domingo, 5 de julho de 2009

Eterno por-do-Sol

Adriano estava sentado no alpendre quando eu e Renan chegamos à fazenda Taurinos. Eu pedi a Renan que ficasse no alpendre com Adriano e fui falar com o irmão dele; eu estava irritada com Andrés pelo modo como ele expôs Renan durante a reunião de ontem e disse isso a ele com todas as letras ao encontrá-lo na Internet em seu quarto. Ele se defendeu habilmente dizendo que teria de levar o assunto ao conhecimento de todo o Conselho, ele quisesse ou não.

"Não interessa. O modo como você expôs o Renan foi estúpido e insensível. Você parece não se importar muito com o que as outras pessoas sentem. Tudo bem, não peço que se importe, mas finja que é gente de vez em quando e, por favor, não coloque as pessoas nessa situação porque você tem uma cidade para consertar."

Andrés ficou calado. Sentou na cama de lado, emburrado, e parecia não querer me encarar. Eu o larguei no quarto e desci para o alpendre. No caminho, procurei por Aparecida e Duílio para cumprimentá-los, mas aparentemente eles tinham saído.

Ficamos conversando eu, Adriano e Renan, ainda tristonho pelo que tinha sido forçado a ouvir sobre o parceiro de cavalgadas noturnas. Adriano, que tinha ateado fogo à controvérsia ontem, hoje se esmerava em relativizar o acontecido. Estranhamente, não vi uma contradição dele entre ontem e hoje, embora a conduta dele fosse bem diferente. Eu achava que ele tinha em mente realmente observar o comportamento do ferreiro. Era evidente para mim que ele tinha sido cauteloso ao sugerir o exame de seu comportamento, como se concordasse com a avaliação de Guilherme sobre já ter visto aquela expressão nele antes.

"Sim, eu dei essa sugestão porque eu não acho que ele esteja no juízo normal dele. Fica assim não, Renan, é tudo da boca pra fora; não é o Anderson quem está falando."

"Iss' mes, Renan", disse a voz familiar do caçula Conselheiro depois do tradicional som das molas barulhentas da porta de tela do alpendre se abrindo, "não deixe isso te abalar, ele não está falando como um de nós, cara", Andrés relanceava os olhos timidamente para mim talvez a ver se eu aprovava o consolo que ele acabava de propor para a cagada feita no dia anterior.

"Eu sei disso, Andrés", disse Renan, sombrio.

"A gente precisa descobrir o que está havendo com ele. O que é que está causando isso", eu atalhei, "precisa voltar para trás, tentar imaginar desde quando isso está acontecendo. Como quando alguém esquece uma coisa e tenta lembrar, voltando ao lugar onde esteve pensando nessa coisa."

"Eu vi aquele modo de olhar antes", disse Andrés, "mas agora já não sei se foi antes mes."

Adriano assentiu. Todos nós, menos Renan, parecíamos ter reparado no olhar dele. Algo alucinado, perdido numa contemplação sem fim de algo que nós mesmos não gostaríamos de presenciar pessoalmente.

"Preciso reparar nisso", disse o pequeno policial, com o olhar abatido.

"Eu quero me desculpar com você, Renan" e Andrés voltou os olhos para mim antes de encarar o amigo, "eu não devia ter contado aquela história com você presente."

Renan olhou para Andrés e sorriu um sorrisinho minúsculo, do tipo que por vezes brincava no rosto das crianças daqui, um sorriso fugaz, carregado (também) das vibrações pesadas daqui. Disse que Andrés tinha feito bem.

"Eu precisava mes saber quem está rodando comigo à noite, Andrés", ele disse.

O assunto serenou. Um silêncio se fez ouvir, em meio ao zumbido de Tinnitus que mais espaço ocupava na cidade a cada dia. Não quero imaginar o que acontecerá quando ele parar. O Sol descia, já ia bem baixo, somente o clarão dele no horizonte. Um por-do-Sol eterno pelo tanto de tempo que já está acontecendo. Poderíamos ganhar dinheiro com turistas bicho-grilos, a fim de presenciar um por de sol de mais de cinco horas aqui em Taurinos.

Um outro zumbido se fez ouvir, se sobrepondo ao zumbido de Tinnitus. Eram Aparecida e Duílio chegando da cidade, a julgar pelo caminho que vieram. Disseram que viram a Polícia Obscura armada na cidade. Renan e os irmãos Conselheiro arregalaram os olhos para o casal.

"Mas como o Anderson pode tá armado quando a gente não tem energia nem pra ficar em pé???", Renan estava perplexo.

"Acho que é só você que não tem energia nem pra ficar em pé, Renan. Seu parceiro nesse ponto parece bem normal, rapazinho", afirmou Duílio, "e ele estava lá no meio da praça, armado, olhando para todo lado. Eu e Aparecida tivemos que dar uma volta enorme pelas ruas de trás pra não passar pela praça. Só de ver ele de longe, de quatro ruas mais abaixo, eu quase bati a merda do carro. Nó, como dizem por aí, ninguém merece."

Nos entreolhávamos enquanto Renan pediu a Duílio para usar o telefone. Ligou para o Souza, perguntou se a Polícia ainda estava na praça. Ele disse que não havia mais nada, nem ninguém na praça. Tivesse ele ficado lá, teríamos de ir desarmar o Agente, o que, no dia de hoje, com esse zumbido que começa a se tornar infernal, nesse novo cenário apocalíptico de Taurinos, equivalia ao prazer que se sente ao se ir a um velório.

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