sexta-feira, 26 de junho de 2009

Café e violinos

Guilherme bateu a porta hoje. Entrou com seu violino dentro de um estojo que o fazia parecer tanto um músico quanto um gangster. Perguntou pelo irmão caçula. Eu disse que ele estava fraco assim como Anderson. Ele perguntou se os dois tinham feito ronda na noite passada. Eu disse que eles nem conseguiram sair da cama, quanto mais fazer ronda. Novamente, o zumbido em meus ouvidos. Perguntei ao menino se ele podia ouvir. Guilherme fez que sim com a cabeça. Havia momentos em que o tinnitus parecia desaparecer ou éramos nós que o esquecíamos em algum canto remoto de nossa cabeça.

No quarto, Renan pareceu apreciar a visita do irmão, mas não esboçou sorriso. A fala era mansa e pastosa. Eu estava assustada com aquilo. Guilherme pareceu sombrio e tristonho ao ver o irmãozinho daquele jeito. Aguardava Alberto chegar e me perguntava se veria os Teixeiras.

"O pai não vai vir. Ele disse que o que a senhora decidir está decidido", avisou Guilherme assim que saímos do quarto.

"Guilherme, eu não posso tomar decisões sobre a vida do seu irmão. Ele tem pai e tem mãe."

"Ele não tem mais. O pai deserdou ele."

Guilherme montou em seu cavalo e desapareceu. Provavelmente tinha combinado tocar seu violino em algum outro lugar. E eu que nunca soube que ele tocava violino. E os pais dessa criança no quarto lá em cima?

Donana apareceu mais tarde, viu o filho adormecido. Fiquei observando a reação dela. Ela parecia triste e amargurada. Antes que começasse a chorar e o acordasse, eu a tirei do quarto. Nos sentamos na cozinha onde passei um pouco de café.

"Ninguém está feliz com essa situação, D. Stella", ela me disse com o semblante cansado e carregado assim que se sentou comigo à mesa, "a gente vê que o Guilherme está sofrendo, que o Octávio está sofrendo…"

"E a senhora? Está sofrendo?"

"Acho que só não tanto quanto o Renan. Eu quero meu bebê de volta, D. Stella. Mas…"

"Mas…?"

"Tem um monstro dentro dele. Ele se transforma numa coisa horrível e faz coisas horríveis à noite. Isso não é vida… Isso não é viver…"

Achei que ela estava se guiando pelos conceitos de moralidade e normalidade que regiam a minha sociedade anterior. Fiz ver a ela que as circunstâncias em torno do que uma vida decente e pacata pode ser em Taurinos são muito diferentes das da cidade onde eu vim.

"Aos poucos, começo a entender que o conceito de bem e mal que eu tinha herdado da minha cultura não encontra aplicação aqui, Donana. Seu filho é um guerreiro poderoso, não é alguém que vá se esconder no fundo de um maleiro e esperar que o céu desabe sobre ele. Ele é esse monstro horroroso saído das visões mais grotescas do Inferno, mas ele é também o seu bebê fofinho, parecendo um ursinho, alguém que precisa ser abraçado, beijado como qualquer criança. Ele é, principalmente nesse sentido, uma criança como qualquer outra que já conheci. Um menino esperto, inteligente e saudável. Acho que você e "sêo" Octávio deveriam, ao contrário, se orgulhar dele."

Donana começou a chorar. Era evidente que não conseguia suportar ficar separada do filho. Era evidente que não sabia o que fazer para consertar a situação. Dei café a ela, ela pareceu melhor depois de alguns goles. Som de um carro parando em frente à minha casa. Era Alberto, que vinha saber do filho. Foi uma tarde carregada com os dois aqui em casa. Alberto começou a chorar também, pelo mesmo motivo: porque seus filhos eram monstros horripilantes, etc, etc. Sei que é difícil para os pais aceitarem certos traços da personalidade de seus filhos (especialmente esses traços saídos das profundezas do Inferno). A "realidade" de Taurinos é tirana, no entanto: força um tipo diferente de viver. Algo que eles vêem como mau e que era visto como mau em minha cultura passada. Na minha cultura presente, não é pior que matar para comer e sobreviver.

Mais tarde, Aparecida e Duílio apareceram para saber se eu precisava de algo. Encontraram Anderson sentado calado em frente à TV. O ferreiro os cumprimentou com um meneio de cabeça, talvez o máximo a que ele pudesse se permitir naquele momento. Renan estava comigo na cozinha mas nem levantou a cabeça para ver quem vinha entrando.

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