falta de identidade com aqueles mesmos amigos, pelo menos naquele momento. Ou quando estava com minhas amigas que tinham filhos e quando elas conversavam sobre as peraltices ou as coisas engraçadas que eles faziam, quando contavam vantagem sobre a inteligência, esperteza dos filhos, tudo aquilo. Não importava o quanto de trabalho eles dessem, havia sempre nelas e em suas narrações o prazer de serem mães, mesmo que apenas levemente perceptível.

Enquanto eu achava essas coisas maravilhosas e me sentia feliz por elas, eu não conseguia ao mesmo tempo deixar de nutrir um sentimento reverso. Que não era a inveja, embora não fosse de estranhar se ela ocorresse também. Era a solidão, de me ver só numa situação em que meu trabalho e minhas condições físicas jamais me permitiriam filhos, naturais ou adotivos. Eu jamais exporia meus filhos a coisas como as que passei em Santos e São Vicente e ainda passo em Taurinos. Abri o Winamp em meu laptop e deixei tocar aleatoriamente.

"A solidão é fera, a solidão devora. É amiga das horas, prima-irmã do tempo, E faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração. A solidão dos astros… A solidão da lua… A solidão da noite… A solidão da rua…"

Solidão, escrita por Alceu Valença em Mágico, 1984, Barclay/Polygram.

Nem um pouco aleatório pela situação em que me encontro. Passei a música para a frente, como Renan um dia me pediu para tirar uma música de Macy Gray e como minha mãe um dia me pediu para tirar uma música de Baden-Powell.

"Não consigo aguentar mais uma noite solitária assim. Não aguento."

Noite Solitária, gravada por Hopeton Lindo em The Word, 1991, Greensleeves.

A seleção continuou não muito aleatória. Tem dias que nem a música nos traz conforto nesse inferno. Fechei o Winamp e sosseguei. Olhando tudo. Me lembrando da insanidade dos últimos dias. E de como Renan me fazia falta. Quando eu pensava que já tinha me acostumado à solidão, eis que Renan apareceu para me provar que eu poderia viver de outro modo, não mais sozinha como antes. Como o filho que nunca tive, ele me mostrou isso claramente. E se foi, quando eu achava que eu tinha encontrado o caminho.

Um som de cavalo ao longe. Quando cavalos passam ao longe e seu som se faz ouvir nitidamente aqui, quer dizer que vão passar pela frente da minha casa e da porteira da fazenda Taurinos. A fazenda Taurinos e minha casa ficam num desvio para dentro do campo. Esse desvio é bifurcação que vai sair na estrada principal que é a saída e entrada da cidade. Se alguém toma pelo desvio, ou quer parar na fazenda Taurinos ou na minha casa, porque elas são as únicas duas coisas nesse desvio do caminho. Minha casa tem bastante recuo no terreno, mas isso não é problema para qualquer entidade que apareça por aqui. Se o som passa da fazenda Taurinos, fatalmente virá parar aqui, gente ou assombração.

E veio parar aqui, gente ou assombração. O cavaleiro era Arthur e graças a Mitra não vinha de jardineira azul-celeste. O Sol já ia baixo. Ele parou em frente a casa e me mostrou um lenço branco. Sabia-se lá o que ele queria dizer me mostrando um lenço branco. Despedida? Paz? Fiquei imaginando o que poderia ser dentro da simbologia dos meninos daqui.

"Chega pra dentro!", eu gritei do alpendre.

Descobri que o lenço era o bom e velho símbolo de paz entre eles. Ele amarrou o cavalo no portão. Veio descendo o terreno em direção de minha casa, sem evitar de olhar o saibro em torno. Ele subiu ao alpendre, meio sem-graça, pedindo licença e entramos. Arthur sentou de costas para a janela da cozinha e eu fiquei petrificada ao olhar para ele. A contraluz da janela mostrava nítidas feições de um espantalho horroroso no menino, sorrindo um ainda mais horroroso sorriso fluorescente para mim. Sugeri imediatamente que trocássemos de lugar. Ele pareceu entender o que aconteceu e ficou admirado (e um tanto embaraçado) de descobrir que eu podia ver esse lado dele na contraluz.

Ofereci café. Ele recusou polidamente. Eu disse que a demanda tinha chegado ao fim e com ela a interdição em minha casa. Ele recusou mesmo assim. Perguntei se ele tinha vindo simplesmente para me aparecer como o Pavoroso Espantalho da Morte e do Horror. Ele riu, novamente embaraçado, e fez uma pausa. Eu não sabia o que esperar. Ele não sabia o que dizer.

"Eu vim me desculpar pela confusão de ontem no bar do Zé, D. Stella. Não fui nem um pouco simpático. Mas eu também não vou mentir e dizer que estou contente com a senhora. Mas tanto do seu lado quanto do meu, o que está feito, está feito."

"Tudo bem, está desculpado, eu já estou mesmo acostumada a passar esses carões no bar do Zé. Da outra vez foi a Polícia Obscura", eu sabia que isso era o mais aproximado de um pedido de desculpas que ele poderia vir a me fazer pelo acontecido.

Arthur ficou um tempo em silêncio. Perguntou se eu sabia o que estava acontecendo. Respondi que "sêo" Danilo e Andrés tinham me contado a respeito.

"E o Andrés contou a velha história", Arthur sorriu.

Contei a ele o que eu tinha sabido por Andrés e perguntei a ele se era aquela a velha história.

"Sim. Essa mesma. E é verdade, D. Stella. Isso aconteceu há quinze, dezesseis mil anos atrás e no entanto foi criado pela senhora não tem vinte dias."

"E o Livro das Origens era aquela confusão porque…"

"Porque o Livro das Origens é a senhora", ele ergueu as sobrancelhas.

"Bom, só podia ser, uma bagunça daquelas, tudo distorcido, nada batendo com nada… Deixa eu adivinhar, vai. Você morre a cada cinquenta e dois anos prensado por um touro num curral da sua fazenda enquanto a Sociedade Antiga dos Taurinos planeja a cerimônia que vai expulsar o Grande Um da cidade. Há quinze, dezesseis mil anos."

O menino tinha a expressão séria. Pediu que eu não o olhasse fixamente. Disse que eu poderia até estar levando na brincadeira, mas que o que eu dizia era verdade. Respondi que não estava levando nada na brincadeira. Mas que já não sabia se estava anestesiada de tanta descoberta. Ele rebateu que isso não era uma descoberta.

"Não existe nada da maioria das tradições de 16 mil anos da cidade que a senhora não tenha criado de fevereiro pra cá. Não existe tempo em Taurinos, pelo menos não como a senhora conhecia. Não pare os olhos em cima de mim; procure descansar a vista", e ele prosseguiu, "isso não acontece mais porque a senhora decidiu morrer naquele dia. Ali terminou o Grande Um, a Lei dos Touros a cada cinquenta e dois anos. A vida aqui se divide em dois períodos: antes e depois da senhora. O que a senhora conhece como 2009, nós taurinenses chamamos de ano zero."

Renan apareceu no final da tarde em seu palomino. Disse que estava com saudades daqui. Eu contei a ele sobre minhas reflexões antes que Arthur chegasse. Ele ficou me ouvindo sério. Vi uma lágrima rolando e sequei a carinha dele com meu polegar. Depois de me ouvir, Renan não sabia o que dizer, senão que estava com saudades dos dias passados aqui. Ele me abraçou. Ficamos um momento assim e depois ele se sentou no sofá e ficou olhando para as própras botas.

"Eu me lembro da senhora chorando quando meus pais me levaram de volta. Pensei que a senhora estava chorando porque a senhora estava feliz que eu estava voltando pra minha casa de verdade. Depois a senhora não foi na sua festa e o Arthur disse…"

"O "sêo" Danilo me contou, ele disse que você chorou muito durante a festa toda."

"É porque eu vi que a senhora não estava contente de eu ir embora. Eu sou novinho, mas eu entendi logo que a senhora se acostumou comigo como se fosse minha mãe. E é porque eu me acostumei com a senhora como se fosse seu filho também. A minha mãe e o meu pai tem medo de mim. Mas eu sei que no fundo eles gostam de mim."

"É claro que eles te amam, Renan. Que ideia!"

"Mas eles tem muito medo de mim", ele parecia desanimado, "a senhora não."

"Quem disse que não?"

Ele me olhou surpreso. Via-se que não esperava por aquilo. Mas eu achava que ele deveria esperar. Fiquei surpresa ao vê-lo surpreso assim.

"Nó, mas até a senhora…"

"Eu não tenho medo só de você, Renan. Tenho medo de você, do Andrés, do Arthur, do Adriano, do Anderson, do Bruno e do teu irmão."

Ele ficou pensativo. Depois, perguntou do que eu tinha medo em todos eles. Eu disse que não sabia o que esperar deles em momento nenhum. Ele então perguntou se eu sabia que eu criava a maioria desses comportamentos sem controle nenhum neles. Eu disse que vinha recolhendo várias opiniões que me diziam que isso era verdade. Que Arthur tinha acabado de me dizer o mesmo com outras palavras. Eu disse que isso abria ainda mais perguntas do que respostas.

"Se é assim, quanto de liberdade vocês têm de vocês mesmos, de livre arbítrio?"

"O que é um livre arbítrio?", ele franziu a testa.

"Não existe "um" livre arbítrio. Existe livre arbítrio. Quer dizer fazer uma coisa porque você teve vontade você mesmo e não porque alguém ou alguma coisa te fez fazer."

Frequentemente o domínio que as crianças tinham dos elementos ou forças me fazia esquecer que, no caso de Renan, eu ainda assim estava falando com um menininho de dez anos de idade. No mesmo caso, imbuído de um aspecto ou lado ou como quer que chamem isso, qualquer um deles poderia dar um ar solene a uma reunião do Mithraeum, por exemplo.

"Como a gente sabe se é esse tal de livre arbítrio e não outra coisa que fez a gente fazer aquilo?"

Quem resiste à lógica das crianças? Ou à ilógica das crianças? Achei que não tinha como responder a ele, mas respondi.

"Como a gente sabe se é outra coisa que fez vocês fazerem aquilo e não esse tal de livre arbítrio?"

Renan ficou novamente pensativo. Depois, olhou em torno, esticou o pescoço como fazia quando zangado ou alarmado.

"Acho que chegou gente. Preciso ir embora, D. Stella."

Ele pediu que eu fechasse os olhos e não abrisse a porta por algum tempo mais assim que ele fosse embora. Eu imaginava o que era. Renan era um pesadelo. Era o meu pesadelo favorito, mas um pesadelo.

Uma hora depois, apareceu "sêo" Danilo a cavalo. As maripôsas e outras criaturinhas noturnas já tinham começado a encostar na parede do alpendre atraídas pela luz, lançando sombras esquisitas e tortuosas por cima dela.

Hoje olhando para "sêo" Danilo, eu o vejo um pouco como o Dr. Romeu, terapeuta que me iniciou no paranormal para o melhor e para pior. Acho que este homem tem muito a ver com aquele. Como se "sêo" Danilo fosse feito de minha recordação do Dr. Romeu. Sábio, vivido, pessoa com quem sempre me aconselhei.

"Nossa, a Polícia me passou mais além no caminho, foi aquele Deus nos acuda de sempre."

"É, ele saiu daqui já faz uma hora."

"Creio em Deus padre. Estou vendo tudo girando ainda. Parece aquele defeito de televisão de quando proseia mas num mostra as feição."

Eu tive que rir. Ele carregou no regionalismo da Mantiqueira justamente com essa intenção, me fazer rir. Contei a ele sobre a passagem de Arthur e Renan por aqui hoje e o que conversamos.

"Ah, que bom que o menino botou um pouco de juízo naquela cabecinha e veio se desculpar, "sá" Stella. Já estava mesmo na hora."

"Sim, e ele veio e me mostrou um lenço branco e tudo, propondo paz…"

Ele estranhou aquilo. Franziu a testa olhando fixo para mim. Disse que Arthur mostrando um lenço branco para mim nada tinha a ver com uma proposta de paz.

"Não, "sá" Stella, ele na verdade queria dizer que não veio para lhe agredir fisica ou verbalmente, embora isso fosse o que a senhora merecia."

"Que simpático da parte dele."

Ele se assombrou com a visão que eu tive de Arthur na contraluz. Disse que nunca viu aquele lado dele e que ele não devia parecer assim se veio me pedir desculpas. Eu contei a ele de como ele pediu que eu não fixasse nele o olhar. Ele disse que o menino ainda devia estar furioso comigo mas que admitiu que não tinha o direito de me tratar como me tratou no bar do Zé.

"Aí então a senhora viu esse lado agressivo no Arthur quando a sombra formou no rosto dele, que era justamente essa figura de espantalho que eu já tinha lhe falado. Se a gente consegue enxergar na sombra, enxerga o que está oculto ali. O que as pessoas não querem deixar transparecer. Arthur mais provável pediu que a senhora não fixasse o olhar nele porque não queria que ficasse notando que ele ainda estava bem zangado com a senhora. Ou porque não queria assustar, porque acaba dando tudo no mesmo."

"E o senhor diz que nunca viu esse lado agressivo no Arthur."

"Não, graças ao Astro Rei. Porque ver é sinal claro de que as coisas estão malditas em sua casa, pelo menos naquele momento, o que já é ruim o suficiente."

"O senhor acha então que a minha casa estava maldita naquele momento?"

"Estava, se a senhora viu o espantalho no Arthur… Como estava no dia em que o Renan amarrou o cavalo preto dele na coluna do seu alpendre."

"Se o senhor nunca viu o negócio do espantalho, como pode me descrever? Arthur disse ao senhor como é?"

"Não. Arthur, Bruno ou Guilherme não precisam me dizer nada. Eu sei como o Jardineiro Celeste opera. Sou como a senhora às vezes diz, guardião das tradições do mitraísmo local."

E ele foi em frente, me descrevendo mais ou menos o que os dois que o antecederam já tinham me dito. Eu o questionei como questionei a Renan.

"Destino é fazer as coisas mais loucas e aleatórias porque eu quis assim sem poder controlar? Porque eu quis sem querer? Não há uma vontade própria em ninguém, todos fazem as coisas que fazem porque eu quero assim?"

Ele ficou pensativo. Achou que as coisas se precipitavam de uma maneira caótica e nesse pensamento ele tinha a ver comigo. Tudo era além da compreensão, todos compareciam com saídas que não eram saídas para lugar nenhum. Mas o fato de que fosse caótico não provava que eu o manipulava mesmo sem saber. Talvez eu tivesse "apenas" posto a roda para girar (o que já não era pouco).

"Eu lhe disse, a senhora poderia ter evitado tudo isso, "sá" Stella", ele tinha um ar sombrio. Não gosto de ver "sêo" Danilo assim. Por momentos, ele é a única luz que me guia nesse labirinto de loucuras que Taurinos é. Ver "sêo" Danilo assim é me ver no escuro, sem direito à remissão.

"Ir pra que lado, homem? E se eu voltasse praquela carcaça arrebentada, morresse e mesmo assim tudo isso acontecesse de qualquer maneira? Esse é o Grande Mistério até para você que é o guardião das tradições do mitraísmo local. O mitraísmo local não é uma religião de mistérios, como um dia me disse Duílio? Pois eu acho que esse é o Grande Mistério da Criação para a Sociedade Antiga dos Taurinos decifrar. Se é que um dia vai conseguir decifrar algo assim tão sem provas. Porque crença em si não resolve nada."

"Já lhe disse que não existem crenças em Taurinos. Apenas criações. Mas a senhora tem razão, não há como saber se teria sido diferente. Entre nós circula a idéia de que a senhora cria essas situações, mas não consegue controlar. Mas como a senhora mesma diz, não há um meio de provar ou controlar isso."

"É como no mundo de onde eu vim, "sêo" Danilo. Ninguém sabe se o que faz é por vontade própria ou se por ato de alguma divindade ou por obra do destino. Acho que eu andei, andei e caí na mesma merda eu mesma. A única diferença é que aqui já sabemos que foi criação e não evolução."

Ele ficou em silêncio. Lá no alpendre, as mariposas e outras criaturinhas noturnas continuavam encostadas na parede do alpendre atraídas pela luz, lançando sombras esquisitas e tortuosas por cima da parede. A noite seguia, e com ela a conversa.

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