quarta-feira, 22 de julho de 2009

Ferdinando

Abri os olhos. A primeira coisa que vi foi o tampo da mesa, semi-obscurecido pelas sombras dos meus braços cruzados. Ao tentar erguer a cabeça, senti um ligeiro puxão nos cabelos. Puxei os cabelos de volta e ergui a cabeça para olhar. Tinham ficado presos na planta quando caí com a cabeça no tempo da mesa de tanto olhar para a desgraçada.

Ao olhar para a planta novamente, tudo pareceu se esclarecer como seu eu tivesse nascido sabendo. As visitas do Caipora, seus elogios aos meus cabelos, seus conselhos para que eu os prendesse, as estranhas visitas de Anderson, sua pergunta por uma constelação que ninguém mais teria encontrado. De repente, do nada, tudo fazia sentido. Lembrei do Arthur como Oficiante de uma das reuniões no Mithraeum me dizendo que eu estudasse a planta até cair com a cabeça na mesa. Como ele poderia saber a distância exata entre minha cabeça e a planta para que eu caísse com a cabeça na mesa e meus cabelos ficassem presos nela eu nunca vou descobrir. E nem sei se me interessa.

Liguei para a casa dos Feletti. A mãe de Arthur, D. Carolina, atendeu; ele tinha ido a Varginha com o pai. Liguei para Bruno e Guilherme, mas se não estavam em Varginha também, nem por isso se encontravam em casa. Eu estava ansiosa por ver Renan e Andrés livres do Santuário e não podia esperar. Mas achei que infelizmente teria de esperar. Se os "meninos de lá" demorassem a voltar para casa, os dois só sairiam mesmo no dia seguinte.

Pensei em ir à casa de "sêo" Danilo. Era longe, mas melhor que ficar aqui em casa sozinha, remoendo isso. Mas um rumor de cavalo ao longe chamou minha atenção. Era um crescendo, o que indicava que iria passar por minha casa. A uma hora daquelas, se não fosse a Polícia era "sêo" Danilo. Abria porta e fui ao portão olhar na estrada. De longe, eu via o cavaleiro refletindo a luz das estrelas. Os sons da natureza cessaram: era o tempo. Um calafrio percorrendo meu corpo inteiro me avisou que não se tratava de "sêo" Danilo e que se eu continuasse onde estava iria me arrepender. Entrei rapidamente, apagando a luz do alpendre; fechei a porta e os olhos enquanto Anderson passava num galope cerrado, inundando tudo de uma atmosfera baça e terrificante. O galope já ia longe quando reabri os olhos. Voltei ao alpendre. Um outro som de cavalo se fez ouvir. Desta vez era "sêo" Danilo.

"Nó nem vi que tinha ronda hoje, tive que sair da estradinha pra dentro do mato pra não passar pela Polícia, "sá" Stella", ele disse ao se apear.

Ele sorriu e mudou de assunto, dizendo que não precisava muito esforço para ler pela minha expressão que eu tinha finalmente entendido tudo. Eu o abracei, feliz por ter terminado toda essa tortura e ele pareceu encabulado. Achei um amorzinho da parte dele.

"Como a gente tira os meninos de lá?"

"Amanhã liga pro Arthur", o sertanejo respondeu.

"Só amanhã??? Por que não hoje?",

"Não sei se podemos tirar eles de lá. Se eu posso, quero dizer. Não vamos arriscar dar mais problemas agora que tudo está resolvido."

Minha ansiedade por um momento me impediu de ver o quanto ele estava sendo razoável. Sim, mas ele não era o guardião das tradições?

"Conheço as tradições", ele redarguiu, "mas o Jardineiro Celeste tem os seus critérios. Eu me adapto a eles para lhe descrever essas tradições. Não são as tradições que se adaptam à descrição que eu faço delas. Muita coisa do que lhe falei sobre a Polícia Obscura, por exemplo, mudou completamente em poucas semanas."

"As forças pegam as crianças sempre em grupos? Isso também é uma tradição?"

Ele não entendeu minha pergunta. Expliquei que tanto a Polícia Obscura quanto o Jardineiro Celeste eram grupos dentro do grupo "geral" dos sete meninos. Foram tradições que se incorporaram a eles?

"Sim, simplesmente aconteceu assim. Aconteceu porque aconteceu. E porque cada um tinha um temperamento voltado pra alguma coisa que tinha relação com isso. As forças da natureza de Taurinos utilizam essas crianças para se manifestar e conversar fisicamente com a comunidade. Agora, se é em grupo sempre, não sei. Pelo menos por enquanto, eu não sei."

Falei de como Anderson tinha visto a si mesmo e ele disse que eu já tinha lhe contado isso. Perguntei se contei também que ele tinha vindo aqui me dizer que se viu armado e vinha tendo pesadelos com isso. O sertanejo me olhou, os olhos cheios de assombro.

"Creio em Deus padre", e ele se persignou, "armado ainda por cima?"

"Eu não o vi armado na Cachoeira dos Chifres, "sêo" Danilo."

"Sorte sua, sô!"

"Não, quero dizer que me pareceu estranho que ele se visse armado ali e eu não."

Ele ficou pensativo por um momento. Falei a ele de Anderson ter vindo à noite e de como ficamos olhando o céu e dele ter perguntado por uma constelação que tinha cabelos no nome e como tudo era relacionado e direcionado para o assunto.

"Anderson não parecia saber que motivo havia em olhar para o céu, "sêo" Danilo. O senhor não acha isso estranho nas pessoas daqui?"

"Não. As pessoas em Taurinos estão preocupadas em continuar existindo amanhã e talvez até semana que vem. Os mineiros daqui não são como os outros. Não se deixam envolver pela natureza do lugar. Como touros, olhando para o chão, atrás daquilo que pastam. Não são como o touro Ferdinando, contemplando a beleza das coisas."

Eu tive pena do menino por uns momentos. Lembrei de Renan, ele mesmo sem ideia do porque daquele céu sobre a sua cabeça. Pobres crianças estranhas desta cidade tão estranha quanto.

"Isso acontece com "os meninos de lá"?"

"Não entendo o que a senhora quer dizer com "os meninos de lá"."

"É como Aparecida chama o Arthur, o Guilherme e o Bruno."

"Isso acontece com todos eles. Eles são uma coisa, as energias que eles direcionam são outra. Embora num aspecto dele que é a Polícia Obscura, esse aspecto carrega toda a energia do Anderson, por exemplo, a energia das emoções dele e da personalidade dele, Anderson Nascimento Caldeira que é brasileiro, mineiro e nativo de Taurinos. De modos que não dá pra separar muito a coisa."

"Renan um dia me disse algo parecido."

"É, "sêo" Renan é meio estouvado, mas do jeito dele, sabe muito."

Som de um cavalo ao longe, vindo nessa direção. "Sêo" Danilo disse que provavelmente era a Polícia. Eu já me preparava para entrar e apagar a luz do alpendre quando "sêo" Danilo se deitou no chão e postou o ouvido próximo ao solo sem encostar; me disse que Anderson não estava armado. O som do galope cresceu e o cavalo entrou em nosso campo de visão. Era Anderson, ainda de preto, mas felizmente desarmado. Ele chegou e se apeou do cavalo, sorrindo e nos cumprimentou.

"Noite, D. Stella! Noite, "sêo" Danilo!"

Ele disse que a noite passada olhando as estrelas fez bem a ele. Não teve nenhum pesadelo depois da contemplação do espaço. Disse que nunca tinha parado para apreciar toda aquela beleza e que se sentia bem como nunca tinha se sentido. Fiquei feliz por ele e disse que eu também tinha resolvido um problema. Ele me deu um abraço espontâneo, parecendo feliz por eu ter encontrado a solução.

"Você também sabia o que era, Anderson?"

"Acho que até o prefeito já estava sabendo, D. Stella."

"É como eu lhe disse, "sá" Stella, era a senhora quem tinha de descobrir. Podia até o povo de Varginha e região saber, mas só a senhora podia destrancar essa história."

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