quinta-feira, 16 de julho de 2009

Cigarros

Eu levo a planta para todos os lugares que vou dentro de casa. Sempre havia um lugar separado para que eu pudesse por a planta e me perder em seus mistérios. A bola estava comigo. Os meninos dependiam de mim. A ajuda que prestei ao Arthur anteontem foi revertida em responsabilidade para mim. Eu, que entrei de gaiata nessa história. Os meninos nunca mais me levariam a lugar nenhum sem que eu perguntasse antes ao "sêo" Danilo se era seguro.

O som da tesoura de grama lá fora me distrai da contemplação da planta. Olho pela janela e lá está meu jardineiro que tenho de aturar até o fim dessa merda toda. Tomei café tranquila hoje, nada de meninos em jardineiras azuis me pedindo isso ou aquilo. Arthur já tinha percebido que não adiantaria me pedir nada a não ser a tesoura de grama.

Passei por ele indo para a Taurinos e ele me deu bom-dia com aquele sorriso luminoso que parecia final de anúncio de pasta de dente. Não lhe dei confiança. Me afastei enquanto o som da tesoura de grama ia sumindo na distância de um quilômetro e mais que me separava da fazenda Taurinos.

Aparecida me disse que a temporada no Santuário mal começou e os dois já brigaram. De olho roxo e tudo. Ela achava que talvez fosse o estresse. Eu achava que talvez fosse uma rixa.

"Fui lá levar comida para eles, estamos revezando, nós e os Teixeiras", ela explicava, "Andrés disse que o Renan chora a noite inteira quase, que judiação… Eu fico com o coração apertado, mas o que fazer? Eles são duas pestinhas mesmo, tem como ficar livres dessas encrencas?"

Duílio disse que eles já estão bexiguentos de tanta marca de mosquito e ficam ainda mais estressados com isso. Lembro deles terem dito que por causa do sino todos os animais estavam buscando refúgio ali. Isso incluía mosquitos, moscas, lagartos e cobras.

"Os dois perguntaram como a senhora está, D. Stella. Contei o que eu sei que tem acontecido por aqui e eles já sabem que a senhora tem que se lembrar do que aconteceu. Andrés até lembrou da vez em que a senhora não conseguia lembrar da sua parte na cerimônia e ele ficou desanimado que só. Me deu uma pena danada do meu caçulinha, mas também me deu uma vontade danada de tirar sangue dele com a cinta."

Não fosse ele o bom e velho Duílio e suas propostas para uma educação melhor. Vou recomendar Duílio como pedagogo numa escola Waldorf. Seria um grande avanço para ele, mas com certeza um tremendo retrocesso para a pobre Waldorf (que inclusive nem tem nada a ver com isso).

Duílio disse que estranhou que o mesmo efeito que se produziu em nossas casas não se reproduzia em todos os lugares. Segundo ele, tudo estava calmo, não havia uma atmosfera geral de conflito dentro da cidade, como no tempo do Grande Um na Lei dos Touros, ou o problema de Tinnitus ou mesmo a minha volta para Taurinos, verdadeiro marco zero para a cidade. Era como se o problema estivesse restrito ao Conselho desta vez. Ouviam-se comentários na rua, mas não era nem de longe frequente.

Achei que ele tinha razão. Não que eu estivesse indo muito à cidade ultimamente, mas realmente não se sentia a mesma atmosfera estranha em todos os lugares. Os lugares por onde passei na noite em que ajudei Arthur não pareciam ter nada diferente do que normalmente tinham. O conflito parecia estranhamente ser mais regional do que geral, embora a questão da reserva biológica fosse séria e passível de afetar a toda a comunidade taurinense.

"Fico me perguntando qual a do Bruno nessa história. Essa questão do aniversário dele. Outra pergunta daquelas que vão ficar sem resposta?"

Quando eu fazia esses questionamentos na frente deles, nunca sabia o quanto o casal conhecia do organograma das instituições locais. Aparecida fazia salgadinhos e guloseimas para reuniões da turma da Câmara Externa da Sociedade Antiga dos Taurinos, que era nada mais que um clube social afeito a torneios de tranca e de truco, como se fosse um Rotary Club local. No entanto, ignorava a multiplicidade de instâncias, instituições dentro da Sociedade. Ela fazia o sinal-da-cruz quando ouvia falar na Polícia Obscura (bom, até aí morreu o Neves) e coisas do gênero. Sempre me achou completamente louca, sei que gosta de mim como amiga, mas sempre me achou louca varrida.

E "sêo" Danilo apareceu à tarde. Eu estava estudando aquela maldita planta quando ele pediu licença e entrou. Ficamos tomando café, comendo pão de queijo e olhando a planta.

"A senhora não larga essa planta desde a reunião do Conselho. Precisa sair um pouco. Ar livre é bom também, faz pensar."

"Eu tenho que olhar a planta, "sêo" Danilo, não dá pra ficar pensando em sair com os dois presos dentro do Santuário. Agora, a bomba toda ficou na minha mão, como quando eu tive que me lembrar daquela cerimônia na Lei dos Touros, não?"

"Mas precisa relaxar um pouco, de cabeça quente não se pensa nada direito, "sá" Stella", ele insistiu, "conheço um lugar bonito que nem o Santuário, e que não tem problema nenhum de ir."

Lembrei que Aparecida tinha mesmo me dito que ele conhecia muitos lugares bonitos aqui. Mas eu me via obrigada a olhar aquela planta idiota até que minha memória começasse a doer.

"É só uma volta, depois a senhora olha mais um pouco. De vez em quando tem que parar, senão que adianta, perde toda a atenção. Vai ver como pelo menos vai estar mais relaxada quando voltar."

De longe, se ouvia o ruído do curso d'água passando por dentro da mata. Caminhamos um bom trecho para chegar até aqui. Esse curso, segundo "sêo" Danilo vinha de lá do Santuário que era a origem de toda a água da cidade. Toda a água saía das torneiras de Taurinos vinda de lá, sem cloro ou outras porcarias modernas de tratamento. Água pura da montanha em seu estágio mais puro e virginal.

"Por isso eu não posso deixar de dar razão ao Jardineiro Celeste, se deixar essa água se contaminar, que vai ser de nós aqui?"

Fiquei em silêncio, pensando que eu era a própria fonte de contaminação da cidade. A sensação de se ser um ser sujo. Um elemento contaminante de alta letalidade. Afastei o pensamento que me atormentava e que talvez me fizesse alguém muito diferente do que eu era quando cheguei a Taurinos. Me pego pensando, que como na canção mineira, nada seria como antes.

O lugar era mesmo deslumbrante, quase como o Santuário, mas sem toda aquela majestade. As libélulas eram curiosas como da outra vez, suas cores tão vibrantes quanto. As borboletas passavam em voos graciosos e cores inimagináveis. Flores maravilhosas, orquídeas, bromélias, toda uma riqueza natural que custava a crer num lugar tão dominado pelo cerrado, ambiente mais rústico, mas igualmente belo.

Nos sentamos e ficamos conversando. Ele disse que achava que a proposta do Jardineiro Celeste visava despistar. Se somente eu poderia ajudar os dois, isso visava fazer com que eles parassem de procurar e aguardassem até que eu dissesse onde estava? Ou eles acabariam procurando também e com isso ganhariam tempo?

Não queria nem pensar nisso. Apenas em que eu tinha o abacaxi nas mãos para descascar. Ficamos em silêncio por algum tempo, até que os sons da mata foram se acalmando de uma forma gradual e inesperada. Eu ia fazer um comentário a respeito, mas "sêo" Danilo me pediu que eu ficasse quieta e escutasse com atenção.

Um assobio. Agudíssimo, distante, mas dentro da mata. Depois, o silêncio. Nada. O sertanejo olhou para mim e novamente pediu silêncio. Um outro assobio, mais próximo.

"Que pássaro é esse?", perguntei, encafifada.

"Isso não é pássaro, "sá" Stella."

"O que pode ser então?"

"Muita coisa e nada muito interessante", ele disse, apurando o ouvido e olhando em torno.

Um outro assobio mais próximo se fez ouvir. Parecia indicar uma direção. Comecei a procurar a origem do som. Me afastei de "sêo" Danilo e comecei a andar em volta. Ele me disse que talvez fosse melhor que fossemos embora ou para um outro lugar.

"Ah, a gente poderia ir ver o que é. O senhor tem certeza de que não é um pássaro? Então é um saci assobiando? Curupira?", eu ri.

Ele ficou sério. Não gosto quando ele olha assim. Dá impressão de encrenca por perto. Ele disse que esses eram nomes que o povo dava para uma série de entidades que viviam na floresta. E que eles apareciam conforme as pessoas imaginavam.

"Curupira quando aparece nas matas é um menino de pés virados para trás. Então quem segue o rastro dele está na direção oposta a dele e fatalmente vai se perder na floresta. Às vezes, aparece montado num veado segurando uma vara de japecanga, que é uma planta medicinal depurativa do sangue e diurética… Escute!"

Um outro assobio mais próximo ainda se fez ouvir. Ele sugeriu que começássemos a voltar quando ouvimos a voz de Anderson dentro da mata, ""sêo" Danilo! Tá perdido aí?"

Fiquei aliviada. Era apenas o Anderson. Como teria nos encontrado aqui? Ele saberia da predileção de "sêo" Danilo pelo lugar? O próprio "sêo" Danilo me respondeu a pergunta, "como é que o Anderson sabia que a gente ia estar aqui? E o que é que quer o Anderson pra esse lado de Taurinos? Hoje é quinta-feira, Anderson tá trabalhando a essas horas na loja dele, "sá" Stella!"

""Sêo" Danilo! Tá perdido aí? Por aqui, "sêo" Danilo!", a voz gritava na distância.

"A senhora consegue distinguir de que lado está vindo a voz?"

Eu estava nervosa. Não tinha parado para pensar que até isso poderia acontecer. Coisa que se esquece nas aulas do primário sobre folclore, peças que você achava pertencerem a um museu da cultura popular de repente ganham vida no meio de uma mata.

"Dali. Não foi dali que viemos?"

"Eu não sei mais, "sá" Stella."

"Mas o senhor é mateiro, como pode ter esquecido de que lado viemos?"

"A mata fechou em círculo, "sá" Stella. Como eu disse que aconteceria se os meninos tentassem fugir do Santuário, lembra? Está acontecendo com a gente agora."

""Sêo" Danilo! Por aqui, "sêo" Danilo!", a voz gritava agora mais próxima. Achei que vinha de trás de nós e disse isso a ele. Ele então me puxou para que fossemos os dois na direção oposta a do som. Outro assobio fortíssimo se fez ouvir. O silêncio era angustiante, só era quebrado pelo som de nossa voz, da outra, pelos assobios e pelos nossos passos sobre as folhas secas no caminho.

"Acho que reconheço essa árvore… já não passamos por aqui?"

Na verdade, me pareceu que era a segunda vez que passávamos por ali. Ele tinha razão. estávamos andando em círculos. Comecei a querer entrar em pânico. O medo ancestral de se estar perdido em uma floresta me dominou. "Sêo" Danilo me disse que nós tínhamos de pensar com a cabeça, não com nosso medo.

""Sêo" Danilo! Por aqui, "sêo" Danilo!", a voz gritava agora mais próxima e agora parecia vir da frente. Meu Deus, parecia vir de qualquer lado.

"Sêo" Danilo pediu que nós nos sentássemos e rezássemos. Perguntei a ele que perigo tão grande poderia se aproximar e nos por rezando no meio de uma floresta. Ele disse que a reza afastava as más influências desde que a ajudássemos com a força da imaginação. Imaginar por exemplo que as vozes e assobios cessam e que o caminho se abre para sair da floresta.

À medida que rezávamos a voz de Anderson chamava, cada vez mais perto, alternando com os assobios. Em dado momento, o assobio e a voz pareciam vir de direções opostas, mas em comum se aproximavam cada vez mais, vindo diretamente para a clareira onde nos encontrávamos. A reza não pareceu adiantar. O sertanejo então disse que eu fechasse os olhos e não olhasse, e não deixasse à vista as minhas unhas, não importava o que acontecesse. Disse que não era como na Polícia Obscura, que eu não tentasse olhar de jeito nenhum. Assim ficamos enquanto a voz e o assobio se aproximavam.

Isso levou uma eternidade angustiante. Tentei dizer algo, mas "sêo" Danilo chiou, me impedindo de falar. Ouvimos o som do mato estalando na trilha que vinha para cá. Fosse o que fosse, já estava em cima. Não poder ver me angustiava mais que tudo. A ignorância das trevas momentâneas dos meus olhos cerrados. Os passos pararam do nosso lado. Houve um silêncio mortal, quase que um minuto dele enquanto estávamos sentados ali, de olhos fechados.

""Sêo" Danilo, "sêo" Danilo… Passeando. Fazendo uma higiene mental, não é? De olhos bem fechados… Pois é, o senhor é que sabe das coisas. Sabe que tem que ficar de olhos bem fechados porque senão eu assusto. O senhor sabe bem o quanto de coisa tem nessas florestas daqui. O senhor sabe. Agora o senhor espera mais um pouco e abre seus olhos."

Isso levou mais uma eternidade angustiante. Houve um outro silêncio mortal, até que os sons da mata começaram a voltar ao nosso campo de audição, mas como que vindos de uma direção diferente. A luz começou a aumentar e uma sensação de calor também.

"Abre os olhos, "sá" Stella."

"Já posso?"

"Pode, não tenha medo."

Abri os olhos e estávamos sentados na estrada de terra principal, em frente à trilha que levava ao trecho de floresta onde tínhamos estado poucos instantes atrás. Que viagem para uma tarde. "Sêo" Danilo se ergueu e me ajudou a fazer o mesmo. Pareceu disposto a sair dali o mais rapidamente possível.

"No inverno", ele explicou, "os dias são curtos, a noite pode nos surpreender ainda aqui nessa região e aí a gente nunca sabe."

Enquanto caminhávamos, perguntei a ele sobre o incidente. Ele pediu que esperássemos até que nos pudéssemos estar um pouco mais distantes dali. Noto que, como Renan, ele não parecia disposto a comentar as coisas acontecidas quando acabavam de acontecer, como se houvesse radiação ainda ali, com potencial para causar dano ainda.

Muito tempo depois quando já não estávamos muito longe de minha casa, ele me contou que muito tempo atrás ele fumava e que estava naquele trecho de mata fumando um cigarro de palha, quando um homem que ele nunca tinha visto na cidade entrou na clareira e lhe pediu um cigarro.

Ele disse que sabia quem era o homem, mesmo sem nunca tê-lo visto antes. Sabia o que a aparição dele ali do nada no meio da mata e o pedido de cigarro significavam. Ele disse que não tinha o cigarro, só o que estava fumando. Ofereceu uns tragos ao homem, mas quando olhou novamente era uma coisa tão medonha que o deixou cego por uns minutos. O homem mandou que ele fosse embora daquela mata e não aparecesse por muito tempo.

"Ele sabia seu nome direitinho, "sêo" Danilo, era ele ali na mata?"

"Era", o sertanejo confirmou quando chegávamos ao alpendre de minha casa. Fiz café e conversamos um pouco mais. Fui até a sala acender a luz do alpendre. A noite caía com sua manta de breu lá fora. A planta estava ali na cozinha, quieta como sempre, prenhe de mistérios.

"Quando foi que isso lhe aconteceu?"

"O que aconteceu?", ele tentou recapitular.

"A história do cigarro."

"Ah, sim, eu tinha uns trinta e poucos anos."

"Nossa, e ele tem uma memória, eh? Tantos anos e não esqueceu."

Ele ficou em silêncio. E eu o segui. Houve uma pausa enorme, só os sons da noite em volta da casa se ouviam. Fiquei olhando a planta e o mundo de coisas que ela sugeria. Eu estava pensando mais do que tudo em que olhar essa planta ajudaria no que quer que fosse.

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