terça-feira, 12 de maio de 2009

Três idéias

Quem poderia estar batendo em minha porta às seis horas da manhã? Lá embaixo, a aldrava atingia em cheio a porta com cinco batidas. Cinco? Isso não me lembraria nada? De uma certa noite?

Me ergui da cama, procurando meu roupão. Os primeiros pássaros davam o ar de seu canto. Eram, no entanto, tímidos e distantes, quando deveria haver centenas deles já em torno da casa em algazarra de cantos e pios. Desci, olhei pela janela da sala. Um cavalo preto está amarrado à coluna do meu alpendre. Renan. Ou o Agente, no caminho de volta para casa?

"Renan? É você? Posso abrir?"

A vozinha minúscula veio lá de fora, "pode abrir sem medo, D. Stella. É só o Renan aqui fora", havia um toque de ironia na voz da criança que não pude deixar de notar mesmo através da janela da sala ainda fechada.

Abri a porta. Um Renan vestido de preto e manchado de sangue dos pés à cabeça entrou pela sala. Eu estava atônita. Ele se desculpou por vir me visitar desse jeito.

"Achei que devia passar aqui e me desculpar pela bagunça ontem", ele falou com o semblante sombrio e carregado da noite que mal terminava, "eu causei no centro da cidade, não foi?"

Havia menos orgulho do que eu poderia supor na voz dele. Por outro lado, o tom de voz não traiu sombra que fosse de arrependimento.

"Acho que sim", respondi. Não muitas palavras me ocorriam naquela hora da manhã, quanto mais sábias palavras de como ver a vida numa perspectiva mais positiva. Não sou, definitivamente, o tipo de psicóloga auto-ajuda.

"Você se arrependeu?"

"Claro que não", ele franziu a testa, "como me arrepender de uma coisa que é certa. Eu avisei que eu ia destruir a vitrine deles. Dei um tempo gordo. Que mais eles queriam?"

Eu disse a Renan que tomasse um banho, dei um roupão e uma toalha a ele.

"Esse roupão é enorme pra mim", ele protestou, tentando se desvencilhar.

Mas ele acabou indo até o banheiro e me passou as roupas imundas e as botas (que ele já deveria ter deixado lá embaixo na área de serviço) pelo vão da porta. Joguei tudo na máquina de lavar e liguei com água quente no molho para tentar lavar aquelas manchas horrendas. Lavei as botas no tanque, observando o sangue descer pelo ralo, até que ficassem pretas outra vez, atônita com a quantidade. Era difícil por causa da quantidade de detalhes em baixo relevo nelas. Subi e ouvia o som do chuveiro e Renan cantando um funk debaixo da água. Depois, gritos lancinantes que ecoaram pela casa toda e me deixaram apavorada. Bati na porta, alarmada, perguntei o que estava acontecendo e ouvi a voz do Renan em meio aos gritos, dizendo que isso era assim mesmo. Ele levou uns dez minutos e desceu todo perfumado e limpinho, parecendo uma flor. Meu coração ainda batia meio que descompassado quando ele chegou à cozinha. Da minha área de serviço vinha o som rotundo da máquina de lavar tentando passar um pano para Renan.

"Fica umas outras coisas acumuladas", ele explicava assim os gritos que ouvi, "não é só a sujeira física, sabe?"

"O que diabos eram aqueles gritos?"

"Três idéias que eu encontrei essa noite", ele fechou a cara.

Coloquei o café, o leite e as outras coisas na mesa. Lá fora, a máquina começava a bater a roupa do Renan. Comemos em silêncio por algum tempo. Renan me trazia no olho, ele não ficava olhando para o nada ou fingindo estar concentrado em outras coisas. Perguntei porque ele não tinha aparecido com o formato do Agente se estava trabalhando. Ele disse que tinha aparecido com o formato do Agente, mas que eu não tinha obrigação de levar um susto ao abrir a porta. E eu me lembrei que achava que os pássaros estavam cantando longe demais. Ele sorriu, mas era um sorriso amargo quando me ouviu dizer isso.

"É, o espanta-nenê estava batendo na sua porta", ele fungou de repente.

"É como nos filmes, como aquele do Exterminador do Futuro, você se transforma?"

"Como o Superhomem na cabine telefônica? Não, não sei se é assim. Mas também não sei como acontece, então se quiser imaginar que é assim, que seja assim. Eu sou um menino de dez anos, não entendo dessas coisas."

"Pode ser que o poder direcione uma aparência segundo a necessidade do momento em que você está para uma pessoa específica", sugeri.

Ele sorriu, como se aprovasse a idéia. Mas disse que eu não poderia ver o Agente separado dele. Ele poderia estar em sua aparência normal, mas era o Agente do mesmo modo. Assim como o Agente era ele, não havia algo como Renan e o Agente. Não eram, segundo o que entendi, duas entidades separadas.

"O Agente é o mesmo menino que a senhora está vendo agora na sua frente, se sentindo como um idiota com esse seu roupão enorme…", ele disse, me provocando uma crise de riso, "por que está rindo?"

Falei do fato dele estar se sentindo um idiota com o roupão e também dele tentar me convencer de que aquilo que eu vi em cima do cavalo era uma criança de dez anos. Ele sorriu. Disse que era sim uma criança em cima do cavalo, mas como eu mesma tinha colocado, o poder o mostrava naquele aspecto brutalmente sinistro dentro da noite.

"Por que não apareceu para nós como esse menino que está se sentindo um idiota com o roupão e sim com aquele aspecto do Agente?"

"D. Stella, não confunde as coisas. O Agente está aqui agora bem na sua frente, tomando café da manhã com a senhora. O Agente era quem estava ontem em cima do cavalo em frente à loja do "sêo" Alberto e do Anderson."

O Agente tinha acumulado uma carga tão negativa sobre si mesmo em meu ver que não pude deixar de sentir calafrios quando ele disse isso. O simples pensamento de que aquela coisa monstruosa pudesse estar placidamente em minha cozinha partilhando do meu café me dava arrepios. Renan olhou para o meu braço e percebeu isso na hora. Me disse que no momento em que ele apareceu, foi para nos assustar e com o seu aspecto do dia-a-dia ele jamais conseguiria. Ele precisava do nosso medo para se carregar e conseguir mais e mais força. Como um ser de videogame que se alimentava das coisas pelo caminho do jogo e redobrava suas energias, era assim que ele se carregava enquanto cavalgava pela imensidão da noite.

Comemos mais um pouco em silêncio. Renan perguntou se poderia repetir a caneca de café e leite; eu disse que ele podia comer à vontade, o quanto quisesse.

"Esse negócio do aspecto tem que ver com a situação", ele aproveitou para explicar enquanto enchia a caneca, "agora eu estou dentro desse roupão enorme porque a senhora está lavando as minhas roupas e eu não tenho roupas para vestir", e o menino riu bastante com a sua própria explicação, "é um aspecto estranho, porque eu nunca uso roupão, só pijama (e de pijama já é um outro aspecto meu), mas tudo isso é o cara que se chama Renan Augusto Giacomin Teixeira, é brasileiro, nascido na cidade de Taurinos, no estado de Minas Gerais."

Disse a ele que entendi. Uma mistura macabra de italianos e portugueses e saiu isso. Ele me explicava mais ou menos o que me deixava intrigada a respeito dele. Recordei a ele que ele me disse que era uma parte dele. Ele replicou que aspecto era a palavra, não era como se ele se partisse em dois ou mais. Recordei a ele que ele me disse que a parte que todos conheciam ficava em casa dormindo durante as cavalgadas.

"Isso não é se partir em dois?"

"Não, porque na sua cidade importava saber se a senhora estava dormindo ou acordada. Aqui em Taurinos, isso não importa."

Pedi que ele me explicasse o que queria dizer com isso. Ele respondeu que queria dizer exatamente isso. Que tudo era inteiriço, sonho, realidade, nada disso era separável. O que existiam eram aspectos diferentes no dia a dia.

"Quando eu vim aqui naquela noite e bati na sua porta, eu e a senhora podíamos estar dormindo, sabe."

"Tenho certeza de que eu não estava dormindo, Renan."

"E de onde a senhora tirou essa certeza?", ele sorriu, desafiador.

Caí em mim. O rapazinho estava certo. De onde eu tiraria uma certeza tão grande como essa? De uma sucessão de eventos do raiar do dia até que eu fosse dormir? O fato de estar me preparando para subir e efetivamente dormir?

A lavadora tinha terminado. Deixei Renan na mesa e coloquei a roupa na secadora, admirada de ver que as manchas tinham sumido completamente. Aquilo não se resolveria numa só lavagem, pensei imediatamente. Voltei à cozinha e Renan não estava mais lá. Onde teria ido? Não estava em nenhum lugar da casa, que percorri inteira à sua procura. Achando que ele tinha ido embora totalmente nu, fui à secadora pegar as roupas, tentar alcançá-lo e devolver a ele. Não havia nada na secadora. Suas botas tinham desaparecido do tanque. Na frente da casa, mais nenhum cavalo. Apenas um vento repentino que levantou poeira e me encheu os olhos de cisco. Quando finalmente consegui abrir os olhos, eu estava em minha cama. No momento em que percebi que estava em minha cama, lá embaixo, a aldrava atingia em cheio a porta com cinco batidas. Cinco? Isso não me lembraria nada? De uma certa noite?

Me ergui da cama, procurando meu roupão. Os primeiros pássaros davam o ar de seu canto. Desci, olhei pela janela da sala. No alpendre, Andrés olhou para mim pela janela e sorriu.

"São sete horas", ele disse, me olhando de modo estranhamente divertido, "a senhora não vem fazer café?"

Me troquei e fui para a fazenda, comentando com ele do sonho estranho com Renan. Ele me olhou espantado e disse que tinha visto Renan acabar de passar por ele no caminho, vindo de minha casa.

"Nunca vi ele voltar do trabalho com a roupa limpa, acho que só hoje mesmo", ele comentou.

"Mas isso foi sonho, Andrés…"

"Quem disse?"

Promessa das sombras | Noite e dia

Rádio Universal: Polícia Obscura

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