segunda-feira, 11 de maio de 2009

Promessa das sombras

Fui à cidade, conversar com Anderson. Já fazem bem uns oito dias que ele esteve em minha casa para me trazer seu problema e quero ver se dou sequência à conversa. Tentar sondar, ver quais são os planos dele. Duílio me deixou na praça principal, onde fiquei cumprimentando inumeráveis passantes. O primeiro choque de vir para o interior de Minas e especialmente para uma cidade minúscula como Taurinos é que todos se cumprimentam. Coisa impensável numa cidade com quase meio milhão de habitantes como Santos.

Fui até a loja de ferragens que fica quase na saída da praça principal, mas próxima a todo o seu burburinho. Ele estava atendendo um cliente ou freguês como ainda se diz por aqui. Quando encostei no balcão, verificava um ferrolho ou fechadura. Notei que havia equipamento para produção de chaves.

"Você é chaveiro também?"

O menino sorriu. Disse que se fosse feito de metal, modéstia à parte, ele poderia fazer qualquer coisa com qualquer objeto.

"Metal é comigo mesmo. Até no som, eu curto metal. Do mais leve até o mais pesado. Iron Maiden, My Dying Bride, Celtic Frost, Malasangre, Sad Sun, Sepultura, Vulcano, o que vier."

Perguntei a ele se ele falava do Vulcano que era um grupo de Santos. Ele disse que sim, que só conhecia um, e me perguntou se eu conhecia os caras pessoalmente. Eu disse que conhecia o Zhema II e Fernando Levine, respectivamente guitarrista e baixista do grupo e fiz Anderson ficar em transe. Nem sabia mais se Fernando ainda tocava no grupo, mas achava que o grupo ainda estava na ativa.

"Irado, a senhora me apresenta os caras um dia?", os olhinhos do menino brilhavam.

Engraçado que a maioria dos grupos citados por ele se eu não tinha efetivamente ouvido já tinha pelo menos lido sobre ou ouvido falar. A vantagem de trabalhar com adolescentes é que com o tempo você aprende coisas sobre o cotidiano deles. Muitos dos meus analisandos costumavam curtir o mesmo tipo de música que Anderson. Muitas vezes consigo me aproximar deles através de conversas sobre música. Eu mesma tinha dado com o Malasangre e o Sad Sun pesquisando sobre música ambiente num programa de compartilhamento de arquivos pela Internet, para descobrir que se tratava, segundo o dono dos arquivos, de "metal atmosférico".

"É, você realmente gosta do metal. Todos os aspectos", e eu ri.

Anderson não me acompanhou na risada. Uma sombra passou pelo rosto dele. Disse que andava ouvindo muito essa palavra, "aspecto", nos últimos tempos. Imaginei mesmo que fosse esse o motivo da expressão séria dele repentinamente. Houve um silêncio que quebrei perguntando por Alberto. Anderson disse que ele estava no andar de cima.

"Às vezes eu e o pai dormimos aqui na semana. Só fico lá no sitio se tiver muito cavalo pra ferrar."

Outra pausa, maior que a precedente. Eu não sabia se iria conseguir entrar no assunto delicado de que vínhamos tratando naquele ambiente de negócios onde a conversa poderia ser interrompida por clientes a qualquer momento. Eu estava ainda estudando o que dizer, quando um cavalo irrompeu na praça. Não vinha a galope, mas num passo firme. Eu e Anderson olhamos para a entrada da loja e vimos as pessoas se afastando como carros abrindo caminho para uma ambulância. Nos entreolhamos, nos perguntando o que estava acontecendo. Agora, nem um som do burburinho comum da praça se ouvia mais. Eu conhecia aquele silêncio. Um cavalo preto parou no meio da rua em frente à loja. O cavaleiro estava parcialmente oculto pelo toldo da loja, mas o cavalo preto, as botas pretas com esporas de prata e as roupas pretas não deixavam margem para dúvidas.

"Anderson, você vem aqui conversar comigo?", a vozinha minúscula entrava pela loja, metálica, sonante.

"A distância até aqui é a mesma", gritou Anderson de dentro da loja.

Silêncio. Anderson olhou para mim, confuso e agastado. Não esperava receber a visita do amigo, ainda mais naquelas condições, "ele está trabalhando, que é que quer comigo?"

"Anderson, estou esperando você vir aqui fora conversar comigo. Por favor!", a vozinha minúscula agora soava mais impaciente.

Eu não entendia a recusa de Anderson em sair. Seria medo do que Renan tinha pra dizer pra ele? Ou ele se empenhava numa guerrinha de poder com o amigo? Anderson indicou a segunda possibilidade dizendo, "ele que venha, que tenho eu com os assuntos dele?"

Novo momento de silêncio. Passos na escada de madeira vindo do mezzanino revelaram Alberto descendo para o interior da loja, "o que é que Renan está querendo gritando lá fora desse jeito? Assim, vai acabar nos espantando toda a freguesia…"

Novamente, a vozinha lá fora, mais e mais ameaçadora, "eu vou atirar uma pedra na sua vitrine se você não sair. E vou jogar outra e outra até você sair daí. Nem que eu tenha que jogar a tua loja no chão. Estou te avisando!"

Alberto olhou assustado para o filho, "mas o que é que você andou fazendo, menino" e Anderson lembrou a ele "andei emprestando umas armas para a comunidade se livrar de uns ladrões de gado, lembra agora?" O homem soltou o ar dos pulmões desconsolado. Penso se ele também não teria incentivado o filho a emprestar as armas. Houve um último momento de silêncio, o mesmo silêncio mortal que tantas vezes experimentei por aqui.

A primeira pedra atingiu a vitrine em cheio, o som atordoante da estrutura da vidraça se fragmentando em bilhões de minúsculos pedaços. Alberto ficou apavorado e foi ter com Renan lá fora, apesar do filho tentar inutilmente detê-lo. Eu perguntei a Anderson se não era melhor ele sair. Me ofereci para ir e ele me impediu, "isso é comigo, não sei o que foi o meu pai fazer lá fora…"

"Acho que, já que você não quer sair e Renan não quer entrar, ele foi tentar impedir o seu amigo de destruir a frente da loja de vocês, não?"

Ouvimos Alberto argumentando com Renan lá fora e o policial minúsculo dizendo a ele que queria falar com Anderson, não com ele, "ninguém aqui vai se machucar, "sêo" Alberto; só quero conversar com o meu amigo…"

Anderson finalmente saiu e o pai entrou, furioso, "já viu uma coisa dessas, D. Stella, o menino está cada dia pior?" e eu disse a ele que Renan não iria melhorar do nada. Ele me olhou interrogativamente e eu ia sair para rua quando ele me disse,"olhe, é melhor deixar os dois conversarem sozinhos."

Me deixei ficar, enquanto Alberto procurava transtornado uma vassoura para limpar a bagunça feita pelo Renan. Ele tinha razão. "Tem certas coisas que desabonam um adulto", pensei eu, lembrando a escritora mineira de Sacramento, Carolina Maria de Jesus. Pelo rombo na vitrine, pudemos ouvir claramente Renan dizer que não tinha obrigação de ficar procurando por ele, nem de implorar sua atenção. Usando o meu próprio discurso do dia de ontem no quarto dele, que diabinho! O resto da conversa não foi possível ouvir, acontecendo agora num tom mais baixo e felizmente aparentemente mais calmo. Anderson retornou nervoso para dentro da loja. Saí para a rua, seguida por Alberto que perguntava ao cavaleiro quem iria pagar pela vitrine.

"Tarde, D. Stella!", o cavaleiro mirim falou em alto e bom som na minha direção assim que me viu assomar à porta da loja em meio à ruína de cacos de vidro por todos os lados que ele mesmo criara, e virando-se para Alberto, disse simplesmente, "o "sêo" Teixeira paga a sua vitrine, "sêo" Alberto."

"Quando o pai paga, é bom, não é?", ironizou Alberto.

Renan já ia seguindo adiante, mas deteve o cavalo. Se virou de volta, olhou para o pai de Anderson nos olhos e respondeu furioso, "quem paga ele no final sou eu mesmo, com o meu rabo. Se eu não estivesse de serviço, te mostrava meu rabo, que mais parece um tomate de tanta cintada que eu levo!"

Como se para dar um exemplo, ele vibrou o relho no couro do cavalo com força que me deu pena do animal. Saiu em galope alucinado pelas ruas de Taurinos, desaparecendo no final da rua, rumo à zona rural de Taurinos, enquanto Alberto abanava a cabeça e varria os cacos de vidro da calçada em frente à loja.

"Tem certas coisas que desabonam um adulto", pensei eu, lembrando a escritora mineira de Sacramento, Carolina Maria de Jesus. As pessoas levaram tempo para recomeçar a tarde depois que o policial se foi e lentamente começaram a ocupar a praça. Ninguém entrava, mas as pessoas se juntavam na praça e de lá contemplavam o estrago, olhos cheios de espanto e horror. Duílio encostou o carro na praça e olhou para a loja de ferragens e para mim, com expressão densamente interrogativa, tentando entender o que tinha se passado ali.

Linguagem do medo |

Rádio Universal: Polícia Obscura

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