terça-feira, 7 de julho de 2009

Santuário

Donana veio visitar o filho. Abraçou a cria, tomou café da manhã conosco. Era de notar o brilho nos olhos de Renan ao ver novamente a mãe, ao abraçá-la. Ela explicou a ele que seu pai ainda estava muito aborrecido e chocado com tudo o que aconteceu, mas que já dava sinais de querer a volta de Renan para casa. Segundo ela, seria apenas uma questão de tempo. O diálogo me alegrou e estranhamente também me entristeceu um pouco. Por que eu ficaria triste? Muito mais triste fiquei ao vê-lo bater à minha porta, vencido, renegado pela família que deveria protegê-lo e amá-lo. Por que então eu ficaria triste ao saber que ele estava a caminho de casa?

Meire apareceu no MSN. Que saudades. Não nos víamos desde suas aventuras por aqui, desde a Festa da Cidade em fins de maio. Pergunto que dia é no calendário dela e ela me diz que é um domingo, 12 de dezembro de 2010. Meu Deus, como o tempo passou por lá. Por aqui parecia querer parar a qualquer momento e nos separar ainda mais no tempo, se já não estivéssemos distantes no espaço. Ela me mandou um link para uma série de televisão que estava seguindo no canal de ficção científica Sy-Fy, novo nome do antigo Sci-Fi Channel. O link não funcionou. Ela tirou um instantâneo da tela com o print screen e me enviou como imagem. Era um seriado recente no canal, Sanctuary. O slogan me causou espécie e me atraiu na mesma hora: "até o que nos assusta precisa de proteção."

Renan passou pelo computador e viu a tela com o nome do seriado. O slogan também o atraiu para a imagem, "de onde a senhora tirou isso?" e ele ficou me olhando com aquela carinha linda de mineirinho desconfiado, provavelmente achando que fosse alguma brincadeira com ele, "se é alguma piada pra mim, não cola não; não tenho força nem pra parar armado." A voz dele em rotação cada vez mais lenta começava a me desesperar. Eu expliquei a ele o que era e ele se interessou bastante pelo tema. Lamentou não poder assistir a série. Eu disse a ele que talvez pela internet fosse possível.

Tinnitus vem num crescendo aparentemente sem fim. Renan se queixa do som, eu me queixo do som, assim como todos em nossa volta. E como tudo o que não está resolvido em Taurinos, vai daqui para pior. A Polícia Obscura está completamente dividida, com cada um dos meninos vivenciando o problema do sino de forma quase que oposta a do outro. O sino diminuindo seu dobre vem trazendo para a mesma lentidão o policial mais novo, mas que é mais velho no serviço. O policial mais velho e que é mais novo no serviço não sofre qualquer mudança nesse sentido. O que é que está fazendo a diferença afinal?

"Nos perderemos entre monstros da nossa própria criação. Serão noites inteiras, talvez com medo da escuridão. Ficaremos acordados imaginando alguma solução pra que esse nosso egoísmo não destrua nosso coração. Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer? Brigar pra quê se é sem querer? Quem é que vai nos proteger? Será que vamos ter que responder pelos erros a mais, eu e você?"

Será, escrito por Legião Urbana

Fui até a sala desligar o laptop, mudei de ideia e deixei a música da Legião Urbana tocando. Cada vez que uma música me surpreendia assim, ela parecia carregada de significados para o momento que eu estava vivendo. Fiquei analisando a letra, pensando no que queria dizer se manifestando assim. Porque se iniciava de determinados trechos, quando seu padrão era vir desde o começo.

"Não gosto dessa música", Renan me disse de repente, me assustando. Eu não sabia que ele estava ali parado como uma assombração na moldura da porta da cozinha. A imagem dele na passagem me causou arrepios. Eu não sabia porque o fato dele estar parado especificamente ali na passagem da sala para a cozinha havia de me causar arrepios. Mas sabia que era a localização dele que me afetava, mais do que a surpresa de encontrá-lo ali quando achei que estava em seu quarto.

"Renan, você pode vir até aqui?", e ele veio e ele ainda estava ali parado na moldura da porta da cozinha. Era isso que me incomodava no fato dele estar parado ali. Expliquei a ele o que via e ele olhou para a moldura da porta. Ele pediu que eu fechasse os olhos e quase no mesmo instante pediu que eu os abrisse. Quando meus olhos se abriram de novo ele estava colocando uma foice no chão, a mesma que usou para matar o entrante em seu quarto.

"Obrigado, até isso vem aqui roubar energia" e ele sorriu aquele sorrisinho de criança peralta que rouba goiabas no quintal do vizinho antes de explicar que cortou a cabeça do entrante que estava parado na moldura da porta da cozinha.

"Como você fez isso? Não vi você fazer nada além de me pedir para fechar e reabrir os olhos, nem vi de onde tirou aquela foice."

"Eu peguei a foice lá em cima, uai."

"Não é possível, Renan. Não ia dar tempo. Você me disse para fechar os olhos e logo em seguida para…"

"Eu parei o tempo quando a senhora fechou os olhos, fui lá em cima, peguei a foice e foi uma confusão dos diabos aqui dentro. Fiquei duas horas e meia pra pegar o manhoso porque eu não via ele, mas sentia. Esperei até a confusão terminar de secar e voltei o tempo."

"Espere, espere, você pode parar o tempo???"

"Eu e o Anderson. E o Adriano também. Como a senhora acha que o Anderson conseguiu amarrar o relho dele no eixo do carro daquele forasteiro tão rápido? Como acha que o Adriano construiu sua casa igualzinha ela era em Santos em uma noite?"

Lembrei da cena, a estreia de Anderson na Polícia Obscura. O forasteiro puxando a arma, o relho trazendo a arma para Anderson num movimento vertiginoso. Adriano reconstruindo a minha casa em plena Taurinos. Agora eu entendia tudo. A Polícia e seus segredos mortais. Taurinos e seus segredos em arquitetura. Mas o que eles podiam fazer com o tempo não estaria agora afetando o sino e o tempo na cidade?

Externei minha preocupação a ele e ele disse que uma coisa nada tinha a ver com a outra. Que ele parava tanto a nossa percepção do tempo quanto a dos entrantes. Mesmo que o entrante atirasse, ele não tinha como alvejar o Agente, que tinha todo o tempo do mundo para se desviar do que quer que fosse. Tamanho poder me fascinou e me assustou.

Mais tarde, fomos Andrés, Renan e eu até um trecho de mata que entrava por um vale, não muito longe da fazenda Taurinos. Um santuário natural com uma pequena queda d'água cristalina, uma das paisagens de mata mais lindas que já vi. Eles disseram que era um lugar de descanso. Que todos eles paravam ali. Era dali a água que ia formar a lendária Cachoeira dos Chifres, mais para o outro lado do cerrado e da mata ciliar. O mais incrível era que aqui não conseguíamos ouvir o zunido permanente de Tinnitus. A princípio pensei que o zunido tinha parado, mas os meninos me disseram que o santuário o isolava fora. Que muitos bichos estavam migrando para o local para fugir ao ruído do sino. Vindo atrás dos dois, pouco antes de pararmos, senti meus cabelos se emaranharem num cipó, soltei os cabelos e e vim para perto deles.

"É aqui que a gente reverencia o Jardineiro", me disse Andrés, sorrindo para (e com) Renan.

Achei que ele estava numa onda bicho-grilo de Arquiteto do Universo. Fiquei calada, observando a beleza natural ao redor, até Andrés ser picado por uma formiga, daquelas pretas de cabeça grande, "nossa, o Jardineiro não deve ter gostado da brincadeira" e eu tive que perguntar que tanto falavam em um jardineiro. Os dois me olharam como se não soubessem o que eu estava falando e me deixaram confusa. Eles riram e eu não insisti.

O lugar me fazia sentir bem. Belíssimas libélulas, de cores vibrantes e voo gracioso passavam por nós como se estivessem curiosas com nossa presença. Borboletas de todas as cores e tamanhos passavam como pequenas bailarinas aéreas e Renan, incrivelmente, não as pegava para arrancar suas asas e torturá-las das maneiras mais bárbaras possíveis.

Ficamos no santuário por quase uma hora, mas poderia ser até menos que isso, o tempo parando ilude muito. Como diria Teca Calazans, "o tempo mente muito, mente; fazendo crer que ele seguiu". Quando nós saímos de lá, topamos com o Bruno no caminho. E eu que nem sabia que ele vinha por essas bandas mas os meninos tinham mesmo dito que todos eles paravam por ali vez por outra. Bruno passou por nós sem dizer uma palavra. Eu ia cumprimentá-lo, mas Renan sinalizou para que eu não o fizesse. Sem entender nada, fiquei calada. Bruno passou por Andrés e disse a ele, "dessa vez foi só uma formiga, da próxima vez pode ser pior, meu chapa." Andrés só faltava assobiar em disfarce. Eu, é claro, não entendi absolutamente nada daquela pantomima. Os meninos, é claro, não explicaram absolutamente nada daquela pantomima.

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