quinta-feira, 9 de julho de 2009

Sacrilégio

Churrasco na fazenda Taurinos para comemorar mais uma etapa vencida no processo de sobrevivência da comunidade taurinense. O prefeito, que não faz nada pela cidade, pelo menos dá a festa no final, um gigantesco regabofe para a população. A fazenda escolhida é sempre a Taurinos, pelo espaço, palco de eventos dramáticos quando toda a cidade acampou por aqui, pouco antes de minha volta definitiva para a cidade de Taurinos, deixando o lugar com cara de festival de Woodstock.

Através do povaréu que ia e vinha de lá para cá, vi o Bruno sentado sozinho, de costas, a uma certa distância, mirando o horizonte. Não era frequente que ele se isolasse sendo que todos os amigos estavam por perto. Eu caminhei na direção dele e não tinha ainda dado dois passos, quando Andrés me chamou, a voz vinda de trás de mim. Bruno permaneceu impassível, apenas mirando o horizonte. Eu me virei para olhar e Andrés não estava em meu campo de visão nem remotamente próximo a ele. Senti o vento numa rajada e, quando ia continuar a caminhada em direção ao Bruno, nem ele estava mais em meu campo de visão. Tinha sumido. Olhei em volta e ele não poderia estar longe, o lugar era plano e me dava a visão de uma boa distância. Ele não poderia estar longe, mas estava.

Voltei ao alpendre e encontrei "sêo" Danilo. Ótimo momento para trocarmos impressões sobre toda a loucura dos dias passados, e o que era melhor, sem o zunido de Tinnitus para atormentar.

"Não estive no ritual da Polícia. Agora vejo que deveria ter ido", o sertanejo me dizia, "tudo o que aconteceu por esses tempos esteve diretamente ligado ao ritual, "sá" Stella. Eu seria um a mais para dar ideias sobre o sino."

"O senhor não perdeu nada, "sêo" Danilo, de verdade", eu lhe contei em tom confessional a inveja que senti dele em sua casa tomando café enquanto eu tinha de ficar ali naquele horror. Ele riu discretamente, como era de seu estilo comedido. Mas disse que o que eu relatava só fazia aumentar seu pesar por não ter ido.

"Sabe, as suas dúvidas sobre o trabalho da Polícia. Eu não fui ao ritual porque eu tinha as suas mesmas dúvidas até então", ele tornou, com o mesmo tom confessional que eu tinha tido, "na Ilha Basilisco, diante do poço, eu vi o que era tudo aquilo. Toda a loucura do mundo aprisionada naquele poço e nas águas daquele lago. Pensamentos, ideias que formam basiliscos a todo momento, que invadem o astral da cidade e transformam o lugar num inferno. Vi tudo isso só de olhar por segundos nas águas daquele poço. Olhasse mais um pouco, estaria naquela água com eles."

Contei o ritual a ele resumidamente e ele ouviu com atenção. Acostumado às coisas da cidade, mesmo assim ele não deixava de se espantar. Lembrou do momento em que o Sol ficou negro; sabia o que era, fechou todas as portas e janelas da casa e se recolheu. Ele disse que teve sonhos estranhos à noite. Segundo ele, os sonhos eram parte da obrigação dele de ter estado no ritual. O relato dele me espantou bastante. Pensava nele e no ritual como coisas à parte uma da outra, mas me lembrei de Meire, Aparecida e Duílio também relatando terem se sentido estranhos.

Andrés apareceu todo pimpão e eu o chamei para junto de nós. Perguntei o que ele queria comigo. Ele ficou espantado com a minha pergunta, "eu? Mas eu não chamei a senhora, D. Stella…"

Contei a ele o que aconteceu quando eu ia conversar com o Bruno. Andrés me olhou de forma estranha. "Sêo" Danilo me olhou de forma mais estranha ainda. Detesto quando eles me olham de forma estranha. Quebrei o silêncio da forma que, iria descobrir em seguida, seria a mais devastadora possível:

"Por que você e o Renan me levaram para aquele lugar?"

"Que lugar, "sá" Stella?", "sêo" Danilo se interessou, já olhando para Andrés.

Descrevi o lugar e vi o assombro crescendo nos olhos dele. Achei que ele se maravilhava pela descrição do lugar, mas não demorei a descobrir que o motivo do assombro era outro.

"Mas, "sêo" Andrés, que ideia foi essa de levar "sá" Stella naquele lugar???", eu vi Andrés se encolher ligeiramente.

"Bruno acho que também não gostou da história. Ontem e hoje nem me dirigiu a palavra", eu disse, fazendo o sertanejo colocar as mãos na cabeça.

"Vamos rezar pra que o Jardineiro não fique zangado, "sêo" Andrés, mas que ideia!"

Andrés tentou se defender com o argumento de que eu tinha criado tudo o que existia em Taurinos, mas "sêo" Danilo refutou veemente, "não importa se ela criou tudo por aqui, ela é de outra cidade, o Jardineiro sabe disso, sabe que ela traz coisas pra dentro do Santuário que não são dali. Pelo amor do astro Rei, Andrés, isso é sacrilégio, sô!"

Foi o mais próximo que eu vi de "sêo" Danilo ficar zangado, o que realmente me preocupou. Repreendi Andrés (que já estava de orelhas quentes) e fiquei de conversar com o Renan. Andrés girou nos calcanhares e sumiu. Conversando com "sêo" Danilo, entendi que o Santuário era uma espécie de banco genético da flora e da fauna de Taurinos e me arrepiei toda em imaginar que eu pudesse, com minha entrada no local, ter alterado alguma coisa no delicado equilíbrio ecológico da cidade.

Anderson veio e se juntou a nós, coisa impensável nos últimos dias. Me cumprimentou amigavelmente como no começo e se assombrou com as notícias do dia. O sertanejo olhava o menino atentamente, como se avaliasse a diferença dele de um tempo para outro e pareceu assombrado ele mesmo.

"Mas o Renan e o Andrés deviam levar uma boa coça, isso sim", ele defendeu, "não é culpa sua, D. Stella, a senhora não sabia, mas eles tinham que saber!"

Defendi os dois meninos. Achei que eles o fizeram porque achavam que eu tinha me "naturalizado" com a cidade estando aqui por tanto tempo.

"Naturalizado, que nada! O material que forma o seu corpo foi criado muito longe daqui. Se um fio de cabelo seu caiu dentro do Santuário, vai ser uma confusão dos infernos aqui", o jovem policial disse, com a aprovação silenciosa da cabeça de "sêo" Danilo, "eu não entendo nada de ecologia, sabe, mas de materiais eu conheço um pouco. Se a senhora tivesse criado Taurinos igualzinho a Santos, não tinha problema porque a natureza ia ser a mesma de lá e nós podíamos entrar de qualquer jeito porque a gente ia ser santista e não taurinense."

Mais confusão à vista. e dessa vez com um Jardineiro que nunca vi, mas que já deve estar furioso comigo logo de saída. Como eu poderia saber?

"O Jardineiro Celeste mora ali dentro onde a senhora foi com eles", contou Anderson, "ele é a vida selvagem de Taurinos todinha numa pessoa só. Ele é todos os bichos selvagens, todas as plantas, nuvens, chuvas, raios que caem na cidade. Ele faz as plantas crescerem, os bichos mamarem, caçarem, cria todos os ciclos da vida, todas as adaptações para o bicho ou a planta sobreviver no cerrado, nos campos de altitude ou na mata ciliar. Ele é o que vocês na sua terra, em Santos chamam de Natureza. Lá é feminino, aqui é masculino. E ele às vezes fica bem zangado. Como a mãe Natureza lá pode ficar bem zangada também."

Ele olhou para "sêo" Danilo em busca de aprovação e recebeu o sim. O sertanejo disse que não havia um sentimento de desconfiança do povo comigo pelo fato de eu ter entrado simplesmente. Apenas que meu material genético poderia interferir naquele reservatório de vida causando aberrações inexplicáveis. Nunca fui tão estrangeira. Me lembro das tribos indígenas assoladas por vírus trazidos pelos colonizadores e faço comigo mesma essa paralelo. Ao que parece, o Jardineiro Celeste não me aprovou.

Anderson, por outro lado, está bem. Ele é novamente o menino que conhecemos, graças ao bom Mitra. O ferreiro e chaveiro brincalhão que gosta de heavy metal e do trabalho com metais. Nem penso em sentar com ele e contar-lhe toda a loucura que foi esse período para todos nós, mas se ele me perguntar não pretendo esconder.

"O sino é maravilhoso", eu dizia a ele, "nunca tinha visto nada igual, a riqueza dos detalhes, as mensagens."

"É, o que salvou foi que o sino é inteligente. Ele fala meio enrolado, mas até que ele deu bem conta.", ele acrescentou arrancando risos de mim e de "sêo" Danilo.

Perguntei a ele se tinha visto o Bruno. Ele disse que não, que só no começo da festa. Achou que ele provavelmente já tivesse ido embora, "o Bruno está bem zoado com essa história do Santuário, o Arthur e o Guilherme também. Até o Adriano ficou puto da vida com a história."

Os meninos em permanente estado de beligerância. A cidade contra a polícia, a polícia contra a natureza e assim por diante. Agora esse Jardineiro Celeste do qual eu nunca tinha ouvido falar. A perspectiva de ter que perguntar a três ou quatro pessoas diferentes de Taurinos se devo ou não ir a determinado lugar da cidade. A perspectiva de ter alterado um banco genético delicado como o do cerrado desta região em particular de Minas Gerais. Poucas e boas perspectivas. Mal saímos da maluquice do sino gigante e já entramos noutra.

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