quinta-feira, 23 de julho de 2009

Éden

Acordei com batidas na aldrava lá embaixo. Eram sete horas da manhã, nem mais, nem menos. Era Guilherme, pedindo que eu me vestisse e viesse com ele. Eu o fiz, e a família Teixeira me levou até a trilha que conduzia ao Santuário. Guilherme pediu que eu esperasse na estrada com seus pais e desapareceu para dentro da trilha. Houve um silêncio mortal entre os três adultos. Um som de motor se ouviu e eram os Conselheiros descendo a estrada nessa direção.

Eles pararam perto e perguntaram como iam as coisas, ansiosos. Aí, juntou mais gente. Anderson, Bruno, "sêo" Danilo. Depois de uma meia-hora, Guilherme emergiu da floresta amparando o irmão. Andrés parecia melhor mas não muito. Nós ajudamos a colocar os dois nos carros. Eles foram embora direto para Varginha, "tô vendo que a nossa vida vai ser levar essas crianças para hospitais pela Eternidade", disse um Duílio soturno olhando pela janela aberta do carro para mim enquanto passava da ré para a primeira para seguir viagem. Eu simplesmente não acreditava no estado em que eles se encontravam. Uma lágrima rolou pelo meu rosto, e outras. Ali eu senti o quanto de apego eu tinha por aquelas criaturinhas em conflito.

Quando me dei conta, estávamos eu e "sêo" Danilo na estrada de terra. Fomos caminhando para minha casa, ele conduzindo o cavalo pela rédea. De longe, ao lado do meu portão, víamos Anderson e Bruno e mais um terceiro cavalo amarrado à cerca. Quando chegamos, não tive como reconhecer minha casa. Nós dois paramos em frente ao portão, assombrados. A visão mais aproximada era a do Jardim do Éden. Pequenos saltos, lagos, paisagens de sonho, pequenas pontes, quase que como um jardim zen japonês. Flores maravilhosas se abriam, oferecendo cores luxuriantes onde beija-flores vinham se banquetear. Vida, vida e mais vida. Anderson e Bruno tinham se apeado dos cavalos e parado em frente ao portão. Nós dois observávamos maravilhados tudo aquilo quando Arthur saiu de trás de uma moita em sua jardineira azul celeste e nos saudou com aquele sorriso luminoso.

"As sementes não eram tão ruins assim, D. Stella", ele falou ainda sorrindo, "elas eram o meu presente para a senhora. Espero que a senhora goste deste pequeno pedaço do paraíso. Criei com muito carinho porque sabia que a senhora iria se importar e resolver o problema no Santuário. Agora eu espero que possa abrir os presentes do Bruno e do Guilherme também, eles levaram um tempão pra escolher e achar."

Arthur finalmente parou de falar. Eu não disse nada. Ficou uma pausa gigantesca. Eu não sabia o que dizer a ele. Ele ficou em suspense, olhando para os outros, sem entender o que acontecia, sem saber o que esperar.

"Ficou mais alguma coisa por fazer, que a senhora precise?", ele atalhou.

"Eu preciso que você tire esse jardim daqui, Arthur."

"Como???", eu relanceei os olhos em volta e só vi expressões de espanto. Estava vivendo um momento delicado. Anderson veio com um deixa-disso e eu disse a ele que não tornasse mais difícil ainda fazer aquilo; que já estava sendo difícil o bastante para mim.

O menino me ouvia estarrecido. Lívido, sem cor nas faces, "mas eu lhe dou um presente maravilhoso assim e a senhora quer que… quer que… quer que eu tire???"

"O jardim é maravilhoso, Arthur. Em qualquer outra circunstância seria um sonho para mim receber um presente desses. Eu me sentiria escolhida pelos deuses e isso seria o paraíso para mim. Mas eu sei o que aconteceu para que esse jardim pudesse florescer aqui e longe de me lembrar o quanto valeu a experiência só vai me lembrar do sofrimento dos dois."

Anderson, "sêo" Danilo e Bruno me olhavam aturdidos. Arthur olhava para eles, e eles devolviam o olhar assustados, como que não acreditando. Ia ter de sentir o quanto é duro recusar um presente por aqui.

"Eu não posso aceitar o jardim da forma como ele foi dado para mim. Se fosse a mesma situação com você e você saísse do Santuário…"

"Eles cavaram aquilo pra eles, D. Stella! Eles! E ainda arrastaram a senhora pra encrenca!!!", Arthur arregalou os olhos para mim como se estivesse prestes a se transformar num bicho.

"Eu sei. Fui a favor do Jardineiro Celeste, achei justa a demanda, mas não concordo com o modo como isolaram os meninos de mim. Com a pressão psicológica que me fizeram ao me fazer achar que a minha casa estava ameaçada de ruir junto com as de duas famílias que conheci de perto por aqui. Não quero ter um jardim que vai me lembrar tudo isso. Quero a minha casa de volta como ela era antes de toda essa confusão, Arthur. Me dói me desfazer de toda essa maravilha, da tua criação, mas esse jardim tem que sair daqui."

Arthur se sentou no chão e enterrou a cabeça entre as mãos. O corpo dele começou a se sacudir. Fiz menção de me abaixar e tentar confortá-lo de algum modo, mas senti um puxão nos dois braços e eram "sêo" Danilo e Anderson me puxando apavorados. Olhei para eles confusa e quando olhei de novo, o jardim não estava mais lá. Nem a cerca espinhosa, nada. Nem Arthur, nem Bruno. Apenas Anderson e "sêo" Danilo ainda me segurando pelos braços.

"Se vocês dois quiserem me largar, já podem."

Em casa, tarde da noite, abri os presentes do Bruno e do Guilherme. As caixas eram estranhamente leves hoje, nem de longe tinham o mesmo peso que senti no dia de meu aniversário. Ao desfazer os embrulhos, foi fácil ver porque: as duas caixas de presente estavam vazias. Joguei as caixas e os papéis no lixo.

Meire apareceu no MSN e me desejou feliz ano novo sem lembrar que o tempo aqui já não era mais o mesmo. Pela webcam, me mostrou os fogos que saudavam o ano de 2011 pela janela de sua casa. Olhei no meu computador. Era dia 23 de julho de 2009. Comecei a chorar sem ter porque. Foi uma noite de merda de um dia de merda. Me despedi e desconectei.

Devia ser quase meia-noite quando ouvi um som de carro lá fora, parando em frente à minha casa. Achei que era Duílio e que vinha me trazer notícias. Sem acender a luz do quarto, fui até a janela e olhei lá fora, protegida pelas cortinas da janela. Não eram os Conselheiros. Era o carro dos Teixeiras. De dentro saltou Guilherme, que fez menção de abrir o portão, mas deu com a casa toda às escuras e não foi além. De fora ele ficou olhando perplexo para a minha casa, a cerca e tudo em volta, sem nada entender.

"Mas você não disse que o Arthur ia por um jardim aí?", era "sêo" Octávio falando de dentro do carro.

"Mas ele ia! Juro que ia, pai… A gente combinou isso!", o pequeno estava aturdido, olhando para todo canto. Entrou, pareceu dar a volta na casa e voltou tão perplexo quanto antes, "mas o que aconteceu aqui???"

"Guilherme, vamos embora que já está tarde", o pai parecia estar ficando bem impaciente, além da frustração de não ver o jardim prometido.

Senti pena do menino confuso e desolado lá embaixo. Mas ele saberia o que aconteceu pelos outros de qualquer modo. Não dei a conhecer a eles que estava acordada. O menino voltou ao carro tão confuso quanto estava ao sair e eu voltei a dormir, ainda incerta sobre se a Polícia iria fazer a ronda hoje por aqui e me acordar novamente.

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