sábado, 30 de maio de 2009

Dia de celebração

Ninguém em Taurinos perderia a Festa da Cidade. Foi grande a festa para uma cidade tão pequena. Ninguém ficaria em casa naquela noite, então porque eu? Era o último dia de Meire em Taurinos, então achei que merecíamos ao menos uma despedida decente. Ela estava indo embora para sua casa na boa e velha Santos, terra de minha infância e juventude.

"Você pode não acreditar", eu disse a ela, ao chegarmos à sede da prefeitura de Taurinos, "mas acho que em Santos não vão ter se passado mais que cinco minutos desde o dia em que você chegou aqui até o dia em que vai embora."

"Você tem razão. Eu não acredito nisso, Stella" e nós duas rimos, embora ela tivesse visto em meus olhos que eu não tinha dito aquilo de brincadeira. Ela me olhou séria e me disse, com todas as palavras, "eu quero vir para cá quando eu morrer. Se vocês acharem que eu posso ficar."

"Meire, isso aqui é o Inferno, isso não é brincadeira.", eu fiquei levemente irritada com ela.

"Eu sei disso, Stella. E é por isso que eu estou falando sério."

"Agora é minha vez de dizer: eu não acredito nisso, Meire."

"Eu tenho o palpite de que você vai ter a eternidade toda para se surpreender, minha amiga" e ela sorriu, me deixando desconcertada. Eu não tinha tido escolhas, mas… e quanto a ela?

Na Festa, todos nós juntos novamente. "Sêo" Danilo, Bruno, Adriano, Anderson, Andrés, Arthur, Bruno, Guilherme, eu e Renan Augusto. A Sociedade Antiga dos Taurinos unida mais uma vez, desta vez para uma noite mais agradável que tudo o que vínhamos vivendo juntos. Uma noite para relaxar, para traçar metas — se é que muitas poderiam ser traçadas na nova realidade em que vivíamos — para conversar, comer, beber e para ouvir música.

Mas, para não se perder o costume neste paraíso terrestre que é também um vale de lágrimas muito ao seu modo, os olhares de Renan para a família que o renegou e para o amigo que o renegou me comoviam. Eu passei a semana em conversações com "sêo" Octávio e Donana. Ela parecia mais flexível que o marido, mas só o tempo resolveria essas feridas. Naquele momento, eu não tinha muito a fazer senão acolher o pequeno renegado em minha casa pelo tempo que viesse.

Do terraço do Salão de Recepção da Prefeitura, ficamos olhando a noite lá fora, eu e Andrés. Bruno se aproximou e ficou conosco. A visão do mundo lá embaixo era deslumbrante. Eu sempre quis ver as coisas de cima e acho que este desejo meu se realizou de um modo que eu não esperava. Simplesmente não esperava. Olhando para trás, com tudo o que vivi, vi acontecer e tomei parte fundamental, penso que sobrevivi à minha própria morte. Eu estava tão viva, afinal, quanto todos desta cidade. Me agarrei ao que já conhecia. Talvez fosse o meu medo do desconhecido, medo tão grande que nem o medo da morte o superava. Todos gostariam de viver para sempre, pensei eu. Mas quando se vive para sempre, pelo que é que se vive afinal? Pelo eterno medo do desconhecido? Pelo eterno medo da solidão?

Taurinos era nossa para sempre, agora. Com suas paisagens paradisíacas, com suas casinhas de telhas feitas nas coxas, sua arquitetura colonial, seus costumes medievais e draconianos, sua tecnologia de ponta; agora era toda nossa. Com seus mistérios que nunca haveriam de acabar, com a incerteza do grande grão vizir a meu lado, Andrés, eternamente o portador da luz, eternamente o sábio calado que a tudo observava e nada dizia. Com Bruno, eternamente em saudável dúvida sobre mim e sobre todas as coisas, com Arthur, cuja coragem foi homenageada em coro pelos moradores da cidade presentes em peso à celebração. Afinal, achou de servir à cidade mesmo depois de morto. Pensei que eu tinha acabado fazendo a mesma coisa. Éramos gêmeos no que tínhamos tido de passar por Taurinos. Andrés é também alguém a se respeitar na cidade. Tudo o que aguentou calado enquanto seu grande plano de sobrevivência era executado me fez pensar em como era grande o apego de alguém mais pelo pouco de vida que se conseguiu conquistar.

Agora, olhando tudo isto aqui de cima, cercada pelos meninos todos que acabaram nos descobrindo aqui no canto do terraço enorme, vejo que talvez tudo tenha valido a pena, afinal. Para onde mais alguém como eu iria depois de minha morte? Será que todo mundo tem um cenário como este preparado com carinho e com sangue por alguém que parece com qualquer um dos pacientes com quem já trabalhei em vida? Pensei no Dr. Romeu, primeiro terapeuta que me abriu as portas para o trabalho que um dia me traria a Taurinos. No Centro de Hipnose em Santos, onde tudo começou de verdade em um dia qualquer de 1994; em Santos, cidade que provavelmente nunca mais verei. Nesta noite, em que me sinto finalmente bem-vinda a Taurinos definitivamente, não mais a forasteira de quem tudo era escondido, encerro esta narrativa. Em algum lugar de Santos, meu editor coleta essas coisas que escrevo — mesmo sem acreditar em uma palavra que eu digo — e as está organizando em um livro. Desejo sucesso ao empreendimento dele, mas não posso prometer estar com ele na noite de autógrafos — se é que um dia ela vai realmente acontecer. Àqueles que realmente seguem o blog — alguns americanos, um moscovita e um parisiense, entre alguns brasileiros e até mesmo mineiros desavisados — deixo a certeza de que a história continua, pelo menos enquanto alguém que já se foi do plano material mais denso tiver permissão do Blogger para continuar postando. Mas eu devo descansar meus dedos digitadores por algum tempo agora. Prometo voltar em breve, já que agora que essa cidade saiu de mim eu não posso mais sair dela.

Me deixarei ficar em Taurinos, onde as coisas realmente acontecem. Onde entendi de ficar de forma permanente. Um dia tive um marido e mesmo sem poder ter filhos, tinha a esperança de com ele ter tido uma família. Meu marido desapareceu no mundo, me dando conta do quanto eu estava errada. Meire nunca mais perguntaria por ele. E eu, que nunca tive família, no final das contas, acabei tendo uma família mineira imensa, de mais de duas mil pessoas. Não caberíamos todos juntos numa foto, se quiséssemos tirar. Mas a Sociedade Antiga dos Taurinos sim, acrescida de "sêo" Danilo desta vez. De onde eu tiraria luz a não ser do líquido escuro que eu bebia (e beberei!) de suas xícaras? A foto ficou linda: os meninos estão sérios, o sertanejo está sério, eu estou meio Mona Lisa. Da máquina digital vai direto para a área de trabalho de meu laptop. A classe de 2009 da Sociedade Antiga dos Taurinos reunida para nunca mais se separar. Na província da mente de dentro da qual John Cunningham Lilly um dia brilhantemente falou, uma cidade mineira normal em seu dia a dia enfim, mas uma cidade onde, diferente de alguns poetas que conheci e amei, o para sempre seria para sempre de verdade. Para sempre.

Renegado |

Rádio Universal: Polícia Obscura

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