segunda-feira, 6 de julho de 2009

Espectros

Fomos eu, Andrés e Renan até a loja de ferragens do Anderson. Renan se queixava ainda dentro do carro de um volume incomodando em seu bolso de trás. Tirou e era um saquinho de sal grosso. Fiquei olhando para ele sem entender nada e ele pareceu embaraçado enquanto ficava segurando o saquinho branco cheio de cristais na mão. Entramos na loja e sentimos uma espécie de movimento passando por nós, como alguém correndo, provocando aquele deslocamento de ar, mas um ar frio e carregado que estranhamos bastante.

Outra coisa que estranhamos bastante foi que Anderson nos atendeu normalmente. Não parecia o mesmo que tinha estado na praça ontem provocando desmaios e convulsões entre populares, segundo eu fiquei sabendo depois. Era o mesmo chaveiro e lojista que todos conheciam em Taurinos. Cada vez que alguém encontrava as crianças daqui, elas estavam num aspecto diferente. A cidade seguia ao sabor desses aspectos. Ou espectros?

O chaveiro alegou não se lembrar de ter estado armado na praça. Achei que ele estava despistando, mas não notei contradições no que ele disse. "Podia muito bem ser verdade", eu disse aos dois meninos quando deixamos a loja. Andrés ficou desconfiado da resposta do ferreiro, mas também impressionado com a diferença de comportamento dele para o comportamento de dias atrás. Renan não disse nada. Ficou o tempo todo fitando o ferreiro.

De noite, "sêo" Danilo apareceu para uma visita. Ele não tinha aparecido ontem e parecia ansioso para saber notícias. Hoje já consigo perceber "sêo" Danilo mais em linha com os assuntos da cidade. Talvez ele sentisse que não tinha outro remédio a não ser ajudar. Desde o início de tudo envolvido na história, "sêo" Danilo desvendou (e desvenda) muito de Taurinos para mim. Ele perguntou por Renan, que eu tinha deixado dormindo em seu quarto.

"Eu fiquei estarrecido com a história do polegar do "sêo" Anderson", me disse logo o sertanejo, ainda parecendo alarmado pelo que ouviu na reunião no Mithraeum, "mas isso não é coisa dele, "sá" Stella. "Sêo" Anderson pode ter mil defeitos, mas uma coisa dessas contra o amiguinho dele ele não faria no juízo perfeito, sabe."

Eu disse a ele que Adriano e Guilherme e eu mesma compartilhávamos dessa idéia. De que Anderson não estava em si. Eles percebiam o olhar dele e sabiam, como eu sabia, que já o tinham visto antes. Ele se interessou pelo assunto que Guilherme tinha conversado comigo e Adriano na ilha.

"Então já tinham visto ele antes assim, "sá" Stella?"

"O mais incrível é que nenhum de nós se lembra onde viu isso acontecer."

Ele ficou pensativo. Disse que não haveria muito que ele pudesse oferecer em termos de questionamento pelo menos naquele momento. Que tinha andado distante dos acontecimentos, cavando sua vida aqui e ali. Me disse que a CEMIG finalmente instalou o poste; agora sua casa tinha energia elétrica. Ele me convidou para ir lá para um café como nos "velhos tempos", o que naturalmente aceitei, antes que voltássemos ao assunto.

"E se não há nada de errado com o Anderson fisicamente, alguma coisa acontece com esse sino que deixa a mente de um confusa e o corpo do outro um caco. Se a gente observar, Anderson está intacto fisicamente, mas um caco mentalmente enquanto que Renan está intacto mentalmente, mas um caco fisicamente."

"Mas e a senhora acha que o problema então pode estar no sino?"

"Acho que sim. Mas isso, se a gente olhar de novo, então é um círculo vicioso. Se não arrumar o sino não tem forças e se não tiver forças não arruma o sino."

"Ói, se a senhora for pensar pra trás, eu acho que quando o "sêo" Anderson ainda não tinha entrado pra Polícia, ele não estava assim. Era um menino centrado, mais respeitoso com os mais velhos, prestativo, alegre, sorridente, não é? Creio em Deus padre, nunca mais vi aquele menino sorrindo."

"É, acho que a Polícia Obscura fez muito mal a ele. Acho que muita coisa vem dessa raiva que ele tem por ter sido "forçado" a entrar na Polícia."

"Muita coisa, a senhora diz. Mas pode ser que não seja só isso."

"Sim, esse para mim é o ponto da questão."

Ele me olhava como se considerasse um outro lado da questão, o que realmente estava acontecendo, "mas agora se olhar pelo lado da Polícia, o ritual deles é escuro, pesado; quando faz com os touros é uma coisa. Mas ali já tem forma de gente, às vezes pode isso impressionar muito o menino. E ele é mais velho que o Renan, devia suportar isso melhor, mas nem sempre é a idade que conta, é mais o temperamento da pessoa, não é?"

Concordei com ele, achei que era uma análise bastante lúcida. Sim, o ritual era o ponto de partida (ou a ocasião precedendo o ritual era).

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