domingo, 17 de maio de 2009

Sol negro

Meire acordou por volta das duas da tarde hoje. Nem me atrevi a acordá-la. Deixei que acordasse sozinha, que dormisse o tanto que precisava. Dois dias dormindo não seriam suficientes, pensei.

Ela ainda estava tonta da chegada a Taurinos ontem. Sorriu e me deu bom-dia e sorriu novamente quando esclareci que já era de tarde. O sorriso e o bom-dia eram ambos fracos, de quem despendeu energia exagerada numa situação limite. Ela estava atônita em se ver dentro de minha casa, a mesma casa que ela tantas vezes tinha visitado em Santos. Por um momento, para ela, era como se nada realmente tivesse acontecido a nós duas, como se nada tivesse mudado. Tive de pedir a ela algum tempo antes que eu pudesse explicar como ela podia estar de volta à mesma casa em que me visitava em Santos até o início do ano.

Eu não sabia por onde começar a conversa. Perguntei da vida dela, do marido, das coisinhas do dia-a-dia. Embora não fosse alterar em mais nada a minha situação, eu evitava falar sobre a minha situação em fevereiro. Sobre o que teria causado aquele coma. Mas acabei perguntando, ao invés de enterrar o assunto de uma vez.

"Você teve, segundo os médicos, o que eles chamam de isquemia. A falta de oxigênio no cérebro causou a morte de um monte de partes dele, Stella. Pela tomografia, os médicos concluíram que você nunca mais iria ter uma vida normal de novo. Talvez não voltasse a falar, talvez não reconhecesse mais ninguém, talvez evoluísse para Alzheimer ou demência ou qualquer coisa parecida. Eu chorei muito quando soube. Os médicos só me deram essas informações a muito custo, quando eu consegui convencer a equipe de que você não tinha parentes próximos."

Engraçado, longe de me aliviar por me fazer saber finalmente que eu não teria outra alternativa, a resposta de Meire me trouxe uma tristeza que eu não consegui explicar a mim mesma. Ela notou o meu estado. Me abraçou e me disse que preferia que eu nunca tivesse perguntado isso a ela. Eu retribuí o abraço e mudei de assunto, oferecendo café.

"Não fiz almoço ainda, mas se preferir almoçar, eu posso fazer alguma coisa."

"Café é uma ótima idéia, ainda mais aqui em Minas… Nós estamos em Minas Gerais, não?", ela riu, procurando relaxar de algo que parecia deixá-la preocupada.

Ri também e disse que sim. Enquanto eu fervia a água, notei que a situação se inverteu. Agora era ela quem parecia hesitante em me perguntar algo. Não deixei transparecer o que eu notei. Ela hesitou, hesitou, mas acabou, como eu, entrando no assunto.

"Ontem, você estava nervosa no telefone, antes de tudo aquilo acontecer. Aquele pesadelo. O que foi aquilo que me aconteceu, Stella? Que assombração era aquela no meio do mato? Como eu fiquei presa naquela rede?"

"É uma história tão longa, Meire… Tão inacreditável… Mas como é tão inacreditável quanto você estar aqui hoje, eu sei que vai entender."

E desfiei a história que para o leitor aqui já não é mais novidade. Meire ouvia, os olhos que não cessavam de se encher de assombro a cada novo detalhe que eu adicionava à minha narrativa.

"E você então criou toda essa cidade e as pessoas que vivem nela, bichos, os rituais que você me contou?"

Ela não entendia como eu poderia ter criado tudo isso dentro da cabeça de um menino que já tinha nascido com doze anos. Eu disse que mesmo tendo vivido aqui por quase cinco meses ainda não sabia o que era sonho e o que era realidade. Eu disse que talvez não existissem mais nem mesmo fronteiras entre o sonho e a realidade. Talvez nem mesmo a realidade existisse.

O café ficou pronto e nos sentamos para comer. Ela adorou a mesa mineira, os bolos, os pães, a manteiga da roça, o queijo Minas e o Canastra. Comeu com apetite, aparentemente esquecida da pergunta que já tinha me feito sobre sua captura. Eu explicava que a casa tinha sido feita a partir dos meus sonhos. Um dos construtores da casa era Adriano, o mesmo que a viu em corpo astral e que começou a revelar para mim tudo o que foi o Dia da Criação. Ela não acreditava ou tinha imensa dificuldade em acreditar. Mas, como eu, percebeu que não teria acreditado — se lhe dissessem — que poderia se comunicar comigo por MSN, quanto mais estar aqui em corpo astral tomando café comigo aqui em Taurinos.

"Que coisa incrível! E tudo veio daquela nossa conversa sobre o menino mexicano!", ela sacudia a cabeça, incrédula por tanta loucura.

"Sim, pelo menos a parte do ritual; também veio muito das minhas leituras, da vida dos meus pacientes, daquele caso que você acompanhou de longe em 1994, uma colcha de retalhos da minha vida toda."

"Que loucura, Stella", ela mordia um pão de queijo, "acho que eu nunca mais vou ser a mesma quando eu voltar para Santos…"

"É, é difícil mesmo acreditar em tanta insanidade. Mas só veio a me provar aquilo que eu já dizia, que não existem as fronteiras entre a realidade e o imaginário que gostaríamos que existissem."

"Mas tem mais uma coisa: você ainda não respondeu a minha pergunta do início", observou Meire, de repente.

Bem, respirei fundo. Sabia que a pergunta iria acontecer e que nossas posições iriam se inverter. Expliquei o que aconteceu quando cheguei à cidade. Dos ladrões de gado, e de como foram mortos por um dos moradores com a colaboração indireta de um outro. De como a matança dos ladrões de gado gerou no morador um comportamento automático de eliminar todos aqueles que não pertencessem à cidade com a exceção lógica da minha pessoa, que deveria ser protegida junto com a cidade e seus moradores.

"Ele foi aos poucos se transformando naquela aparição. Como se fosse uma maldição. Ele agora não tem mais como fugir disso. Ficará nisso eternamente."

"Que horror!", ela se encolheu, instintivamente.

"Ele nem sempre é medonho daquele jeito. Se você o vir no normal dele, não vai dar nada por ele. Não vai acreditar nisso que estou lhe dizendo nem de longe."

"Não é um fantasma?", ela não conseguia fechar a boca.

"Nem sempre; só quando ele está a trabalho, à noite ou perto do começo da noite, patrulhando a cidade atrás de forasteiros."

"Ele ia me matar?", ela tinha um ar de dúvida.

"Sim, você não tem idéia do tanto de sorte que teve ontem."

Contei a ela sobre o outro morador e sua recusa em ajudá-lo a patrulhar a cidade, o apelido da Polícia Obscura, o que ocorreu em minha casa e de como ele conseguiu distrair o policial finalmente aceitando trabalhar com ele. Ela não disse uma palavra no final. Fiquei pensando em como a história tinha aterrisado no cérebro. Meire parecia bastante perturbada. Como se analisasse como eu poderia ser pervertida, criando tanta insanidade a partir de minha vida pregressa no mundo onde ela ainda vivia.

Sons de um cavalo na estrada de terra. A julgar pela direção, poderia ser alguém da Taurinos. Andrés. Olhei pela janela da cozinha, de onde podia ter uma visão da estrada. Era Renan, e não vinha em seu palomino. Ele vinha em seu uniforme preto, com algo no lado esquerdo do peito que o Sol fazia brilhar ao refletir sua luz.

"Meire, presta atenção. O policial que te pegou ontem está vindo para cá."

Ela se levantou, apavorada.

"O que é que eu faço, Stella???"

Eu a tranquilizei, "você continua tomando seu café, que nada vai lhe acontecer", e eu vi que ela se acalmou um pouco mais, voltando a se sentar, "mas eu peço que você segure um pouco o espanto, ele não é nem de longe parecido com a idéia que você tem de um policial."

"Como assim???", ela estava perplexa.

"Você vai ver."

Não esperei o pequeno policial esmurrar a porta com suas cinco clássicas batidas. Fui esperá-lo no alpendre. Entrei com ele me seguindo até a cozinha, "desculpe vir assim, sei que a senhora está com visita lá de Santos…"

Ao entrarmos na cozinha, Meire ficou olhando atrás dele, curiosa para ver quem viria. Renan voltou-se para trás para olhar e perguntou, "está procurando alguém?"

"Stella, você não disse que estava vindo um policial para cá?"

Renan olhou para mim, tornou a olhar para Meire e sorriu.

"Eu sou o único da cidade por enquanto. A seu serviço, senhora."

Foi então que Meire parou para examinar a criança. Seu olhar ficou fixo no menino, perplexa, sem acreditar. Renan começou a ficar sem-graça, me olhando como se pedisse ajuda. Perguntou se era aquela mesma coisa de quando a comecei a ver todos eles com aquela resolução infinita e eu disse que era mais ou menos isso.

"Que menino lindo!", ela estava assombrada e duvidando que aquela aquela coisinha fofinha e robusta fosse um policial.

Ele ficou mostrando seu distintivo que eu ainda não havia visto. Preto, com letras vermelhas. Feito pelo Anderson, era evidente o refinamento dos detalhes, a precisão do alto-relevo das letras, o símbolo do infinito entre duas luas. Polícia Obscura, Noite e Dia, Desde 2009. Meire começou a ficar perturbada ao ver o símbolo. Disse que o viu na testa da aparição dentro da floresta. Renan sorriu para ela.

"Quero me desculpar com a senhora pela confusão de ontem. Anderson me contou que a senhora é amiga da D. Stella de verdade. Gente de fora só pode entrar em Taurinos para fazer entregas. Fora isso, é confusão na certa comigo, sabe?"

Meire começou a rir. Eu vi Renan começando a esticar o pescoço e franzir a testa, olhando alternadamente para ela e para mim. Pressentindo problemas sérios, cutuquei Meire e lhe disse baixinho que aquilo não era brincadeira. Ela viu minha expressão desesperada e parou de rir. O súbito respeito de Meire por ele desarmou o policial. Meire se desculpou com o menino, que sorriu novamente para ela.

"Não tem problema, "sá" Meire. Eu sei que eu não pareço muito com um policial mesmo. Mas não parecer não é não ser, sabe."

Meire ficou olhando aquele uniforme imaculadamente negro, as botas reluzentes e as esporas afiadas. Renan ficou brincando com o relho, passando-o de uma mão para outra, aparentemente divertido com a reação e o espanto dela, recusou o café que ofereci e qualquer outra coisa.

"Hoje eu e Anderson só vamos comer à noite."

"Você está sem comer desde hoje de manhã?"

Ele sacudiu a cabeça afirmativamente. Me disse que esse era seu objetivo em vir à minha casa. Convocar para o ritual de iniciação de Anderson nos quadros da Polícia Obscura, que iria acontecer no final da tarde.

"Mas já? Pensei que iria levar mais algum tempo."

"Já levou tempo demais, se quer saber", o menino soava impaciente.

"Eu posso assistir?", intrometeu-se a Meire. Eu olhei para ela apreensiva, não esperava aquele pedido. Me lembrei de mim mesma querendo ir à reunião dos fazendeiros quando cheguei à cidade. O menino olhou para mim, sem acreditar no que estava ouvindo.

"De maneira nenhuma, senhora", respondeu Renan, secamente, "a iniciação é fechada, só para membros da Sociedade Antiga dos Taurinos."

Ele sorriu novamente, como que para relativizar a severidade da negação do pedido e disse que ia embora.

"Andrés me disse que a senhora andou perguntando a ele como é a iniciação. Hoje a senhora vai saber. Espero que aprecie a vista, é tudo feito em sua intenção e na do povo pacato desta cidade."

Depois que ele saiu, eu disse a Meire que não esperava que ela pedisse algo como o que ela pediu. Ela disse que pediu porque queria ver a reação dele. Eu ri e disse que já me comportei assim uma vez. Como o pedido dela, o meu foi negado também.

Meire foi a sensação de nossa visita à fazenda Taurinos. Adriano ficou olhando para ela hipnotizado, o que fez com que Meire me perguntasse o que estava acontecendo. Eu disse a ela que aquele era o garoto de que eu falava, que a tinha visto em corpo astral.

Eu pretendia deixar minha amiga na mais que agradável companhia de Aparecida e ao mesmo tempo ir de carona com Andrés e Adriano à iniciação. Andrés me disse que aquilo não era um convite, era uma convocação e que não poderia deixar de ser atendida.



5:15

Adriano dirigia o carro pela estradinha de terra com Andrés no banco da frente e eu atrás, olhando pela janela. Apreensiva a respeito do que o ritual poderia consistir. Andrés sabia o que era, mas não disse uma palavra. Queria que "sêo" Danilo estivesse hoje conosco. Ele poderia vir, mas não viria. Nem sequer queria se envolver ao ponto de simplesmente me dizer do que se tratava.

Adriano dirigiu por longo tempo até que chegamos ao meio do nada, numa parte muito alta das montanhas de Taurinos. Encontramos o carro de "sêo" Pinho, e não houve mais nenhum outro até que Adriano finalmente parasse o carro num ponto onde Arthur, Bruno e Guilherme estavam nos esperando. Nenhuma brincadeira dos meninos no caminho, os rostos sérios, graves, e agora o silêncio sombrio dos outros também, que só fazia me deixar cada vez mais nervosa.

"Onde estão o Renan e o Anderson?", inquiriu Adriano.

"Lá em cima", disse Arthur, apontando para o cume da colina mais próxima, "daqui a gente só pode seguir a pé."

"E é melhor a gente ir subindo, sabe como é o meu irmão com essas coisas dele…", sugeriu Guilherme.

O Sol descia mais e mais à medida que subíamos. Ainda estava um pouco distante do horizonte, talvez porque estivéssemos alto demais. Eu sentia vontade de fazer algum comentário, quebrar o encanto daquele silêncio ensurdecedor, mas ninguém falou a não ser Andrés e somente para me dizer que eu não poderia fechar os olhos, olhar em outra direção nem falar durante toda a iniciação.

"Veja, nem os pássaros estão cantando. Este é o silêncio.", ele disse, antes que se calasse definitivamente.



5:25

Caminhamos por mais algum tempo, até que vimos dois cavalos pretos amarrados a árvores próximas um ao lado do outro. Estávamos perto agora. Com um pouco mais de chaminhada, nós seis chegamos a uma parte plana, exatamente no topo da colina. Duas figuras vestidas em negro nos aguardavam lá. Cem ou duzentos metros mais nos separavam deles. O Sol incidia nas vistas, tornava difícil ver com mais detalhes.



5:29

Quando chegamos, vimos um círculo enorme traçado no chão com um pó branco. Era sal grosso. Em torno deste círculo, um outro ainda maior, feito do mesmo sal grosso, formando dois círculos concêntricos. No círculo interior, os dois em pé, com três homens deitados no chão em torno deles, suas bocas tapadas com um largo pedaço de silver tape. Uma motosserra, um machado e outros objetos de aspecto igualmente agressivo. Um dos homens estava exatamente no centro do círculo, preso a ferragens de um objeto metálico pouco menor que ele, que mantinha suas pernas abertas e uma ponta afiada que vinha da parte de fora do objeto, conectada a uma manivela. A ponta afiada, próxima ao corpo do homem, apontava para seu traseiro. Por mais incrível que pudesse parecer, esse era o mais calmo dos três. Os outros dois se retorciam nervosamente sem sair do lugar. Eu não entendia porque eles não conseguiam fugir dali, já que não havia cordas para prendê-los ao chão. E já não sabia se era necessário ser um especialista para imaginar porque Andrés e "sêo" Danilo se recusaram a me dar detalhes sobre a iniciação de Anderson. Invejava "sêo" Danilo por estar tranquilo e calmo em sua casa. Tudo o que eu mais queria naquela hora era poder estar conversando com ele e bebendo seu café de final de tarde, como costumava fazer.

Renan olhou o relógio e olhou para nós. Anderson olhou fixo para mim e o olhar dele foi um desses olhares que não se esquece, por mais que eu tentasse. Um olhar de muda reprovação sobre mim, pesado, sombrio, rancoroso, quase como uma raiva infinita pela situação para a qual eu o empurrei. Renan mandou que nós seis nos posicionássemos dentro do círculo exterior, espaçados de forma que não tivéssemos chance de nos comunicar um com o outro. Disse que em hipótese alguma deveríamos falar, fechar os olhos ou voltar os olhos para qualquer coisa que não fosse o que estava em curso dentro do círculo interior.

"Existem forças fora dos círculos que vão começar a agir a partir do momento em que o ritual começar; fora do círculo, vocês não tem proteção contra essas forças. Quando o ritual terminar, vou limpar o sal abrindo uma passagem por onde vocês podem sair do círculo. Nunca tentem saltar a linha de sal em nenhum ponto, vocês só saem do círculo pela passagem que eu abrir. O mesmo vale para nós dois no círculo interior", ele explicou, soturno, virando-se em torno para olhar para todos nós, "se algum de vocês tiver algo a dizer ou perguntar, a hora é essa. Quando o ritual se iniciar, só fala quem estiver dentro do círculo. Alguma pergunta?"

Nenhuma. Só aquele silêncio gelado, mortal de tantas outras vezes. Volvi os olhos para Anderson e ele ainda me fitava. De um modo ameaçador, amedrontador. Como se eu tivesse perdido o amigo que tanto tinha me custado fazer.

"Que o ritual comece", Renan disse simplesmente.

Ele se agachou ao lado de um dos homens que se retorcia todo no chão. Arrancou a fita adesiva da boca dele com violência. O homem começou a chorar, em desalento. Meu coração se apertava, um nó na garganta que não queria desatar.

"Tem dó de mim", o homem suplicava, "tenho mulher e dois filhos…"

"Eu sei como é duro", replicou Renan, "eu sou criança, tenho um pai também", ele acrescentou, chutando a boca do homem com violência insana, "que isso te sirva de lição por ficar acompanhando líderes filhos da puta por aí com essas idéias idiotas de invadir as terras dos outros."

Renan olhou para Anderson; sem dizer mais uma palavra, baixou e subiu a cabeça levemente, sinalizando que ele começasse. Anderson pegou o machado e se aproximou do homem, que começou a gritar, "não, não, não!" ou qualquer coisa parecida. Tentei desviar os olhos e olhar para Andrés, do outro lado do círculo exterior. No momento em que fiz isso, meus olhos começaram a queimar de um jeito tão intenso e doloroso que tive de voltá-los para o círculo interior na mesma hora.

"Começa pelos pés, o que acha?", perguntou Renan, olhando fixo para o novo parceiro de atrocidades.

Anderson não discutiu. Ergueu o machado e o primeiro pé voou, separado do corpo, com um esguicho de sangue, com um grito lancinante do pobre forasteiro. Depois, o outro. Renan o ia orientando para que cortasse pedaços pequenos, para prolongar ao máximo o sofrimento. Uma gritaria intensa, os golpes precisos, cirúrgicos do machado afiado de Anderson, aos poucos fatiando o que um dia tinha sido um homem. Aos poucos, os gritos e o estrebuchamento frenético do corpo se acalmaram. O homem estava finalmente em paz. E em pedaços.

Um último corte. Anderson separou o topo do crânio do homem com um só golpe. Aparou na cuia formada um pouco do sangue que jorrava, sempre orientado passo a passo por Renan que observava a tudo de braços cruzados.

"Bebe tudo", e ele ficou olhando enquanto Anderson bebia a custo o sangue da cuia macabra que tinha acabado de fabricar. O menino mais velho respirava ofegante, o sangue e alguns coágulos escorrendo pelas bordas da boca. Ele bem que tentou limpar o que escorria, mas foi impedido por Renan.

"Esse é o gosto do sangue, Anderson. Agora você já conhece."

Eu sentia vontade de vomitar, angustiada. Ficava imaginando como Anderson se sentia. Ele parou, ainda arquejando como um cão danado; largou a cuia no chão e seus olhos se voltaram para mim uma vez mais. O olhar cada vez mais gelado, ameaçador. Como se cada movimento feito dentro do círculo interior despertasse nele mais e mais raiva de mim. Estou me sentindo um lixo. E o ritual tinha apenas começado.

Anderson voltou a olhar para Renan. Este se aproximou do segundo homem, do outro lado do círculo interno. Se agachou ao seu lado, arrancou a fita da boca dele. O homem estremecia, mas não dizia palavra. Renan perguntou a ele se tinha alguma coisa a dizer. O homem não dizia uma palavra, transtornado pelo pavor.

"Não tem mesmo nada a declarar?", o policial tirou um par de luvas do bolso do uniforme e as calçou, "nem as famosas últimas palavras?", Renan abriu o zíper do homem e puxou para fora o pênis dele. Comecei a sentir que iria desmaiar. Não podia sequer me permitir fechar os olhos. Da cintura, Renan tirou uma faca de caça. Apoiou a faca na base do escroto do homem e disse, "já que não quer falar, não vai se importar se eu tampar de novo a sua boca, não?"

Num só golpe, ele cortou fora o pênis do homem, arrancando-lhe uma série de gritos escorchantes e num movimento tão rápido que nem pude acompanhar, pôs fim à gritaria insana dele enfiando-lhe o pênis inteiro na boca, testículos e tudo. A mão feroz do garoto foi descendo pela garganta do homem, enterrando mais e mais o pênis do homem em sua garganta até que ele começou a sufocar. Calmamente, Renan se ergueu e ficou ali placidamente assistindo o homem sufocar até a morte com o próprio pênis. Comecei a vomitar e pelo som próximo, vi que não era a única. Anderson olhou para mim e sorriu; o único sorriso que eu veria nele em muito tempo, um sorriso de vingança satisfeita pelo meu desespero. A um sinal de cabeça de Renan, ele deu arranque na motosserra.

"Vamos ver como você se sai a 10.000 rotações por minuto", disse o ferreiro, um jovem Hildebrando Pascoal mineiro, se aproximando do condenado.

Anderson cortou, no sentido do comprimento, bem devagar, o homem que ainda agonizava, como uma faca quente desliza cortando manteiga, guiado seguramente pelo fio de óleo que a máquina assassina desenhava em linha reta sobre o corpo. O sangue espirrava nos dois com grande cópia e Renan sorria, em puro deleite ao receber os pingos e respingos. Anderson trabalhava sério, eficiente e cruel como seu próprio mentor. Ao chegar ao crânio, parou e cortou o topo dele, como havia feito com o outro. Desligou a motosserra, recolheu mais sangue do que ainda restava e bebeu. Não pareceu ter a mesma dificuldade desta vez. Como já se estivesse acostumado ao mister. Sua eficiência em cumprir os mandos do policial era impressionante.

"Eis aqui a jóia da coroa", Renan agachou-se e segurou o último homem — aquele preso ao estranho objeto-máquina — pelos cabelos, puxando sua cabeça para cima com vontade para que pudéssemos ver, "o grande chefe dos invasores. O que mais me deu trabalho. Acabei com o bando dele aos pouquinhos, mas ele sempre me escapava. Mas ninguém escapa de mim para sempre. Porque eu vou buscar, nem que seja nas profundas do inferno mais profundo que existir."

Arrancou a fita da boca do homem que respirou fundo e disse, "até que enfim, meganha, estava me sufocando…"

"Não se preocupe com isso. Meu parceiro vai fazer com que esse seja o mais insignificante dos seus problemas. Logo logo não vai ter que se preocupar em respirar. O teu sangue é o que ele vai beber em mais quantidade, invasor."

"É uma honra, meganha, poder doar meu corpo e meu sangue para a formação do teu novato", o homem sorriu.

"Você é ligeiro para falar para quem está tão perto de virar comida de urubu", observou Anderson, sorrindo.

"Os mortos têm autoridade para falar assim, novato. Os mortos têm o direito de agir como bem entenderem. Agora, por favor deixe eu olhar bem nos olhos de quem vai beber o meu sangue" e ele fitou o rosto de Anderson por uns instantes.

Renan arregalou os olhos, parecendo pressentir problemas e chutou o rosto do homem preso à máquina com energia, "não, Anderson, não olha nos olhos dele!"

Anderson pela primeira vez pareceu perturbado. A ironia do comentário que tinha acabado de fazer cedeu lugar a um olhar preocupado. Ele desviou os olhos do condenado, mas algo ali permaneceu dando voltas dentro dele. Os olhos dele se voltaram para mim. O mesmo olhar de raiva funda, de desalento diante da montanha de violência animalesca que ele mesmo ajudava a erguer. O sentimento confuso de prazer e dor em provocar tanta dor. Ninguém pode viver tão dividido. Mas Renan podia. E Anderson teria de aprender também a dura lição. Senti o conforto duro de seu olhar me devorando fundo na alma, queimando por dentro como meus olhos cada vez que eu tentava desviar o olhar de tanta atrocidade.

"E essa é a Criadora! Vejam quanta honra para um pobre forasteiro… Meu sangue alimentando o novato na Polícia Obscura e de quebra, tudo assistido pela Grande Criadora de Taurinos… D. Stella! Aquele que vai morrer te saúda!"

Se imaginem em minha situação. Não, pelo amor de Mitra, não se imaginem. Não desejaria isso nem ao próprio Ariman em seu mister doloroso de desencaminhar as pobre almas humanas para a escuridão eterna. Anderson novamente sorriu, uma vez mais vingado pelas palavras duras do condenado. Vingado uma vez mais, sem pronunciar uma única palavra. Estava me sentindo menos que lixo naquele momento. Não tinha palavras para descrever o inexplicável horror de saber que esta vida é verdadeira. O horror de saber que sozinha criei todo aquele horror. Lembrei das palavras de Renan, "espero que aprecie a vista, é tudo feito em sua intenção e na do povo pacato desta cidade." Quando olhei para Renan, também ele estava olhando para mim. O olhar gêmeo ao olhar de Anderson, o sorriso mau da vingança satisfeita pelas noites não dormidas, se entregando de corpo e alma a toda aquela abominação noturna e diurna.

"E as famosas últimas palavras? É nisso que ficamos? Fica assim?"

"Pode me matar, meganha. Faça descer sobre mim a ira dos Imortais como você. São cruéis os Imortais com os pobres seres como nós. Mas, como ratos, vamos atormentar vocês por toda a Eternidade. Me mate e matará somente uma célula da doença. Ela sobreviverá, por todos o séculos e os séculos dos séculos, punindo vocês como vocês Imortais nos punem. Invadindo, tirando o sono tranquilo dos Imortais como vocês dois. Da Polícia Obscura que é o sintoma dessa doença que irá perseguir vocês por toda a Eternidade!"

Renan parecia ter ouvido o bastante. Meneou a cabeça em sinal. Anderson agachou-se diante do condenado para começar. Renan mandou que ele se ajoelhasse.

"De joelhos. Agradeça a ele antes de começar. Agradeça a ele pelo sangue dele e dos companheiros dele que acabaram de tombar. Agradeça pelo sangue que alimenta esta Iniciação e que vai te alimentar pelas noites onde só fantasmas nos acompanham nessa jornada fantástica. O momento é esse. O momento é agora."

Anderson não discutiu. Ajoelhou-se diante do homem e agradeceu a ele. No momento em que fez isso, seus olhos novamente encontraram os do condenado. Renan foi mais rápido desta vez e com as esporas afiadas, rasgou os dois olhos do homem com um movimento que me provocou náuseas e tontura. O homem gritou de dor, de raiva, de desespero, tudo unido num único grito lancinante. Novamente, Renan meneou a cabeça sinalizando o início do fim. Anderson começou a girar a manivela na extremidade do objeto. A ponta começou a se mexer bem devagar em torno de um parafuso que parecia infinito. A ponta começou a entrar pelo ânus do homem, lenta, repleta de promessas perversas, com uma lentidão que dava nojo, por mais rápido que Anderson girasse a manivela. O habilidoso ferreiro a tinha construído para que se movesse em torno do parafuso o mais lentamente possível, prolongando o sofrimento do condenado a níveis jamais sonhados pela mente mais pervertida que já se conheceu. Mais que isso: à medida que ele girava a manivela, a parte posterior do aguilhão ia se abrindo como as varetas de um guarda-chuva, formando um cone cuja base se alargava mais e mais.

"Vamos ver pra onde vai essa sua valentia, agora. Toda essa ironia de principiante. Tira a gente agora, quero ver fazer piadas, verme intruso!", Renan ofegava de ódio, enquanto os gritos abissais do condenado enchiam nossos ouvidos já cansados, mas com certeza não tão cansados quanto nossos olhos.

O sangue brotava do corpo do homem como uma nascente. Ele gritava, praguejava enquanto a dor inimaginável crescia dentro dele à medida que o ferreiro girava a manivela fatal de seu infernal equipamento, "você não será correspondido! Você não será correspondido! Teu destino, meganha imundo, será vagar sem sombra da amizade que espera receber! Vagar pela noite, acompanhado, mas só, eternamente só, na eterna frustração de uma amizade que nunca vai se consumar!!! Juro por esse céu, em nome do Sol negro que vai consumir meu corpo, pela Iniciação maldita que vai incorporar teu novato a esse mundo de escuridão em que você já vive e vai viver por todos os tempos dos tempos dos tempos!!! Eu te amaldiçôo! Eu te amaldiçôo!"

"Desgraçado imundo, roga praga, roga! Chora, que o teu fim está próximo! Chora que o meu parceiro está aqui pra te fazer chorar!", Renan chutava a cara dele, possesso. A iniciação de Anderson parecia fora de controle. Tudo parecia fora de controle. O ferreiro girava sem dó a manivela, entre compenetrado e atônito com o que via e ouvia. Atormentado pela própria dor que causava tão eficientemente, uma dor infinita como os campos de cerrado em torno da cidade que criei. Eu não podia tirar os olhos da cena diabólica se consumando à minha frente. Só podia mesmo imaginar o que se passava na cabeça dos outros membros junto a mim no círculo exterior.

O corpo do homem foi se abrindo como flor mortal, abrindo uma caverna, um túnel de terror inacabável onde um caminhão poderia entrar. Os ruídos de ossos esmagados pelo aguilhão que prosseguia em sua escavação insaciável, trincando, arrebentando, criando nos corações e mentes presentes os mais absurdos sentimentos de horror. A lentidão angustiante do processo, a impressionante praga de um Jacques DeMolay mineiro, urrada entre o que restava de suas forças.

Uma massa corpórea disforme era o que restava do condenado agora. Anderson pegou o machado novamente e cortou como da outra vez, o topo do crânio num único e certeiro golpe. Desta vez, Renan o fez encher toda a cuia de osso. O ferreiro ajoelhou a um comando do mentor diante da coisa obscena que era aquele homem empalado naquele cone de metal. Começou a beber o sangue. Seu corpo começou a estremecer. Mais. Mais.

"Bebe sem rejeitar. Nunca estivemos tão perto. Bebe. Isso, bebe essa porra desse sangue!", e Renan ia orientando tranquilamente, "calma, bebe sem por pra fora… Bom menino… Meu guerreiro… Esse é meu guerreiro…"

Anderson bebia, os olhos injetados de sangue, tão vermelhos quanto o líquido que bebia. Renan o segurava como um bebê, acariciava seus cabelos, incentivando-o a ir até o fim daquele ritual desgraçado. Ele parecia sentir que aquele era o momento final, que a conclusão se aproximava rápido. Olhou o relógio. Anderson bebia. Seu corpo começou a se sacudir em espasmos. Não era só a vontade de vomitar. A dificuldade dele era como a de alguém com asma, sugando o ar, convulso, pronto a desmaiar. Experimentando a morte em vida. Experimentando a mesma morte que recusou ao votar pela vida eterna em Taurinos. Seguindo para dentro da escuridão erguida sobre os cadáveres que acabara de produzir na mais refinada das chacinas. Seguindo para dentro da escuridão. Seguindo…

O ar começou a escurecer. Ainda não estávamos no por do sol e o ar começava a escurecer em torno. Gritos espantosos ecoavam por cima do plano onde estávamos, presenças se sentiam em torno do círculo. Gritos vindos do inferno da própria insanidade humana. Neste ambiente lúgubre, onde o mundo parecia querer desabar sobre nossas cabeças, ousei erguer os olhos para o Sol. O Sol se tornou negro como breu. Não havia raios nocivos para o olho. Não houve a intrusão de um astro, um formato de meia-lua. Não era, enfim, o eclipse que vimos quando aconteceu o Ordálio. Não era um eclipse. O Sol simplesmente se tornou negro.

Quando voltei os olhos para ele novamente, Anderson tinha acabado de beber. O ritual tinha chegado ao fim. Iluminado pelo Sol negro, o noviço cambaleou e tombou como uma árvore tomba. Como uma árvore seca. Quando se ergueu de novo, vacilante, seu aspecto era o mesmo do pato negro que tantas vezes vi em Renan. A mesma aparição medonha. Renan o tinha prendido à Polícia Obscura para sempre finalmente. E num momento, ele era Anderson de novo. Não o mesmo Anderson, que aquele tinha morrido durante o ritual. Um novo Anderson. Muito mais raivoso, muito mais agressivo, muito mais feroz, muito mais poderoso.

Renan limpou a barreira de sal que separava o círculo interior do exterior onde estávamos e passou para o círculo exterior com seu discípulo. He fechou o círculo interior novamente e passou a limpar a passagem do círculo exterior para o descampado, enquanto o Sol negro transformava toda a cidade em volta em noite fechada. Depois que todos nós tínhamos passado, ele fechou o círculo exterior novamente, como se ele jamais tivesse sido aberto. Nos mandou seguir de volta pelo mesmo caminho até onde os carros tinham nos deixado. Ele e Anderson montaram em seus cavalos e logo desapareceram pelo caminho indicado. Começamos a descer a colina em silêncio mortal. Com a exceção de Andrés, todos nós tínhamos nossas roupas completamente vomitadas. Andrés jamais explicaria como conseguiu manter suas roupas limpas.

Levou algum tempo ainda antes que víssemos os faróis dos carros lá embaixo nos esperando. Detrás de nós, o Sol negro brilhou numa luz que mil sóis não produziriam, um brilho breve que desapareceu imediatamente antes do Astro Rei se tornar amarelo avermelhado novamente.

Fantasma de uma chance | Saudações de um homem morto

Rádio Universal: Polícia Obscura

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