sábado, 16 de maio de 2009

Fantasma de uma chance

Fui até a loja de ferragens hoje de manhã. A idéia era observar Renan no trabalho. O problema era como fazer isso sem que ele ou Anderson percebessem que eles estavam sendo observados. Mais que qualquer conclusão a que eu quisesse chegar, era mais como mera curiosidade de ver Renan trabalhando numa loja.

Notei que ele e Anderson mal conversavam, mesmo em momentos de pouco movimento. Isso me chamou a atenção. Achei que eles estavam um tanto quanto estremecidos em sua amizade, o que me deixou triste e desconfortável por dentro. O modo como Renan manobrou durante a reunião no Mithraeum poderia ter sido a causa do silêncio (embora analisando friamente não houvesse nada muito diferente que Renan pudesse fazer). Renan sorriu ao me ver e conversamos um pouco. Anderson relanceava os olhos na nossa direção enquanto posicionava algumas caixas. A precisão com que ele as posicionava me deu a impressão que o trabalho que ele fazia naquele momento era mais que desnecessário.

Um cliente chegou, fez compras e sorriu ao ver Renan trabalhando ali. Obviamente já tinha ouvido a estória por trás do trabalho. Comentou que era bom ver Renan trabalhando com Anderson e não pareceu conseguir resistir a um outro comentário:

"Agora só falta Anderson ir trabalhar com você, Renan."

Vi o jovem ferreiro fulminar discretamente o cliente com os olhos. De costas para Anderson, Renan sorriu para o cliente, um sorrisinho matreiro, "é, quem sabe isso não acaba acontecendo, né?"

Chá das cinco na fazenda Taurinos, o que não acontecia com frequência. Adriano chegou mesmo a se levantar da cama hoje, a despeito dos protestos de Aparecida. O caos que ele viveu a tornou uma espécie de mãe superprotetora. Ele já não parecia ter passado por nada do que passou. Parecia totalmente normal, uma melhora absurda da noite para o dia. Pensei em como retornar ao convívio de seu lar lhe fez bem.

Lá fora, o Sol iniciava a sua descida rumo ao horizonte, indo se esconder atrás das belíssimas montanhas de Taurinos. Do cerrado, vinha o discreto perfume das candeias começando a se tornar meras silhuetas contra o Sol que ia cada vez mais horizontal com o passar dos minutos.

"Então a senhora foi visitar o Renan no seu dia de trabalho?", perguntou Andrés, se atracando com uma fatia grossa de bolo de fubá próxima.

"Fui; ele e Anderson não pareciam estar conversando muito", respondi, incerta sobre se deveria conversar sobre Renan na mesa.

"Inacreditável ele me pedir que eu batesse nele até tirar sangue, a senhora já viu algo assim na sua vida?", perguntou Aparecida, ainda estupefata com os eventos do dia anterior.

"Não, mas na minha morte com certeza já ouvi falar", eu disse, rindo e provocando risos da família inteira.

"Eu sempre disse que ele era doido e ninguém acreditava", ajuntou Adriano.

"De doido ele não tem nada, pode acreditar, Adriano. Você não estava na reunião, devia ter visto. Falando nisso, "sêo" Danilo falou coisas que eu nunca imaginaria que ele fosse falar. Ele é sempre tão tranquilo, mas estava revoltado na reunião. Renan bem sentiu o peso das palavras dele, isso ele sentiu. Pra ele deve ter sido uma verdadeira porrada", comentou Andrés.

Confirmei as palavras de Andrés. Disse que eu o achava muito hábil com as palavras. A situação acabou fazendo com que ele mostrasse isso.

Andrés ia acrescentar mais alguma coisa, quando meu celular tocou, dentro da bolsa. Esquecido lá, havia meses sem tocar, isso me alarmou. Quem em Taurinos sabia o número de meu celular? Atendi e fiquei surpresa até o último fio de cabelo.

Era a Meire, do outro lado. Comentei que era ela e Andrés e Adriano ficaram em suspense, olhando para mim. Duílio e Aparecida não pareciam entender do que se tratava, embora já tivessem ouvido bem o nome dela.

"Nem acredito que finalmente você atendeu esse telefone, Stella!", disse a voz dela do outro lado.

Verdade. Esquecido dentro de minha bolsa, que nem sempre eu carregava comigo, deveria ter tocado inúmeras vezes lá dentro sem que eu me desse conta.

"Eu consegui!", ela disse alegremente, me deixando confusa. A princípio, imaginei que ela ainda estivesse falando do fato de eu ter finalmente atendido a sua ligação. Mas o que ela disse a seguir me encheu de assombro e de apreensão.

"Estou em Taurinos", ela disse com um jeito trinufante na voz, "foi muito tempo de prática, mas eu consegui finalmente chegar até a cidade onde você mora agora, amiga!"

"Meire, nós não combinamos que você viesse aqui sem me avisar!…"

"Eu fiz mal?"

Ao meu lado, alarmado, Andrés deixou cair no chão a caneca de café que pretendia encher novamente. Ele me segurou pela manga apavorado, "espera, espera, a sua amiga está na cidade e a senhora não avisou o Renan?", os olhos dele e de Adriano eram tão grandes quanto a boca de suas próprias canecas.

Eu disse apressadamente a Andrés que não tinha porque avisar Renan de nada, porque não tínhamos combinado dela vir ainda. Eu só não contava com o fato dela querer me fazer uma surpresa, mas eu sabia que não iria fazer muita diferença se a Polícia Obscura a encontrasse nos limites da cidade.

"Mas Renan deve ainda estar na loja, não? Dá pra ligar pra ele lá e avisar…", tentou Adriano.

"Hoje é sábado, Adriano; a loja fecha meio-dia", lembrou Andrés, desanimado.

"Grande Mitra…", Aparecida estava nervosa.

"Onde você está?", perguntei nervosa a ela no telefone. Meire notou o nervosismo em minha voz e me perguntou o que estava havendo, "não há tempo pra explicar agora, só me diga onde você está e nós vamos buscar você agora."

"Pergunte a ela se há uma placa de limite de munícipio", sugeriu Aparecida com a concordância imediata do marido, "geralmente as pobres almas entram por ali."

Perguntei e Meire disse que não havia nenhuma placa em volta, só muitas e muitas árvores. Andrés pegou o telefone de minha mão e perguntou a ela por referências, se havia isso, isso e mais isso ou aquilo, mas nada do que ela disse dava a ele uma localização. Ele a "viu", mas a imagem que ele tinha dela não permitia supor em que parte dos limites de Taurinos ela estava.

"Pai, vem com a gente, vamos ter que correr as saídas da cidade de carro e torcer pra achar ela antes do Renan. Porque se ele achar ela primeiro, D. Stella, não tenho idéia de como ela vai morrer, mas vai ser uma morte horrível, disso a senhora pode ter certeza."

"Creio em Deus Padre", Duílio procurava as chaves do carro, nervoso ele também, "Adriano, você fica aqui com sua mãe, nem pensar em sair, você ainda está muito fraco", ele completou, olhando o filho mais velho.

Sol já iniciando o seu caminho para o leito das montanhas de Taurinos. Ninguém falava nada no carro. Os dois pareciam compartilhar a mesma apreensão por mim e pela minha amiga que nunca conheceram. Nossos olhos se voltavam para as fronteiras de Taurinos com o mundo lá fora, de onde vinham as terríveis ameaças que a Polícia Obscura combatia como um anticorpo.

Foi Duílio quem primeiro ouviu os gritos. Ele parou o carro para podermos ouvir também, mas não havia necessidade disso; podíamos ouvir claramente os gritos, mesmo com o motor funcionando.

"Capaz! Eu devia saber que não tinha como ser mais rápido que o diabo daquele moleque", Andrés abanou a cabeça e voltou os olhos para mim, desconsolado, "sem querer desanimar a senhora, D. Stella, mas acho que não vai ter chance pra sua amiga", ele me olhou com uma expressão de pena infinita.

Eu sentia vontade de chorar. Não haveria nem mesmo quem eu pudesse culpar a não ser a mim mesma se algo acontecesse à minha melhor amiga. E já estava acontecendo. Os gritos dela eram lancinantes.

Duílio disse que deveríamos descer. Não havia como chegar de carro ao ponto de onde os gritos partiam; era uma parte da divisa com mata e vegetação muito fechada. Quando eu e Andrés descemos do carro, sem aviso, ele saiu à toda pela estrada, nos deixando ali. Eu não entendia mais nada, mas estava desesperada demais para tentar entender o que quer que fosse. O que eu sabia era que uma amiga minha estava em grande perigo. E eu não via como eu poderia ajudá-la.

Eu e Andrés nos embrenhamos na mata. Os gritos se tornavam cada vez mais fortes e lancinantes. De repente, numa curva do caminho, avistamos a cena: uma rede, suspensa nos galhos de uma das árvores dali e Meire presa dentro dela, como caça que acaba de ser capturada. E ao lado dela, o Agente Renan. Em toda a sua monstruosidade visual que eu já conhecia, mas que não me apavorou menos que da última vez que eu o vi no descampado. Renan estava certo. Eu jamais me acostumaria com aquela horrenda aparição. Eu mal conseguia olhar para aquilo, a visão medonha dele e da rede em forma de saco onde Meire se sacudia convulsivamente, gritando desesperada de horror e confusão. Não havia como chegar mais perto que aquilo. As vistas doíam. Tudo em volta era envolto numa escuridão baça, que nem era a de um final de tarde, era mais como algo tenebroso e que tornava difícil até mesmo respirar. Não queria nem mesmo imaginar como Meire se sentia tão perto dele. Mas eu tinha de fazer alguma coisa.

"Renan", eu gritei, "pelo amor de Mitra, por tudo que é mais sagrado para você, essa é minha amiga! Não veio me fazer mal! Não veio fazer mal a ninguém em Taurinos! Por favor, solte a minha amiga! Por favor, solte a minha amiga!"

Eu lutava entre desviar os olhos e olhar diretamente para Renan, mas era como olhar para o Sol. Seu aspecto agredia as vistas como um chute no meio da cara, queimava meus olhos como raios de Sol, um monstro hediondo completamente consagrado ao deus do Sol, um Sol invertido, negro, que era o próprio espírito do que se convencionou chamar de Polícia Obscura.

"Pelo Astro Rei, D. Stella, não olhe assim direto pra ele, desvia essas vistas um pouco", gritava Andrés, sem conseguir ele mesmo olhar, "a senhora é louca!!! Louca!!!"

Era difícil perceber em meio ao desespero e gritaria geral, mas Renan estava juntando lenha debaixo da rede. Os últimos raios de sol faziam a rede brilhar, uma rede toda feita de metal, um aramado. Não era difícil imaginar o que ele faria com Meire em pouco tempo. Ela seria queimada viva dentro daquele aramado sinistro, sem mais, diante de nós dois. Renan virou-se para olhar para nós. E, pela primeira vez naquele aspecto medonho, ele falou conosco. Como ele mesmo me dissera uma vez, nós não estávamos preparados para ouvir sua voz. A voz não era a de Renan, não a do Renan como o conhecíamos, mas era uma voz grave, abafada, envolta no barulho infernal como o de centenas de tambores de gasolina rolando por uma escadaria. A voz dele nos envolveu como uma onda de choque, nos derrubando no chão, ressoando dentro de cada um de nossos ossos, com uma vibração que só mesmo quem morreu numa cadeira elétrica pode descrever.

"Eu costumava ouvir essa conversa da parte dos forasteiros. Agora, a senhora ajudando eles pra mim é novidade, D. Stella", e eu vi nele algo remotamente parecido com o que se poderia chamar de riso, se é que uma criatura como aquela poderia rir um dia.

Se conversar com ele era esse inferno, que diria tentar convencê-lo de alguma coisa. Andrés tinha batido a cabeça no tronco de uma árvore próxima e ficou sentado, de olhos fechados, sem coragem para reabri-los. Os gritos de Meire se tornavam cada vez mais lancinantes, mais e mais, ela era incapaz de gritar palavras articuladas. Não havia nada mais a fazer. Nem um milagre a salvaria.

De repente, quando a pilha de lenha já ia pela altura que Renan julgava adequada, um motor de carro se fez ouvir a alguma distância, baixo, mas perceptível mesmo sob a barragem de gritos de minha infeliz amiga. Andrés finalmente abriu seus olhos, olhou para mim e eu lhe devolvi o olhar. Ouvimos claramente o motor desligar, batidas de porta e o som de passos dentro da floresta, quebrando galhos e gravetos dentro da ramaria caída no chão. Duílio voltando? Que poderia ele fazer contra aquela monstruosidade?

Quando Duílio emergiu para dentro da clareira onde estávamos, ele procurou não olhar para nada a não ser o filho e eu. Ele sabia onde estava e o que o aguardava se olhasse em qualquer outra direção. Ele não ousava. Mas ele não tinha vindo sozinho. E quem estava com ele, passou por nós sem nos olhar. Este sim, ousou olhar, sem medo, para a atrocidade visual que era o Agente. Mais que isso, ousou se aproximar dele até que ele estivesse a seu alcance. Era Anderson. O único de nós que poderia lidar com Renan naquele aspecto. Duílio, eu e Andrés o fitávamos, enquanto ele parava na frente do Agente, próximo demais de um perigo inimaginável que não o afetava em absoluto, indiferente aos gritos incansáveis vindos de dentro da rede que se sacudia em espasmos cada vez mais violentos.

"Deixa a moça ir, Renan", ele disse simplesmente, com clareza na voz, "solte a moça e nós vamos patrulhar essa cidade juntos de hoje em diante. Eu desisto de lutar contra você. Você venceu e eu perdi. Você estava certo e eu estava errado. Solte a amiga da D. Stella, por favor. Eu quero entrar pra Polícia e lutar do teu lado."

Renan pegou Anderson e o levantou até a altura dos "olhos", numa manobra que teria devastado qualquer um de nós. Só de olhar para esse movimento eu fiquei tonta como se fosse desmaiar. Nenhum de nós viu quando a figura enorme do pato colocou Anderson sobre o cavalo preto e, montando nele ele também, desapareceu pela floresta, tomando o rumo do descampado lá fora. Só tivemos olhos para a rede que se abriu, como se nunca tivesse existido ou estado ali, liberando Meire que caiu no chão ainda tomada de espasmos de terror por todo lado. Eu corri para abraçar minha amiga. Anderson tinha conseguido. Ele a tinha livrado da mais horrorosa das mortes. Mesmo sabendo que ele acabaria assim, eu não tinha idéia do preço que o jovem ferreiro pagaria pelo seu heroísmo.

O dia do perdão | Sol negro

Rádio Universal: Polícia Obscura

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