quarta-feira, 8 de julho de 2009

Retorno

Ilha Basilisco. O vento perpétuo que assolava o lugar mesmo sob o Sol. Todos estavam ali, toda a Sociedade Antiga dos Taurinos: Adriano, Anderson, Andrés, Arthur, Bruno, Guilherme e Renan. Sem esquecer a que vos escreve e "sêo" Danilo. Bruno, quando olhava para mim, Renan ou Andrés, era com a cara amarrada. Eu tentava entender o que se passou ontem na trilha do Santuário, mas não conseguia. O maior mistério de Taurinos era que ela era antes de tudo misteriosa.

As horas parecem se tornar dias. O zunido do sino a tudo domina, vai ficando mais e mais grave, descendo as notas musicais uma por uma, parando lenta e angustiosamente.

Descemos todos as trilhas que levavam ao recinto do sino. E lá estava ele. Arthur e Bruno estavam aturdidos com o tamanho do trambolho. Guilherme parecia nunca se acostumar à visão que tinha dele. Adriano e Andrés olhavam os desenhos, procurando instruções. Anderson se afastou do grupo e se dirigiu para a escada que dava acesso ao topo do arco de sustentação do sino. Já novamente não era mais o lojista que todos conheciam em Taurinos. Eu e "sêo" Danilo o observávamos atentamente. Guilherme também relanceava os olhos para ele. Renan viu o parceiro subindo e foi ter com ele. Alguns passos adiante, sentiu-se como que incomodado e novamente tirou do bolso de trás um saquinho com sal grosso (o mesmo no qual estivera sentado em cima no banco do carro quando visitamos a loja de ferragens) e o deixou comigo para que eu o guardasse. Fiquei pensando, "moleque relaxado, nem pra guardar essas coisas quando chega em casa."

Ficamos todos olhando para cima enquanto Renan subia penosamente a escada em espiral para o topo. Andrés e "sêo" Danilo começaram a dar a volta no sino, observando seus detalhes atentamente. Guilherme, Arthur e Bruno pareciam ser os que mais prestavam atenção na cena. Quando Renan já ia quase no topo, ouvimos Anderson gritar para ele lá de cima, "vamos, Imortal, eu sei que você consegue!"

Eu olhei para Guilherme e ele olhou para mim. Arthur e Bruno se entreolharam também. Definitivamente já tínhamos ouvido aquilo antes. Mas onde? Ao meu lado, Guilherme cantarolava uma canção de um xará seu nascido em São Paulo. Era "Nave Errante" de Guilherme Arantes.

Por Mitra. "Jacques DeMolay" estava de volta. E Renan estava lá em cima. Andrés retornou com "sêo" Danilo e nos disse que encontrou instruções no sino:

A letra A tem teu nome. Mas o teu nome a letra A não começa.

"Não é o Anderson lá cima, Andrés", Guilherme estava nervoso, "é capaz de ser o último homem que ele matou no ritual, ele foi o único que falou da gente como Imortais, cara!"

"Eles usam sal grosso pra prender esses pestes", lembrou Adriano, "lembra dos círculos no chão? Era isso que prendia eles, nada mais."

"Renan me deixou o sal grosso que já estava no bolso dele há dias", eu tirei o saquinho do bolso e Guilherme o tascou de minha mão, correu para a escada. Nós, é claro, fomos correndo atrás dele. Lá cima, Anderson ou o que quer que aquilo fosse, já tinha convencido Renan a se pendurar no arco do sino. Guilherme pediu que Adriano fosse na frente até lá ajudar a segurar o irmão. Caminhou por trás de Adriano e encheu a mão com os cristais brancos.

Adriano ajudou a segurar Renan apesar dos protestos do ferreiro e, quando nada mais se esperava, Guilherme deu um tapa nele com a mão que segurava os cristais. O ferreiro, ainda apoiado no parapeito, virou para o outro lado e caiu da altura de uma catedral, colidindo com a superfície de ressonância do sino, indo se espatifar lá embaixo na água dura do poço azul de basiliscos. Imediatamente, Anderson começou a nadar às cegas. Renan gritou a direção para ele e ele mesmo assim levou tempo para chegar à borda do poço, com o corpo marcado de mordidas de basiliscos que vimos ao descer.

"Eu te falei tanto pra você não olhar nos olhos dele naquele dia, cara. Eu te falei por bosta!", ele abraçava e esmurrava o parceiro numa mistura estranha de raiva e alegria que não me era estranha em se tratando de Renan. Anderson retribuiu o carinho fracamente, "nos olhos de quem?", sentindo todo o corpo formigar. Começou a juntar o povo da Sociedade Antiga dos Taurinos. Ninguém acreditava no que tinha acabado de presenciar. Um caso autêntico de possessão por forasteiros.

"E a tal entidade?", perguntei.

"No poço, junto com os outros basiliscos", me disse o"sêo" Danilo, "voltou à origem dele."

"Os forasteiros, entrantes, o que seja, são basiliscos?", eu estava curiosa.

"Sim, era o que a senhora não entendia sobre o trabalho da Polícia Obscura. Alguns são mais desenvolvidos, mais complicados e outros são mais simples, mas são todos basiliscos", ele informou.

A declaração dele, mais o que passei ontem na sala de estar com Renan, me deu bastante o que pensar. A forma humana era o que tornava a atividade dos meninos perturbadora. Ao redor os garotos se empenhavam em suas conversas também e sobre como todos tinham estranhado o modo de Anderson olhar e como a memória da letra de música pareceu revelar tudo. O sino não funcionava porque a energia da Polícia Obscura que o tinha posto para dobrar em movimento perpétuo não estava correta. A interferência era o basilisco complexo que eu chamei de "Jacques DeMolay", usando Anderson como hospedeiro. Lembrei da experiência de Renan ao lhe dizer que nunca os olhasse nos olhos. Lembrei de Andrés me dizendo isso mesmo, se referindo ao Renan, na Santa Casa de Santos.

O som da nota começou a subir. O movimento do sino se tornou perceptível à visão comum. Estava acelerando. Estaria acelerando demais? Pelo vozerio em redor, percebi que não era só eu com essa dúvida. Anderson explicou que ele iria acelerar por algum tempo para pegar novamente o ritmo da terra e recuperar o tempo perdido. De fato, o sino atingiu um ponto onde o volume do zunido começou a baixar e finalmente desapareceu de nossa audição, quando o sino ficou aparentemente imóvel.

"Acho que está funcionando certinho", disse Anderson, "mas chegou a dar muito problema com o sino?"

Eu chutei a canela de Andrés para prevenir um ataque de riso que já se formava. Ele, é claro, me mostrou os dentes, mas já não era bem assim um sorriso.

"Teve um probleminha mas já tá tudo joia de novo, "sêo" Anderson", assegurou o sertanejo.

Foi maravilhoso ouvir a voz de Renan de volta ao seu tom normal, assim como os movimentos dele. Eu já não aguentava mais aquela leseira. Aquele zunido. Toda aquela merda. O momento seguinte foi um momento em que Anderson me olhou de uma forma diferente da forma com que vinha me olhando desde o maldito ritual. Com a expressão que me lembrava de quando o conheci. Era como se um encanto tivesse se quebrado. Era mesmo um encanto se quebrando. Como se ele deixasse alguém em seu lugar e só agora tomasse pé da situação.

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