terça-feira, 5 de maio de 2009

Impacto do tempo

E hoje fiquei sabendo que Anderson é o ferreiro da cidade. Outra de minhas descobertas feitas na base do "a senhora nunca perguntou…"

Fiquei sabendo por Andrés que ele e o pai, Alberto, que conheci brevemente durante a Lei dos Touros, moravam na verdade num sítio fora da cidade, não muito longe da fazenda Teixeira. Eu daria ao amável leitor um mapa da cidade se eu mesma não estivesse tão confusa com os caminhos e subcaminhos que se vêem por toda parte aqui.

Duílio me trouxe ao sítio dos Caldeira. Ele mesmo precisava conversar com Alberto ou talvez tivesse ido entusiasticamente por estar sem encontrar seu amigo fazia um tempo. Era um sítio bem-arrumado para ser propriedade de dois homens apenas.

Anderson não pareceu contente em me ver. Embora ele mesmo tivesse ido à minha casa para falar de seus problemas, ele sentiu minhas perguntas um pouco intragáveis demais para o momento que vivia. Nisso ele não era diferente da grande maioria dos meus analisandos. Como estudantes que adorariam aprender mas não querem estudar, meus analisandos querem a solução de seus problemas sem terem de mergulhar na merda eles mesmos. "Mergulhe na merda por mim; veja o que você pode fazer por mim", parece ser o lema de todos eles.

Alberto e Duílio trocaram aquele abraço fraternal de dois taurinenses típicos e logo já tinham sumido de vista, conversando sobre o mundo agrário, tubos e conexões e todas aquelas coisas interessantes que faziam a delícia dos machos adultos empreendedores.

"Você me deixou sem resposta desde que foi à minha casa", reclamei, logo que me vi a sós com Anderson. O menino ficou me olhando sem-graça. Se sentou em uma das cadeiras da varanda e me indicou uma para que eu me sentasse também.

"Por que me perguntou aquilo, D. Stella? Pra saber ou só estava querendo testar os meus conhecimentos de história recente de Taurinos?", havia um sutil toque de ironia na voz do menino. Tão sutil que talvez nem mesmo ele tivesse notado.

"Só testando", eu disse, tentando parecer fria, calculista e cruel.

"Para a senhora nós não somos muito mais que cobaias, nuemes?", ele tinha olhos reprovadores, acusadores presos em mim.

Eu disse a ele que não gostava do rumo que a conversa estava tomando. Declarei que se havia cobaias nessa história, eu poderia me entitular como a primeira. Que estava ruim para todo mundo e que mesmo que para ele estivesse pior, minha decisão foi a decisão da maioria. Todos queríamos sobreviver ao impacto do tempo, eis o porque. Nenhum de nós parou para pensar nas implicações. Bruno parou, mas era tarde demais. "Sêo" Danilo parou, ainda em tempo e tentou me aconselhar contra ficar em Taurinos. Aparentemente, o abnegado sertanejo previa a confusão toda e sabia que o Universo poderia muito bem passar sem ela.

Anderson me ouviu sem dizer palavra. Remexia um canto da varanda com o pé, aparentando alheamento. O que disse, no entanto, denotou que ele tinha prestado total atenção.

"Maldito o dia em que eu decidi continuar vivendo", ele disse desconsolado, "me arrependo mais disso do que me arrependo de ter emprestado as armas pro Renan matar os ladrões de gado. Os Teixeira têm armas pra caralho, mas ele queria aquelas que eu tinha, não sei porque. Nem ele nunca soube dizer. Tentou me convencer a matar alguns deles, uns dois. Eu disse que o máximo que eu ia fazer era emprestar as armas. Me lembro que ele sorriu e disse que tudo bem, que depois isso se resolvia."

"Se isso que você diz é verdade, talvez Renan tivesse uma intuição do que iria acontecer. Talvez fosse esse o modo dele envolver você na história."

Ele se levantou da cadeira como se tivesse sido picado por uma formiga.

"Isso não pode ser verdade! Ele é meu amigo! Não ia fazer isso comigo, D. Stella!"

"Mas ele não fez nada com você. O problema dos ladrões de gado era seu também. Você acha que foi fácil para o Renan matar os caras, e eu tenho que concordar que ele é um pequeno sádico. Mas ele de algum modo se ressente disso que faz. Se fosse uma delícia, ele não faria questão de te envolver. Ele faria tudo sozinho e chegaria até mesmo a recusar ajuda de quem quer que seja. Você e seu pai não têm muito gado, se for o que eu estou vendo daqui; qualquer grupo de ladrões faria um estrago dos grandes na fazenda de vocês. Você pode não ter entendido porque Renan precisaria justo das suas armas, mas emprestou de coração. Porque sabia que o problema afetava você e seu pai também. Me lembro de você, decidido, durante a Lei dos Touros, dizendo que passaria por cima de qualquer um, que não iria ficar de braços cruzados vendo tudo em volta secar. Você se lembra disso?"

"Eu me lembro", ele parecia claramente perturbado com minhas palavras.

"Eu não estava lá no momento, nem sequer sabia que vocês dois existiam, mas acredito que naquele momento, com os ladrões de gado, o mesmo espírito te mobilizou a emprestar as armas a ele. De qualquer modo, houve uma barreira que você nunca atravessou: matar aqueles homens. Diferente de Renan, você se deixou levar pela forma e constituição humana deles e para você é tabu matar pessoas. Eu entendo você. É algo duro de se fazer."

Ele me olhou desconfiado de algo que minha últimas palavras deixaram entrever.

"A senhora já fez isso alguma vez? Já matou alguém?"

"Sim."

Ele recuou ligeiramente, me trazendo no olho, como se estranhamente assustado por estar em presença de alguém que afirma já ter matado uma pessoa. Contei a ele o episódio e ele ficou feliz em saber que o mecânico de São Vicente que tinha me obrigado a matar um homem terminou sendo morto na praça principal de Taurinos pela Polícia Obscura.

"Bem feito pra ele, se fudeu na mão do Renan", ele concluiu, socando a palma da mão esquerda com a lateral do punho fechado.

"É, mas e se gente que só quer entrar na cidade for eliminada desse mesmo jeito?", abri a bolsa e dei a ele os e-mails de Meire sobre os assassinatos em Santos. Ele arregalou os olhos enquanto lia, porque conhecia bem as circunstâncias em que Lopes e Fernando foram mortos aqui. Ele não sabia, no entanto, como muitos outros na cidade, que isso tinha se refletido lá em Santos. Eu perguntei, "será que todos os que vem aqui têm de necessariamente ter más intenções?"

Anderson me garantiu que sim. De modo apaixonado, pareceu-me. Não parecia haver lugar para dúvidas na cabeça dos taurinenses: fora os entregadores, ninguém poderia ficar na cidade se não fosse movido por más intenções.

Fomos dar uma volta. Perguntei a ele se eram vacas os bichos pretos dos quais eu tinha tirado apenas um relance de olhos. Ele riu e disse que eram cavalos. Eu parei no meio do caminho e perguntei de quem eram os cavalos. Ele disse que eram do Renan.

"Por que ele deixa os cavalos aqui? Você guarda os cavalos para ele?"

"Eu ferro os cavalos para ele. Eu ferro os cavalos de todo mundo na cidade."

Ainda conversei a tempo perdido com ele sobre os assuntos que o preocupavam. De vários modos, procurei fazer ver a ele que ele poderia ser o fiel da balança, trazer Renan para uma perspectiva mais ajuizada no momento de cumprir o seu dever para com a comunidade. Ele não pareceu confortável durante minha exposição, como se minhas palavras fossem uma ducha de água fria em suas esperanças de escapar da função a que era chamado com todas as forças. Quando me acordei para o tempo, ao redor, era já o cair da tarde. Duílio e Alberto estavam em volta e o pai estranhou os olhos úmidos do filho ao nos ver.

"Seu filho está tendo uns pequenos problemas, Alberto. E a gente não pode nem mesmo dizer que tudo vai ficar bem. Porque não depende só de nós."

À noite, com um sorriso matreiro, Andrés me perguntou se eu realmente tinha acreditado que os cavalos que estavam no sítio Caldeira estavam ali para serem apenas ferrados. Até Duílio riu discretamente do seu lado da mesa.

"Eu imaginei que ele estava mentindo, mas foi mais pelo modo como ele me respondeu. Agora, se ele recusa assim tanto a missão, porque aceitou os cavalos que Renan deu a ele?"

"Anderson é esquisito. Uma parte dele — que é a parte da Polícia Obscura — quer. A outra — que é a parte dele mesmo — não."

Argumentei com pai e filho que isso então era a fraqueza dele pelo tema da Polícia Obscura. Como Anderson poderia dominar o poder sem ser dominado se ele tinha nele mesmo essas duas partes conflitantes? Obviamente o poder da Polícia Obscura o dominava, ou ele não teria aceitado os cavalos.

"Você mesmo disse que ele não era dominado pelo poder. Mas tem de ser a própria parte dele dominada pelo processo que você anteontem mesmo definiu como se tivesse começado. Não foi isso que você disse?"

"Foi", ele admitiu com uma expressão de embaraço que eu não soube dizer se sincera ou fingida, "mas já lhe disse, Anderson é esquisito. Ele é liso lá do jeito dele, consegue dar os pulos dele ou pelo menos até agora ele tem conseguido. Mas nós não estamos falando de qualquer poder. Estamos falando da Polícia Obscura."

Meia-vida |

Rádio Universal: Polícia Obscura

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