terça-feira, 14 de julho de 2009

Noite de São Cristóvão

Guilherme dirigiu hoje os trabalhos no Mithraeum. Era o Oficiante de hoje, por parte do Jardineiro Celeste. Primeira reunião em que Renan e Andrés estão ausentes. Ficariam no Santuário até que conseguissem achar o que deixei lá, fosse o que fosse. Não era, no entanto, a primeira reunião sem que todos estivessem presentes. Houve a famosa reunião sobre a Polícia Obscura, verdadeira queda-de-braço dos vigilantes daqui, sem a presença de Adriano, ferido em combate com a tenebrosa Polícia encontradiça em Taurinos.

"Sêo" Danilo já tinha me prevenido que havia chumbo em reserva para mim, especialmente da parte de Arthur. Fiquei olhando para o Bruno, sentado à certa distância, tentando ler o silêncio dele, enquanto o sertanejo falava.

"Ele vai reclamar do tratamento que a senhora está dando a ele. Pode ser que ele até guarde isso para si, que eu esteja muito enganado, mas eu acho que ele vai reclamar."

E não reclamou. Me trouxe no olho a reunião inteira, mas não reclamou. O Oficiante me perguntou se em algum momento algum dos dois tentou avisar de que se tratava de um território interditado para forasteiros.

"Não. Eles me levaram até para que eu conhecesse o lugar."

O Oficiante me perguntou por que eu levei tanto tempo para abrir um presente já tendo avisada de que se tratava de uma planta.

"Arthur não foi convincente o suficiente no começo", respondi displicentemente e sustentei o olhar na direção do Oficiante mesmo com os raios fulminantes que ele me enviou. Arthur também mostrava os dentes. Somente Bruno, enigmática esfinge, permanecia em silêncio. Impassível.

""Sá" Stella, vá com calma, creio em Deus padre", sussurrou "sêo" Danilo em meu ouvido. O Oficiante advertiu o sertanejo contra conversas paralelas e ameaçou nos trocar de lugar.

Tarde ia caindo e eu ainda estava muito longe de casa. Saí, fui andar sem destino pelas estradas de terra depois da reunião no Mithraeum. Andei tanto que praticamente não reconhecia mais o entorno. A luz ainda era boa, mas eu tencionava chegar em casa antes que escurecesse. Não conhecia nada em Taurinos, já tinha até pisado em lugares onde não poderia ter pisado.

O silêncio daquela tarde era magnífico. Envolvia toda a maravilha do Sol poente como a mais perfeita das trilhas sonoras. Não sentia nem a falta do mp3, o som do começo da noite me absorvia e fascinava.

Súbito, ouvi o som de algo caindo e de um cavalo disparando depois da curva que eu tinha à frente. Parei, sem saber o que esperar, depois comecei a avançar mais devagar. Não pude conter meu espanto ao virar a curva: ninguém menos que meu novo jardineiro estava caído na estrada. A julgar pelo som que ouvi, ele caiu do cavalo, que saiu em disparada. Algo que o assustou?

Tive que reanimar o menino, que tinha desmaiado. Ele se abraçou em mim e reclamou que sua perna direita estava doendo muito. Pensei: pronto, quebrou a perna no meio deste ermo.

"Tá doendo demais da conta", ele tinha lágrimas de dor nos olhos, "me ajuda, por favor, D. Stella…"

Se aquilo era um outro teste e ele queria me comover, estava fazendo um trabalho brilhante. Lembrei do celular. Tudo o que tinha a fazer era ligar para os pais dele, descobrir se ele estava em casa e direcioná-los para cá se ele não estivesse. Mas onde estava meu celular quando eu mais precisava dele?

Merda. Eu o tinha deixado em casa, em minha bolsa. "Nunca mais saio sem ela", pensei, frustrada e já sem saber o que fazer. Me soltei do abraço dele e fiquei olhando aquela coisinha rechonchuda caída no chão. Não vestia a jardineira azul, era mais como algo casual. Ele fechava os olhos e as lágrimas rolavam sem controle. Aquilo não podia ser uma farsa.

"A senhora não vai me deixar aqui, vai?", a voz era chorosa, desalentada.

As últimas luzes da tarde já se adiantavam, escorrendo para o horizonte como água que escorre para o ralo do tempo. Eu pensava que minha intenção de chegar em casa antes do escurecer tinha sofrido um abalo. Sem o celular, não teria como avisar ninguém de onde estávamos. Sem um carro e com o menino sem poder caminhar, eu imaginava que um por-do-sol de penitência estava a caminho.

Decidi não perder mais tempo. Ajudei Arthur a se levantar a muito custo e o coloquei nas costas. Fui andando com ele nas costas pela estrada. A luz já escasseava. Em breve, ficaria ruim até para distinguir os contornos da estrada. Eu caminhava na esperança de uma carona de alguém que estivesse retornando para Taurinos.

"O que você fazia aqui, Arthur, tão longe de casa?", perguntei enquanto seguia a estrada.

"Vim dar uma volta a cavalo… Quando estava voltando, correu um bicho de dentro do mato, teiú, sei lá o que foi… O cavalo empinou e eu não estava esperando…"

Isso tudo entrecortado de soluços de cortar o coração. Ele perguntou o que eu fazia ali. Respondi que o mesmo que ele, só que sem um cavalo.

"A senhora não cansa de andar a pé?", ele quis saber, com a voz bem no meu ouvido, enquanto ele se segurava em minhas costas.

"Se eu posso te carregar nas costas agora é porque gosto de andar a pé."

Ele se calou. Ficamos um tempão assim, sem conversa, sem nada. O escuro já dominava tudo. Eu ia trôpega de tanto peso, já perdia a noção dos limites da estrada e por duas vezes quase caí no meio da braquiária que margeava o caminho. Foi quando vi um dos espetáculos mais bonitos que a noite daqui tem para oferecer.

Miríades de vagalumes começaram a me seguir, piscando suas luzinhas minúsculas e pousando nas margens da estrada, marcando exatamente os limites da estrada que eu não conseguia mais enxergar, como luzes de uma pista de pouso. À minha passagem, os vagalumes que tinham ficado para trás levantavam voo e vinham pousar mais à frente, numa corrente sem fim de luminosidade vital para que eu pudesse andar com segurança com o pequeno jardineiro nas costas.

Notei que a cada passo que eu dava, o pequeno ficava mais e mais pesado. Como na história de São Cristóvão, padroeiro dos motoristas, então chamado Réprobo, que tencionou servir ao mais poderoso dos líderes. Após servir a um rei e ao Diabo os abandonou, porque havia coisas que eles temiam: um temia ao próprio Diabo e o outro temia a presença da cruz. Aceitou servir a Cristo atravessando pessoas num rio caudaloso e perigoso para travessia e acabou um dia atravessando um menino para o outro lado. A cada passo que dava, o sentia mais pesado. Era o próprio, de quem até o Diabo tinha medo.

"Arthur! Você está dormindo. Acorda, fica pesado carregar assim… Arthur! Acorda!"

Ele não acordou. Quando finalmente cheguei ao portão de minha casa com ele, já não aguentava mais em pé. Abri o portão a custo, me desvencilhando das malditas plantas espinhosas que nem pareciam ter sido podadas e ao entrar em casa coloquei o pequeno no sofá. Ele então acordou e tinha o rosto ainda raiado de lágrimas. Me agradeceu e pediu água.

"Desculpe, esqueci que a senhora não quer me dar água" e ele ficou quieto, olhando para o teto. Dei água a ele e os olhos dele lampejaram de satisfação. Trouxe a jarra, ele parecia ter passado quarenta dias no deserto. Ele me agradeceu novamente e ficamos em silêncio um tempo. Perguntei o número do pai e ele me deu o número do celular de "sêo" Horácio. Liguei e disse que ele viesse buscar o filho. Ele estava nas estradas procurando Arthur. Disse que o cavalo dele foi encontrado vagando sozinho e que ele e a esposa já estavam desesperados atrás do menino. Já tinham ido à Taurinos, vindo à minha casa, nem sinal. Fiquei pensando o que poderia ser se eu o tivesse abandonado na estrada, achando ser aquilo mais um teste. Tremi só de pensar que poderia ter abandonado a criança ali à míngua, jogada na estrada. Perguntei algumas coisas a ele enquanto esperávamos seus pais.

"O que você estava fazendo na minha casa e na sua ao mesmo tempo anteontem?"

"Eu tenho um lado palhaço que é bom pra convencer as pessoas. Os moleques da Polícia Obscura chamam de aspecto, nós chamamos de lado. Mas lado não quer dizer que não seja eu. A senhora não tem um lado escritora? A diferença é que a senhora não pode estar em um lugar e o seu lado escritora em outro. Olha, eu sou bom com as palhaçadas. É que quando eu começo a ficar impaciente, as palhaçadas vão ficando mais sérias, sabe. A senhora fez o que tinha que fazer: abrir o pacote com a planta."

"O que são os outros presentes, Arthur?"

Ele sorriu, maliciosamente ingênuo como o moleque de interior que era, "quer saber? Abre!", eu sorri e disse que ele era um amador. Ele sorriu também e encerramos as comunicações para o dia quando um motor de carro se fez ouvir lá fora. Eram os pais dele. Senti uma certa pressa deles em levar o menino para casa, como se as notícias sobre o corte na água e no cafezinho aqui em casa já tivessem chegado à fazenda Feletti de velhas.

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