quinta-feira, 25 de junho de 2009

Tinnitus

Renan estava dormindo no sofá. Novamente. Pela terceira vez em duas semanas. Eu duvidava que ele tivesse energia para subir a escada e ir dormir em seu quarto. Eu o acordei e perguntei se ele não se sentia bem no quarto dele. Ele mesmo tinha insistido em ficar lá.

"Você não quer mudar mesmo para o quarto maior?"

"É cansaço, tem noites que eu não dou conta de subir a escada."

Faz hoje um mês que ele se mudou para cá. Eu tentei convencer sua família a aceitá-lo de volta, mas qual o que. Se isso um dia vai acontecer, vai demorar. Nem tenho visto os Teixeiras ultimamente. Nem mesmo Guilherme aparece para uma visita, um dos membros da Sociedade mais agarrado comigo além de seu irmão caçula. Com Renan morando comigo é como ter o filho que eu nunca tive, com todos os problemas de se ter um filho e nenhuma das coisas boas que isso significa. Quando ele me atazanava demais, eu o chamava pelo nome completo. Ele via que tinha extrapolado algum limite quando eu fazia isso.

Liguei o mp3 nas caixas de som da sala. Deixei correr o aleatório como de costume.

"Eu tento dizer adeus e engasgo; tento ir embora e tropeço. Embora eu tente esconder, é fácil de ver: meu mundo desaba se você não estiver por perto."

Eu Tento, gravada por Macy Gray escrito por Macy Gray, Ruzumna, Jinsoo Lim e David Wilder, em On How Life Is, 1999, Epic Records

Adoro Macy Gray, ela tem uma voz rouca, diferente das divas que andam pululando por aí. Renan parece não ter a mesma opinião e me pede para tirar a música. Há uma urgência no pedido dele que me deixa encafifada. Por que ele reagiria assim a uma música tão agradável?

"Por que quer que eu tire? Não gosta desse tipo de música?"

Ele não respondeu, mas os olhos dele foram marejando à medida que a música avançava. Notei a tristeza funda dele, tirei a música. Me lembro de uma música que minha mãe, em seus últimos tempos, me pediu para tirar uma vez, "Viagem", de Baden-Powell. A princípio, pensei que ela não tivesse gostado da música, mas vi que a melodia a tocava tão fundo que ela não conseguia lidar com aquela emoção. O mesmo parecia estar acontecendo com Renan naquele momento.

Ele passou a tarde inteira olhando para o nada. Houve um momento em que eu não consegui mais aguentar aquele silêncio. Não queria fazer o menino ficar triste, mas não queria perder a liberdade de fazer o que quisesse em minha própria casa. Pensei em como ter filhos era de certa maneira abdicar dessa liberdade. Pensei em como ter Renan em casa era ter um filho da mesma idade para todo o sempre.

Pensei então que seria considerada como a criadora dele e obrigada a retê-lo por aqui pelo tempo que viesse. Mas se fosse assim, toda a cidade teria de vir morar em minha casa, já que criei tudo por aqui. Andrés, os outros seis meninos, "sêo" Danilo, Zé das Profundezas, o prefeito, todos.

"Tem gente de fora na cidade e entrou hoje", me disse Andrés um pouco mais tarde quando deixei Renan em casa e fui caminhar até a Taurinos, "pensei em ir avisar o Renan, mas ele sempre sabe disso antes de mim. Não tenho visto o Anderson esses dias, mas ele sabe também. Se o Renan sabe e até agora não se levantou do sofá, então não sei; realmente tem algo de estranho acontecendo com ele…"

"Renan está morrendo", Adriano tinha um olhar sério que me assustaria se eu não soubesse que morte era agora algo proibido em Taurinos, "sei que agora ninguém mais morre em Taurinos, mas como a senhora já disse tem coisas que são muito piores que a morte. Como aquilo que aconteceu com o Bruno."

"Quanta besteira", disse Andrés, como de costume fulminando o irmão mais velho com o olhar.

"Não acho que seja besteira não", eu o contradisse, "acho que Adriano tem razão. Tem uma semana que Renan só fica jogado no sofá, olhando para o nada. Como se estivesse mesmo morrendo por dentro. Como se estivesse se tornando nada mais que um pedaço de pau sem vida."

No final da tarde, quando retornei, Renan tinha saído. Fui aos fundos da casa. O primeiro cavalo que vi foi o palomino, mas só havia dois cavalos pretos. Tinha ido fazer a ronda, decerto. Dei de agora ficar com o coração apertado das saídas dos dois e principalmente as dele. Qual o próximo passo, levar merenda para os policiais de plantão? A Polícia Obscura não era força que se abordasse à noite (ou a qualquer hora do dia) para se levar café, rosquinhas de leite e pão de queijo.

Adriano apareceu à noite. Veio — segundo ele mesmo disse — filar um cafezinho. Ele nunca tinha realmente aparecido para um café (mesmo tendo construído a casa com o pai), então fiquei contente com sua visita. Ele se colocou à minha disposição para qualquer conserto que a casa precisasse, com exceção da fechadura da sala.

"Não sou chaveiro; o Anderson é quem entende disso", disse ele sorrindo.

"Bom, desde que o Anderson se tornou meu inimigo, acho que nem pagando ele vem arrumar essa porta."

Adriano ficou sem-graça e mudou de assunto. Perguntei a ele do irmão mais novo, ele disse que Andrés estava na Internet. Notei um estranho zumbido em meus ouvidos. Como um tinnitus. Perguntei a Adriano se podia ouvir. Já esperando ouvir um "não", eu que tive problemas sérios de audição recentemente, fiquei espantada ao receber uma resposta afirmativa. Depois não ouvíamos mais o ruído ou nos acostumamos com ele. Ficamos conversando um tempão que não nos preocupamos em medir até que um som de cavalos se fez ouvir ao longe. Adriano teve o semblante crispado. O som de cavalos à noite o deixava francamente desconfortável. E me deixava francamente desconfortável também, tenho que dizer.

Os cavalos vinham em trote pela estrada. Definitivamente não era mais um dos galopes desabalados da Polícia Obscura. Só que os cavalos pararam em frente à minha casa. O ar ficou pesado como eu já conhecia, embaciado, morto. Eu sabia o que havia lá fora. Adriano fez o sinal-da-cruz, "creio em Deus Padre", ficou tremendo como vara verde. Eu tive calafrios por todo o corpo quando ouvi as cinco batidas fatais na aldrava da porta da frente.

"Quem está aí?", pergunta clássica dos que vivem em isolamento no meio do mato. Como se eu não soubesse quem eram.

"Sou eu e o Anderson, D. Stella", a vozinha minúscula lá fora respondeu, parecendo distante da porta.

"Adriano está aqui e está bem assustado. Vocês não estão…"

"Não tá ouvin'o minha voz? A gente tá "normal", D. Stella, agora abre, por favor!", a vozinha soava mais impaciente e irritada agora.

Por que eles não entravam? A porta nunca ficava trancada, apenas fechada, isso não era segredo para ninguém (o que deveria me causar insegurança mas estranhamente não causava).

Abri e descobri o porque. Os dois estavam escornados na coluna do telheiro do alpendre. De uniforme preto, coberto de sangue, como os tinha visto tantas vezes, mas agora era diferente. Os dois tinham um olho roxo cada um, vários hematomas no rosto e, eu logo iria descobrir, em partes do corpo também. A falta de energia que eu vinha notando em Renan agora podia ver também em Anderson. Ainda por cima, eles pareciam doentes. Adriano me ajudou a colocar os dois no chuveiro. Anderson nada dizia; apenas olhava para nós, olhos vítreos e estáticos. Aparentemente não tinha energia nem para falar. Renan também estava em silêncio debaixo do chuveiro. Tivemos que dar banho nos dois, eles pareciam nem conseguir se mover. Colocamos um roupão em Anderson e o pusemos na cama do quarto grande. Trocamos a roupa de Renan e o pusemos em sua cama. Levamos as botas para a área de serviço, jogamos os uniformes na lavadora. Quando terminamos, Adriano e eu estávamos exaustos. Não era apenas o trabalho que deu. Havia algo mais.

"Os dois tiveram uma briga violenta", declarou Adriano olhando para mim, "dá pra ver pelos machucados todos."

"É, a ronda deve ter sido das…"

"Que ronda nada, D. Stella, os dois se pegaram foi de pau depois da ronda, isso sim", ele rolava os olhos na minha direção como se me visse no topo de minha santa ingenuidade. Não era uma crítica ao garoto, mas ser considerada ingênua logo pelo Adriano para mim era o fim da picada. Mas concordei que só poderia ter sido isso. O estado dos dois, os uniformes repuxados e amarrotados (se bem que não rasgados) não deixavam margem para muitas dúvidas.

Eu ia ligar para Andrés, mas ele era o tipo de sujeito que dispensava a comunicação telefônica na maior parte das vezes. Sua comunicação com a cidade de Taurinos era direta e às vezes invejável. Ele apareceu do nada batendo na porta. Ficamos eu, ele e seu irmão conversando e tomando café com broas de milho.

"O diabo é que para os dois se juntarem eles acabaram se separan'o. Essa zanga entre os dois está destruindo a Polícia, D. Stella."

Andrés parecia realmente preocupado debaixo de sua habitual capa de frieza e cálculo. Isso me deixou preocupada também. Quando ele deixa isso transparecer, é porque algo realmente o inquieta. Nunca sei quando essa cidade é pior, se na calmaria ou no meio da mais insana violência.

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