quarta-feira, 6 de maio de 2009

Sob a Via-Láctea

Eram mais ou menos oito horas da noite quando terminamos de jantar na fazenda Taurinos. Hoje era Andrés lavando os pratos, era a vez dele. Eu tinha de ficar vigiando, senão os marmanjos deixavam tudo entregue ao caos primitivo. Andrés me convidou para darmos uma volta e ver o céu estrelado. Aceitei contente, já que não me recolhia normalmente às mesmas horas dos taurinenses.

Se havia algo em Taurinos que se merecesse ver durante a noite era o céu estrelado. As estrelas pareciam vagalumes em torno de sua cabeça. A lua crescente se movia preguiçosamente para se tornar cheia dentro de mais alguns dias. Andrés ficou procurando o Cinturão de Órion como de costume. Ao lado de Órion, mostrei a ele o Erídano. Me perguntou o que o nome significava e expliquei que se tratava de um rio na Grécia antiga. Ele alegou imensa dificuldade em ligar as estrelas com linhas retas para formar visualmente o rio, mas se calou, como se tivesse conseguido. Mostrei a ele o Cruzeiro do Sul também. Viramos e mais para o outro lado estavam Sagitário, Virgem, Ofiúco, Libra.

"Caralho, que bonito!", e Andrés era todo admiração diante da Via Láctea, "e o que é um Ofiúco?", perguntou, atento aos nomes, "Ofiúco significa 'aquele que segura a serpente'; como você pode ver, a constelação da Serpente é logo ao lado, como se estivesse sendo segura por alguém", respondi.

Comentei o quanto era bom simplesmente vir, olhar, contemplar e não pensar em mais nada. Deixar que a noite te envolvesse. Andrés concordou. Disse que adorava passar momentos como aquele. Não duvidei, pois foi uma das poucas coisas a prender sua atenção no tempo em que nos dávamos terrívelmente mal.

Puxei meu mp3 do meu bolso, pus os fones de ouvido e apertei play. A escolha aleatória não parecia muito com uma escolha verdadeiramente aleatória:



Às vezes, quando este lugar fica meio que vazio, o som de sua respiração desaparece com a luz. Penso então na fascinação em total desamor. Sob a Via Láctea esta noite…

Sob A Via Láctea, escrita por The Church



Nos sentamos num descampado próximo. A visão do céu era um deslumbramento único se oferecendo à visão. Eu tinha a impressão que poderia colher aquelas estrelas e colocá-las no bolso se quisesse, tão próximas elas me pareciam. Depois de um espaço de tempo que pareceu uma hora e tanto, Andrés me surpreendeu perguntando se não seria melhor que voltássemos. E pensar que foi logo ele a me convidar para o passeio estelar. Perguntei se ele estava sentindo sono. Ele disse que não.

"Então, por que voltar agora? Vamos ficar mais um pouco."

"Tem alguém vindo pra cá. Exatamente na nossa direção."

"Quem pode ser?"

"A senhora sabe quem."

"Renan?"

"A Polícia Obscura, é isso que eu quero dizer. Não é só o Renan. Se fosse ele, eu convidava pra sentar aqui com a gente, só de brincadeira."

E depois, num rompante, "Que acha da gente sair daqui?"

"Acho que a gente não pode ficar se escondendo na própria cidade onde vive", respondi aparentando displicência.

"A senhora só pode ser louca", ele abanou a cabeça e deu de ombros.

Agora eu ouvia o som do cavalo distante. Vinha num galope cerrado. Parecia vir por trás de nós. Andrés estava mais nervoso que eu. Explicou novamente que a imagem dele se consolidava ainda mais, cada vez mais sinistra e enlouquecedora. Eu disse que íamos testar o poder de fogo da Polícia Obscura ali mesmo. Andrés começou a rezar e eu mandei que ele calasse a boca.

"Bem-vindo à cidade onde suas preces não serão ouvidas", eu disse a ele, severamente por se comportar como um idiota.

Não se ouviam mais os sons da noite, os grilos ciciando, a orquestra percussiva de sapos, sons de curiangos, nada mais se ouvia em redor. Cachorros uivavam na distância, mas não havia qualquer som em nosso redor em uma área grande. Podia até visualizar um círculo, onde os sons não penetravam. O mesmo silêncio morto que eu experimentara em meu alpendre naquela noite. O som do cavalo se aproximava cada vez mais pelas nossas costas.

Permanecemos sentados; não dizíamos mais uma palavra. Andrés tremia como vara verde. Eu estava um pouco apreensiva (e o comportamento de Andrés a meu lado não ajudava muito, devo dizer), mas continuava calma por fora. O ar em si ficou pesado, pesado demais para se respirar. Quando o som dos cascos do cavalo atingiu o máximo, novamente ouvi que ele reduzia sua velocidade, ainda vindo por trás de nós em nossa direção. Sons estranhos começaram a se produzir em torno. Como vozes falando em velocidade humanamente impossível de se entender. Sons como tapas sendo dados na grama em torno de nós, num círculo que vinha se fechando em torno de mim e de Andrés. Ele fechou os olhos, apertados. Agora, andando bem devagar, o som torturante dos cascos de cavalo se aproximando de nós lentamente.

Estava dividida entre olhar para trás e me segurar para evitar aborrecimentos ou coisas piores. Agora podíamos ouvir sem esforço a respiração do animal. Os sons de tapas que se ouviam agora nós podíamos sentir em nossos corpos. Era apavorante pensar que poderiam se tornar mais que simples tapinhas ou vibrações sobre a pele. Os sons de vozes se transmutaram lentamente em gritos espantosos que pareciam vir de todos os lados como o círculo que nos isolou e que já descrevi. Fechei meus olhos, como Andrés, num paroxismo de horror brutal.

O Agente e seu cavalo estavam parados atrás de nós agora. Exatamente atrás. Se estendêssemos as mãos para trás, nós tocaríamos as patas de seu cavalo. O som da respiração do animalão agora era a única coisa que podíamos ouvir.

Lentamente, fui abrindo meus olhos. Quando olhei para Andrés, desejei não ter feito isso. Havia um porco enorme e horrendo no lugar onde ele devia estar, que a luz do luar crescente só fazia mais bizarro e horrendo. O porco me olhava e parecia, como eu, assustado com o que via. Por mais que tentássemos, nem eu nem o porco conseguíamos nos mexer. O porco me olhou e me disse, "agora se ele resolver dar a volta em nós vai ser o diabo", ele falou com os olhos ainda assustados. Foi então que percebi que Andrés tinha se transformado em um porco ou era apenas que eu o via assim naquele momento. No meio da minha aflição, pensei que talvez ele tivesse os olhos assustados por estar ele também me vendo como uma coisa tão asquerosa quanto. O som da respiração do cavalo atrás de nós era ainda era a única coisa que podíamos ouvir. De repente, a respiração do cavalo mudou de ritmo. Começamos a ouvir o cavalo avançando lentamente para a nossa lateral, se aproximando perigosamente de nosso campo de visão. Olhei para Andrés e ele era Andrés de novo, num lapso de tempo que pareceu nem ter acontecido.

À medida que as pisadas do cavalo se aproximavam do nosso lado esquerdo, as vozes voltavam como urros vindos de algum inferno ancestral esquecido. Puxões violentos em nossa roupa denunciavam que o Agente aparentemente nunca estava só na calada da noite. E ele estava agora bem à nossa frente. Já descrevi a angústia que senti ao vê-lo em meu alpendre. Mas quando ergui os olhos para o Agente, a despeito dos murmúrios desesperados de Andrés para que não o fizesse, vi o que estava montado no cavalo: em todo o grotesco esplendor insano de sua monstruosidade, lá estava o Agente.

Como Andrés tinha previsto, sua resolução tinha atingido o ápice. Impossível descrever aquele ser de botas pretas soldadas a um corpo inteiriço preto como a noite em redor, liso como que cromado, encimado por aquela cabeça monstruosa com um bico de pato. Impossível descrever minha fascinação pelo infinitamente feio que Renan mesmo tinha mencionado. O símbolo do Infinito sobre a testa, brilhando em intervalos absurdamente curtos para finalmente lançar uma luz em meus olhos que me cegou com toda aquela monstruosidade asquerosa.

Fechei os olhos e aquele clarão permanecia, forte como a luz do dia, até que um tapa me arrancou violentamente de todo aquele horror. Abri os olhos aturdida, e vi Andrés na minha frente, a mão levantada para me desferir mais um tapa. Segurei o braço dele amedrontada e só então vi que era de manhã. O céu azul berrante de Taurinos estava em toda a nossa volta mais uma vez. Senti como se o tapa que levei de Andrés tivesse feito nascer o dia. Estávamos sentados na campina, o mesmo descampado da noite, exatamente no mesmo lugar de onde ficamos observando as constelações.

"Seu problema de loucura está cada dia pior", ele disse com raiva, antes que nos levantássemos para voltar para casa, "não saio mais à noite com a senhora."

Impacto do tempo | Cromo

Rádio Universal: Polícia Obscura

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